Por Ivan Ducatti
A eugenia foi um conjunto de ideias e práticas reacionárias e racistas relativas ao “melhoramento da raça” (termo criado por Francis Galton, no século XIX). O recurso à eugenia realizado pelo capital imperialista, na Europa e nos Estados Unidos, buscava justificar atrasos econômicos e todas as questões relativas ao pauperismo (“questão social”), debitando à classe trabalhadora a responsabilidade pela miséria inerente e resultante do próprio modo de produção capitalista. Para os territórios a serem neocolonizados (África, Ásia) ou terem o domínio geopolítico ampliado (América Latina), o imperialismo lançou mão da eugenia para justificar a “inferioridade” dos povos a serem por ele submetidos, para assim legitimar todo o tipo de invasão como “movimento civilizatório”. A prática de extermínio nazista contra revolucionários, judeus, ciganos e outros povos considerados inferiores colocará a eugenia em xeque, com o final da Segunda Guerra Mundial. Seus critérios pseudocientíficos serão questionados e abolidos, no entanto, o legado racista da superioridade racial não cessaria aí. Ao contrário, o racismo triunfa hodiernamente.
Para os elaboradores ideológicos da eugenia – os eugenistas – o “melhoramento da raça” significava sanar os indesejáveis, ao procurar aprimorar geneticamente os genitores, com base nos estudos da hereditariedade, o que incluía portadores de doenças mentais, portadores de “impulsos criminosos” (classificação dada pelos eugenistas para os considerados “criminosos”), sindicalistas e militantes revolucionários (como ocorreu principalmente na ditadura de Franco, na Espanha). Toda essa ideologia se construía a partir do modelo biológico utilizado na zoologia e na botânica, que se desenvolvia no último quartel do século XIX. A eugenia era entendida, pelos reacionários, como um “processo civilizador”. De inspiração fascista, a eugenia foi um movimento internacional: chegou no Brasil, por exemplo, ao ter sido implantada na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1914, visando uma educação sanitária que tinha como objetivo praticar os postulados da medicina social reacionária e racista, ao pregar o “engrandecimento da raça” (cuja referência para os eugenistas era a branca), por intermédio daquilo que eles consideravam “preservação higiênica”. Assim, higienizar virou sinônimo de eugenizar. Para os eugenistas, havia pessoas que eram aptas ao capital, bem como aquelas que eram; portanto, para esse conjunto de racistas, esterilizar e segregar os considerados “anormais” (os inconvenientes) eram regras básicas a serem seguidas na Saúde Pública.
Para os apologetas do capital – aí incluídos os eugenistas – deve-se perseguir o sempre a manutenção da ordem burguesa. Nesse sentido, tais apologetas (acadêmicos, juristas, jornalistas, médicos, etc) envidam todo o esforço para que a “questão social” seja naturalizada. Para os apologetas do capital, as saídas possíveis para o enfrentamento da pauperização passam, única e exclusivamente, pela reforma moral do ser humano e da sociedade. A eugenia seria esse suporte moralista reacionário, travestido de um falso rigor científico ao responsabilizar a classe trabalhadora, cada vez mais empobrecida, pela sua própria pobreza. Com isso, escamoteia-se, pela moralização, a relação capital/trabalho, determinada pela exploração da burguesia sobre a classe trabalhadora, que no modo de produção capitalista leva, continuamente, à miséria, se esta mesma classe não consegue reagir aos ataques diversificados do capital para a manutenção da exploração. Em resumo, a pobreza de cada trabalhador passa a ser um problema e responsabilidade individuais e não do modo de produção capitalista, cuja dinâmica é a valorização do valor, em detrimento das condições materiais de vida do proletariado.
A eugenia teve duas vertentes principais: a radical (ou “negativa”), que ia da aplicação da esterilização (birth control – Inglaterra, Estados Unidos e Canadá) à prática nazista do extermínio (Alemanha), e a latina (e, por contraste de medidas, conhecida como “positiva”), que visava controlar e proibir casamentos, administrar partos e puerpérios, etc.
Os eugenistas nazistas propunham uma prática que tivesse como base o programa de aplicação de cruzamento seletivo para agricultura e pecuária; como um movimento político reacionário, a eugenia serviu às várias formas de fascismo (para além do nazismo), cujo apoio esmagador provinha de membros da classe média e da burguesia, que pressionavam os governos para a implantação de programas de ações que visassem o controle sobre a classe trabalhadora.
O surgimento da eugenia latina deve-se ao fato de o desenvolvimento dessas ideias ter ocorrido em países de origem latina, Europa e América Latina, onde a Igreja Católica, apesar de ter mantido forte apoio político aos governos fascistas, colocou-se como opositora política às propostas de esterilização e extermínio, conforme ordenamento expresso na Carta Encíclica Casti Connubii (LA SANTA SEDE, 1930), sobre o casamento cristão.
O objetivo da eugenia seria o de buscar o maior número de influências classificadas pelos seus defensores como “positivas” que pudessem ser empregadas em indivíduos. Segundo os eugenistas, para atingir essa meta, seriam necessários algumas ações (em nível estatal): (1) disseminar o conhecimento de leis de hereditariedade, a fim de serem devidamente conhecidas; (2) fazer investigação histórica das taxas com as quais os vários estratos sociais contribuíram para a sua população ao longo do tempo; (3) realizar um inventário sistemático dos fatos que mostrassem as circunstâncias sob as quais originaram as famílias grandes e prósperas; (4) entender as influências negativas que afetariam o casamento; (5) persistir em implementar a importância nacional da eugenia, para que as questões familiares se tornassem matéria acadêmica: a aceitação da eugenia como matéria acadêmica deve ser assegurada como um estudo esperançoso e muito importante.
A crítica marxista à eugenia
Para o marxismo, a análise da eugenia deve partir da análise das concepções irracionalistas filosóficas do pensamento Ocidental, que surge após a Primeira Guerra Mundial (PGM). O pensamento científico do final do século XIX e início do XX correspondia à busca da legitimação do totalitarismo econômico dado pelo imperialismo neocolonial, que teve como expoente o nazifascismo nas décadas de 1930 e 1940. O irracionalismo, cujas fontes teóricas remontam do século XIX, jamais alcançou tamanha dimensão como no século XX, pois tratava-se de uma luta acirrada do grande capital contra a organização dos trabalhadores que ganhavam terreno a partir das revoluções socialistas. O irracionalismo abarcava teses racistas e discriminatórias (entre elas, a eugenia), em que vigorava a supremacia do ser humano ariano, a busca do super-homem, segundo o pensador Georg Lukács.
O ponto culminante da crise da filosofia burguesa se dá com o fascismo, que se ampara na escola filosófica de Nietzsche. A filosofia da burguesia, imperialista, só pode ser compreendida à luz das leis capitalistas, pois é “evidente que a influência da estrutura econômica manifesta-se igualmente no domínio da filosofia” (Lukács, 1967, p. 26). A filosofia burguesa não se propõe refletir sobre como ocorre “a reprodução ininterrupta e incessantemente cambiante de relações humanas” (Lukács, 1967, p. 29). A maioria dos intelectuais encontra-se muito distante do processo do trabalho determinante da estrutura da sociedade capitalista, embora a maioria seja constituída por trabalhadores assalariados. Em suma, há uma grande distância entre a realidade e o pensamento da filosofia imperialista.
O elemento importante para a construção do irracionalismo foi a ideia do vitalismo, produto do pós-Primeira Guerra Mundial, influenciando todo o pensamento das ciências sociais e arte. Essa influência se deveu à situação social e ideológica da Alemanha imperialista, que era uma tentativa filosófica de resolver, do ponto de vista da burguesia imperialista alemã, as questões levantadas pela evolução social, pela classe trabalhadora em ascensão e pelas novas formas da luta. O irracionalismo sempre se revestiu de um discurso de crise cultural e moral, permitindo desviar a atenção dos problemas econômicos reais da burguesia, facilmente capturando sua intelectualidade. Por intermédio do irracionalismo, engendrava-se a crença na eternidade do crescimento capitalista, rejeitando questões universais, mesmo quando a ameaça concreta dos movimentos dos trabalhadores revolucionários colocavam em xeque o progresso do capital, que já havia empreitado uma guerra de dimensão mundial.
O irracionalismo eugênico permitia aos eugenistas acreditarem na influência do meio físico na formação e constituição geral dos seres humanos, e os eugenistas afirmavam que, quando uma pessoa se encontrava em baixa “escala social”, esta já se encontrava em meio ambiente de pouca salubridade, de alta circulação de pessoas, alterando negativamente a constituição hereditária; consequentemente isso levaria o indivíduo à incapacidade de se ajustar a uma determinada sociedade. Ainda que tenham surgido vozes de eugenistas menos refratários à construção do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) no pós-Segunda Guerra Mundial, os quais poderiam concordar com o fato de que a melhoria da renda significaria a melhoria da vida da classe trabalhadora, a culpabilização do indivíduo pela sua miséria não deixou de ser o traço central do pensamento eugênico.
Concluindo…
A construção da eugenia é analisada majoritariamente, mesmo nos trabalhos mais críticos, a partir da perspectiva epistemológica: desenvolvem-se a construção e a evolução do termo (quando muito com algumas implicações ao racismo científico); tais pressupostos epistemológicos ocorrem em torno de debates, discussões, polêmicas científicas, projetos de lei, etc, que visam buscar uma solução para controle de casamentos e nascimentos. Os discursos acadêmicos, os congressos e eventos gerais acerca da eugenia foram pensados e tematizados por uma gama de intelectuais, no entanto, são ainda pequenos os estudos acerca da concretude dessas ideias na institucionalização e estruturação da eugenia. Para a concreta implantação da eugenia como política pública fascista seriam necessárias inversões, no plano estatal, para sua aplicação. Não há ainda análises que corroborem estudos econômicos sobre a relação entre estado e política eugênica e higienista.
Há uma inversão no pensamento burguês dos intelectuais comprometidos com os interesses do capital em conceituar a eugenia (seja ela radical ou latina) em relação ao racismo: para os adeptos da epistemologia, estes o fazem apresentando-a como precursora deste último; porém a realidade é inversa: um/a cientista somente pode conceber a positividade da eugenia, se este concordar com teses racistas, se ele ou ela for um racista; a eugenia existiu, porque havia uma sociedade estruturalmente formada nos pilares racistas, e não o contrário, portanto passível de denúncia pela sua função enquanto arma ideológica a serviço do capital, e não como mero fenômeno a ser descrito em termos conceituais.
A eugenia, latina ou radical, expressava a necessidade de o grande capital, por intermédio do fascismo (sua expressão política mais abrupta e violenta), controlar a classe trabalhadora, que se agitava contra as contradições cada vez mais crescentes desse modo de produção. Considerando, sinteticamente, que (1) cada modo de produção organiza a vida societal e econômica de povos e sociedades, e (2) essa organização se expressa na economia política, administrada pelo Estado da classe dominante, há uma ausência de estudos, que elaborem a eugenia conjugada à economia, que é elemento básico e estruturante da produção e reprodução da vida social.
Referências
BOARINI, Maria Lúcia e YAMAMOTO, Oswaldo. Higienismo e eugenia: discursos que não envelhecem. Psicologia Revista, vol. 13, n.1. São Paulo: Educ, p. 59-72. 2004.
DUCATTI, Ivan. A eugenia no Brasil: uma pseudociência como suporte no trato da “questão social”. Temporalis, 15(30), 2006, 259–280. https://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/10959
GALTON, Francis. Essays in Eugenics. Londres: The Eugenics Education Society, 1909. HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
LA SANTA SEDE. Lettera Enciclica Casti Connubii ai Venerabili Fratelli Patriarchi Primati Arcivescovi, Vescovi e agli Ordinari Aventi com l´Apostolica Sede Pace e Comunione: sul Matrimonio Cristiano. Estado do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1930.
LUKÁCS, Georg. Existencialismo ou marxismo. São Paulo: Senzala, 1967.
STEPAN, Nancy Leys. “The hour of eugenics”: race, gender, and nation in Latin America. Ithaca (EUA), Cornell University Press, 1991.
_____________________________________________________________________
1 Este artigo é um resumo de outro artigo, já publicado, do mesmo autor. Ver “Referências”.
² Doutor em História Contemporânea pela USP/SP Prof. História Contemporânea (UFF)