Marxismo e a questão indígena¹

Por Soraia de Carvalho

Ao discutir a questão indígena, é inevitável fazer a referência ao que está acontecendo agora, no Brasil. Desde o dia 20 de janeiro, os holofotes nacionais estão direcionados para Terra Indígena Yanomami, essa que é a maior terra indígena aqui do Brasil. O decreto de emergência em saúde pública e a visita do presidente e ministras chamaram a atenção para uma questão que não é nova, inclusive nesse próprio território. Situação que já vinha sendo denunciada há tempos, os impactos da invasão de cerca de 20 mil garimpeiros que tem levado a desmatamento, contaminação das águas e alimentos, surtos de malária, disenteria, verminoses, desnutrição. Tem se divulgado os dados das mortes de centenas de crianças por desnutrição, por causas evitáveis. De 30 mil pessoas que vivem no território, metade está  doente, desnutrida. O importante é debater que esse genocídio não é algo que esteja sendo sofrido nesse momento exclusivamente e também não é algo restrito a esse território. É a marca de séculos, desde a colonização das Américas e como esses povos vem sofrendo com a exploração, com o genocídio e com várias manifestações da opressão.

Nesse momento de profunda comoção, Lula tem prometido o fim do garimpo, as esquerdas têm feito uma ação de responsabilizar quase que unicamente Bolsonaro e o seu entorno E é claro que ele tem a sua responsabilidade por sua política claramente anti-indígena. Antes mesmo das eleições, já manifestava os seus projetos de extermínio, de não demarcação de terras, de exploração econômica. E ele precisa ser responsabilizado por isso, mas as responsabilidades são muito mais amplas, porque é um crime da classe capitalista de conjunto. Por ser um crime da classe capitalista, para chegar às responsabilidades mesmo, a justiça burguesa é incapaz de fazer isso. É necessário erguer os tribunais populares, com a participação das massas, inclusive indígenas, para conseguir punir esses responsáveis.

Lula e seu governo podem tentar aplicar algumas medidas para remediar a situação, mas não dá para ter nenhuma dúvida de que esse governo está  voltado a preservar a raiz da opressão a esses povos, que é a manutenção da propriedade privada capitalista e de tudo que vem junto com isso. Não é só um prognóstico, mas é um balanço também do que foram os governos do PT, que tiveram como grande impulso na economia a expansão das fronteiras agrícolas, apoiado no crescimento por exemplo da JBS. Foi justamente nos estados em que houve essa ampliação – eles até criaram o acróstico MATOPIBA, de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, foi justamente nesse nesses lugares onde houve a expansão a serviço do agronegócio, que se ampliaram os crimes contra povos indígenas, camponeses, ribeirinhos e extrativistas. A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte também representou grande violência e desconhecimento dos direitos dos povos indígena desse território. 

O genocídio Yanomami escancarado nas imagens de crianças e idosos, só pele e osso, também expõe a voracidade do Capital, nessa fase imperialista. Expressa o processo de desindustrialização do país, de uma exploração mais intensa da terra, de um reforçamento do papel do Brasil na divisão internacional do trabalho como exportador de matérias-primas. A existência desses 20 mil garimpeiros Ilegais também expõe a destruição dos empregos, dos salários, dos direitos. Expõe uma face do desemprego e da miséria que permite que uma parcela dos explorados seja arregimentada pela por essa lumpenburguesia que está  enraizada dentro do Estado e financia essa invasão, pagando pelos voos, equipamentos e armas que não poderiam ser obtidos pelos próprios garimpeiros.

O profundo repúdio que a gente tem que manifestar diante do que está acontecendo tem que nos levar a também formular resposta para algumas questões. A gente tem que pensar: Como que essa opressão sobre as Nações Indígenas pode ser eliminada? Como esses povos indígenas podem conquistar a sua real autodeterminação? Para responder a isso, vou apresentar elementos que constam no programa do Partido Operário Revolucionário e também a elaboração de marxistas latino-americanos como José Carlos Mariátegui e Guilherme Lora, dirigente do POR da Bolívia, falecido em 2009, mas que deu grandes contribuições a esse tema.

Entrando nessa caracterização mais programática, o Brasil integra a América Latina e a gente tem elementos comuns de uma condição de sermos países semicoloniais. Essa condição de sermos países que têm uma economia combinada condiciona que a gente tenha que responder ao problema da questão agrária, da unidade nacional, da soberania nacional, que nunca foi conquistada, e um dos problemas democráticos que a gente tem para enfrentar é também a autodeterminação dos povos indígenas. Isso vai marcar a nossa formação social e também a luta de classes, porque os povos indígenas integram as massas oprimidas.

É claro que, dentro da América Latina, a gente tem particularidades que vêm, até mesmo, de antes do período colonial, de quem eram esses povos originários, qual o grau de desenvolvimento de forças produtivas, havendo desde povos nômades e extrativistas, até povos que conseguiram erguer impérios com os Incas, que inclusive já começavam a ter uma diferenciação social e também já exerciam elementos de opressão sobre outros povos originários. Então tem essas diferenças desde antes da colonização e também decorrentes do processo de colonização. Há que países em que essas massas indígenas foram a base da formação da força de trabalho, há particularidades sobre como se deu a industrialização em cada lugar. Mas nós temos em comum que temos essa questão como parte da revolução na América Latina para ser respondida. Os indígenas formam parte das massas oprimidas e, junto com outros setores do campo: camponeses pobres, ribeirinhos, extrativistas, estão em choque permanente com a burguesia agrária, com a fração imperialista, os mineradores, sejam eles legais ou ilegais. 

A sobrevivência dessas nacionalidades depende fundamentalmente da garantia da posse da terra e da sua real autodeterminação. Esse caso dos Yanomami, e tantos outros, expõem que o Estado burguês é incapaz de proteger esses povos, suas terras, e suas imensas riquezas da cobiça do poder econômico. Esse Estado burguês do Brasil se ergueu com base no genocídio colonial. Desde a colonização, os indígenas protagonizaram guerras de autodefesa, mas foram massacrados, controlados pelas armas e também pela catequese. Os governos nacionalistas e a ditadura, aplicaram uma resposta nacionalista de “integração” e também “proteção” desde que esses povos não afetassem os interesses do “desenvolvimento nacional”. Foram governos que massacraram de várias maneiras esses povos, mesmo em nome de uma pretensa proteção. 

Já nos fins da ditadura, surge uma articulação nacional dos povos indígenas, com base em assembleias, enfrentando os efeitos das ações do governo militar, e bastante vinculados a uma ala da Igreja Católica, que tem uma atuação importante de denúncia, mas que tem seus limites estratégicos. Isso vai chegar à Constituição de 1988 com a conquista da demarcação dos territórios. Mais recentemente, as organizações indígenas têm se vinculado, bastante, a organizações externas como ONGs, fundações vinculadas à socialdemocracia europeia e, inclusive, num processo de ampliação da adaptação à política burguesa, com suas lideranças ampliando as candidaturas por meio de partidos centristas, reformistas ou mesmo partidos burgueses. 

Mesmo quando o Estado se apresenta como protetor dos indígenas, isso não pode ocultar que ele já mostrou sua total incapacidade de frear a violência dos exploradores. Sendo que há momentos em que o governo, se junta abertamente aos violadores, como foi o caso de Bolsonaro ou do governador de Roraima. O fundamental entender que a preservação das nacionalidades indígenas e o atendimento de suas necessidades não são conciliáveis com os interesses da burguesia e suas frações. 

Uma outra questão para a gente debater é que classe pode eliminar essa opressão sobre as nações indígenas?

Há países imperialistas falando que vão socorrer os Yanomami, porém, nenhuma solução progressiva virá das potências imperialistas e de suas organizações internacionais, como as COPs, a ONU e tal. Quando eles atuam para “proteger” as florestas e o meio ambiente, fazem isso aspirando a prioridade na exploração da riquezas desse territórios, seja imediatamente, seja futuramente. Mascarando essa exploração com o discurso verde da sustentabilidade. Então não podemos esperar nada da burguesia imperialista.

Sobre a burguesia nacional, ela nunca teve um plano de proteção a esses povos. O nacionalismo aplicou uma política de “integração”, de “modernização” com base na aculturação. Mesmo quando criaram as reservas, isso estava subordinado à política de genocídio, com deslocamentos para avançar em projetos econômicos de construção de estradas, expansão de fronteiras agrícolas, hidrelétricas, etc.

Ao comentar sobre a resposta das classes a esse problema, é importante considerar qual a política da pequena burguesia. Hoje, várias das organizações indígenas estão se ligando à política, por exemplo, do PSOL. A pequena burguesia gosta muito de aplicar as pseudoteorias identitárias, falar de protagonismo dos próprios oprimidos na solução dos seus problemas, mas, invariavelmente, para além da aparência, a política deles confia em uma ala do imperialismo ou da burguesia nacional. Eles não conseguem ter uma resposta própria. 

Uma resposta classista e revolucionária vai depender da luta unitária das massas oprimidas do campo, das florestas e das cidades, de uma aliança da classe operária com a classe camponesa com os povos indígenas, mas com uma direção do ponto de vista do projeto do proletariado, porque é a classe operária que expressa o antagonismo com a burguesia e que pode dirigir essa maioria nacional oprimida na luta pela solução dos seus problemas. O que só vai poder se dar pela via revolucionária. O Partido Operário Revolucionário, dentro dessa linha, luta ao lado do movimento indígena pelo atendimento das suas reivindicações, mas também defende que a real autodeterminação desses povos tem que ser entendida como é entendido mesmo o direito de autodeterminação nacional, que pressupõe, inclusive, o direito desses povos se separarem em relação ao Estado que os oprime, para que eles possam ter real soberania sobre os seus territórios, sobre o seu modo de vida. Isso só pode ser viabilizado por um Estado operário, que poderia deixar esses povos livres para, inclusive, se separarem e, se quiserem, se federarem com esse Estado, mas quebrando a relação de subordinação e o vínculo de opressão nacional.

Esse é um programa defendido pelos marxistas. Não é que a gente tenha uma defesa de mais fronteiras nacionais. Pelo contrário, a gente quer o fim dessas fronteiras, uma união de todos os povos. Mas, havendo uma nação oprimida no nosso território, é dever dos revolucionários defender o seu direito à autodeterminação, inclusive se eles quiserem se separar. Um programa como esse condiciona também quais são os métodos as táticas. Os povos indígenas já têm um amplo arsenal de experiências, de formas de autodefesa, de ação direta, de bloqueio de rodovias, até mesmo de fazer reféns aqueles que estão invadindo seu território. Eles têm várias maneiras de auto-organização e a gente precisa avançar nesses métodos, em unidade com os demais oprimidos também do campo da cidade. Isso vai no sentido contrário do que tem levado eles abandonarem seus métodos próprios e confiar cada vez na política jurídico-parlamentar, a se iludir com o próprio Estado burguês.

Falando nisso, é importante a gente fazer um balanço das falsas soluções que são apresentadas. Começa a aparecer mais aqui no debate do Brasil, por exemplo, a questão de Estado plurinacional, a proposta  de constitucionalizar o princípio do Bem Viver etc. Para fazer um balanço dessas alternativas, é interessante ver que as respostas dos Estados nacionais aqui na América Latina ela sempre se dão dentro dos marcos das orientações do imperialismo, por meio das suas organizações internacionais. Por exemplo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem o convênio 107, de 1957, que baseia a visão nacionalista em relação ao enfrentamento da questão indígena. Esse convênio falava que os povos originários eram populações transitórias que tendiam a desaparecer com a modernização e que só se poderia garantir seus costumes se isso fosse compatível com a segurança nacional ou com desenvolvimento nacional.  Na prática, se orientava inclusive a deslocar esses povos, caso sua presença afetasse algum interesse econômico ou político. Em 1989, se muda esse parâmetro com o convênio 169. Em vez de “populações” começa a se denominar de “povos”, reconhecendo a identidade como povo, sua cosmovisão, porém já no primeiro artigo do convênio 169/1989 da OIT já esclarecem que não é garantido a esses povos o que o direito internacional formalmente estabelece, ou seja, o seu direito de autodeterminação. 

Na América Latina, a partir dos anos 2000, houve várias lutas e insurreições populares com grande presença indígena, principalmente nos países andinos, como Bolívia e Equador. Isso desembocou num processo de criação de constituições que incluíram o princípio da plurinacionalidade. Mas é falso que essas experiências tenham resultado em Estados de todas as nações, de todas as classes, permanece o velho Estado burguês, mesmo que tenha um discurso principalmente voltado ao exterior, em torno da Pacha Mama, da natureza como sujeito de direitos, como é o caso do governo de Evo Morales, na Bolívia. Ele fazia todo esse discurso para fora do país, mas dentro da Bolívia, pelas condições econômicas, ele tem que fazer mineração a céu aberto. Aí não tem discussão se o rio é um sujeito de direito ou não. O Estado vai massacrar o povo indígena, mesmo que o presidente seja alguém de origem indígena, e vai destruir a natureza. Esse é um exemplo bem claro que mostra como o Estado burguês não tem como ser reformado, independente de quem ocupa a cadeira presidencial. 

Esses processos  também incluíram a constitucionalização do Bem Viver. Prometem, ao colocar isso na Constituição, garantir uma convivência harmônica de todo tipo de propriedade, desde a propriedade monopolista até a propriedade comunal. E idealizam muito a questão como se os indígenas sempre tivessem querido conviver com o colonizador. Há autores como Boaventura de Souza Santos que teorizam isso e falsificam a história de resistência desses povos. Basta ver, por exemplo, a trajetória dos Mapuche. 

Vou abrir um parênteses para falar dos Mapuche, porque eles são um povo que conseguiu se erguer como nação e defender a autodeterminação nesse sentido de ter seu próprio território. É uma experiência muito interessante da gente aprender com eles. Esse povo que tem o seu território no que a gente conhece como território do Chile e do sul da Argentina. Eles têm uma trajetória de resistência antes mesmo da colonização porque eles conseguiram resistir quando os Incas estavam já criando estruturas de opressão sobre outros povos. Isso preparou eles para quando vieram os colonizadores espanhóis, eles resistiram, se infiltraram no exército espanhol, conheceram suas táticas militares e, em 1550, conseguiram derrotar o exército do colonizador. Inclusive dizem que fizeram os espanhóis engolirem ouro. Os Mapuche estabeleceram uma relação com a coroa espanhola em que existia uma demarcação do seu território. 

Ao longo da história chilena, na independência eles tiveram legislações de demarcação e eles foram perdendo territórios, sob o governo Allende, com base nas suas próprias lutas, eles recuperaram parte do território. E, novamente, com a democratização, o Estado burguês segue atacando esses povos e continuam negando o seu direito de autodeterminação. Seja o governo Bachelet, seja o governo de direita de Piñera, ou seja agora o governo Boric. Os levantes de 2019 tiveram uma importância enorme também dos Mapuche. A canalização no processo institucional por meio da Constituinte, não por acaso, colocou na presidência da Assembleia Constituinte uma liderança indígena, mas mesmo assim esse povo rechaçou a farsa da nova Constituição. Eles se recusam, muito claramente, a ser os “índios do Chile” e afirmam “somos o povo Mapuche, um povo próprio, que quer ter o seu próprio território e quer ter o seu próprio Estado”.

Essa experiência mostra bem a necessidade de quebrar essa visão romantizada, que vem junto com a recusa da bandeira do socialismo, que seria etnocêntrica, que deveria ser substituída pela do Bem Viver. Muitas falsificações são feitas em nome da apropriação desses modos de vida, como se eles fossem compatíveis com o Estado burguês. Portanto, falar de autodeterminação sem real independência é um contracenso. Mas a maior parte dos povos indígenas acabam se guiando por essa concepção de autodeterminação limitada, por conta da trajetória de genocídio, de dominação, e até mesmo de como foram submetidos ao controle religioso e ideológico das classes e nacionalidades dominantes. 

Temos, no entanto, bases históricas e teóricas para defender uma solução para esse problema, que passa pela revolução proletária. Por isso que a gente está nessa tarefa de construir o Partido Operário Revolucionário. E a gente se apoia no que há de mais avançado na elaboração sobre isso na América Latina. O peruano José Mariátegui, na década de 1920, já falava que o problema indígena é a questão da terra que não adianta reivindicar o direito à educação, à cultura, ao amor, ao céu. Tem que começar pela terra. E Guilherme Lora, que aplicou esse programa da resposta ao problema da opressão Nacional na Bolívia, respondendo a essa questão da opressão sobre os povos indígenas com o programa de autodeterminação como parte do programa da revolução proletária. 

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¹Transcrição com  adaptações da fala inicial no debate na TV A Comuna, dia 31 de janeiro de 2023. Para assistir, clique logo abaixo:

² Militante do Partido Operário Revolucionário.

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