Por João Emiliano Fortaleza de Aquino*
RESUMO:
Este artigo discute os conceitos de regressão e coexistência do não coetâneo em Nelson Werneck Sodré, sob as hipóteses de que 1) buscam dar conta de uma situação histórica marcada pela modernização conservadora da sociedade brasileira, 2) se articulam com base no debate com Ignácio Rangel e Celso Furtado e 3) expressam uma concepção de história à contracorrente do materialismo histórico então hegemônico, ainda que Sodré não tenha como programa teórico fazer a crítica dessa concepção marxista dominante.
PALAVRAS-CHAVE: Materialismo histórico. Regressão histórica. Coexistência do não coetâneo. Nelson Werneck Sodré.
A Luciana Cantalice
Os anos 50 e 60 do século passado constituíram um período em que o marxismo no Brasil, tratando da “matéria brasileira” (SCHWARZ, 1999), alcançou formas teóricas originais e criativas, mesmo não pretendendo rupturas com o quadro, sem dúvida, problemático do materialismo histórico de então. Sem estabelecerem polêmicas com o marxismo oficial, mas, ao contrário, considerando-se fiéis a ele, importantes autores – tais são os casos de Ignácio Rangel, Nelson Werneck Sodré e Alberto Passos Guimarães – conceberam, tendo os olhos na realidade nacional, uma original dialética do desenvolvimento histórico que, contudo, se distancia desse mesmo marxismo hegemônico.
Afastando-se de uma concepção unilinear de desenvolvimento social, e mesmo do quadro fixo de sucessão dos modos de produção estabelecido no campo político oriundo da Terceira Internacional, esses autores introduziram no debate teórico-filosófico nacional noções que permitem pensar processos de regressão histórica e, em consequência, a unidade, e não apenas a simples sucessão ou mesmo justaposição, numa mesma formação social, de formas econômicas distintas, até mesmo contrárias, baseadas em níveis historicamente muito desiguais de desenvolvimento das forças produtivas.
Ao invés de uma sucessão fixa de modos de produção e formações econômico-sociais que se alinha conforme uma progressão cujo critério é o desenvolvimento das forças produtivas,1 esses autores foram levados, dada a dinâmica específica da realidade nacional de que buscavam dar conta, a uma concepção de história na qual descartam a unilinearidade do desenvolvimento histórico e, por conta e em consequência disso, a ideia do “progresso como […] uma norma histórica” (BENJAMIN, 2005, § VIII).2
Nessa concepção de história a que se conduzem, dois conceitos emergem como fundamentais: o de regressão e o de coexistência do não coetâneo.
A obra na qual esses dois conceitos se encontram e se articulam é Formação histórica do Brasil (1962), de Nelson Werneck Sodré. Dando sequência à Introdução à revolução brasileira (1958), Sodré tenta mostrar na Formação histórica, entre outras coisas, a existência de relações sociais feudais e semifeudais no campo brasileiro (e, neste caso, estamos sem dúvida num terreno político bastante tradicional). Ela é escrita após e em diálogo com Dualidade básica da economia brasileira (1957), de Ignácio Rangel, e Formação econômica do Brasil (1958), de Celso Furtado. São nessas obras que esses conceitos são inicialmente encontrados – o de coexistência do não coetâneo em Rangel e o de regressão em Furtado –, nelas constituindo determinidades da história econômica, quando não, de teoria econômica. Em Sodré, porque ele trata da formação histórica brasileira, ocupam o terreno da concepção de história, embora sem se afastar do objeto que tem em vista desde o início: nossa formação social.
O período de industrialização que o Brasil então vive, intensificada na segunda metade dos anos 1950, sem que a tradicional concentração agrária tenha se modificado, põe um problema para o pensamento social brasileiro.3 A nova realidade econômica torna necessário conceber essa experiência de modernização da economia (industrialização, urbanização, ampliação de relações capitalistas no campo, mercantilização da vida cotidiana etc.), experiência à primeira vista inesperada, pois toda a perspectiva estabelecida na e pela esquerda era a de que não seria possível esse processo sem as transformações na propriedade fundiária, a diversificação da produção agrícola, a criação de um mercado interno etc. Já a primeira tentativa marxista de interpretação da realidade nacional, Agrarismo e industrialismo (1926), de Octávio Brandão, se assenta nessa suposta contradição entre concentração fundiária e modernização econômica.4
Como base do programa político do partido comunista, essa interpretação do Brasil permanece, com alterações inessenciais, pelo menos até o final dos anos 1960.5 Por isso, os teóricos marxistas próximos ou membros do partido comunista têm, entre os anos finais da década 1950 e a seguinte, um real problema teórico diante de si, o de compreender esse desenvolvimento capitalista no país com bases e em via distintas daquelas que ocorreram nos países capitalistas mais desenvolvidos e que primeiro realizaram transformações modernizadoras.6 Pensar a especificidade histórica do capitalismo no Brasil tinha sido até então o esforço de Caio Prado Junior; e em Prado esse esforço significara, desde o começo, a recusa da caracterização das relações sociais do período colonial, e mesmo as de então, como feudais,7 caracterização que, contudo, Rangel, Sodré e Guimarães sustentam. E esse é o problema que precisam pensar: como se articulam entre si a manutenção de relações sociais feudais no campo e o avanço capitalista da industrialização.
É nesse contexto de industrialização por vias não previstas nem desejadas que intervém a obra de Ignácio Rangel. No dizer de Guerreiro Ramos, ela trata, na verdade, de coisa mais ampla. A velha questão, que remonta aos debates do Segundo Império, do descompasso entre nossa realidade nacional e formas institucionais e valores culturais estrangeiros que se lhe aderem (ou buscam a ela aderir), encontraria nessa obra uma resolução teórica. Dos nacionalistas do início do XIX, que em nome da pátria resistiam às pressões inglesas pelo fim do tráfico escravo, aos conservadores da segunda metade do mesmo século, não foram poucas as vezes em que se bradou contra a irrealidade, entre nós, das ideias originadas em outras culturas e sociedades (particularmente, as ideias liberais). Haveria algo “pra frente” (e artificial) na nossa relação com o mundo e “para trás” em nossa realidade nacional mais própria e interna, assim como tínhamos uma superestrutura moderna, liberal, “inglesa” no Segundo Reinado, por cima e acima de uma economia escravista, latifundiária, também marcada pela dependência econômica e pessoal aos grandes proprietários de alguns milhões de lavradores juridicamente livres (e despossuídos).
Segundo Guerreiro Ramos (RANGEL, 1999, p. 7), nos debates que desde o início dos anos 1950 ele mantinha com Rangel, tratava-se do que, tomando a expressão de Spengler, ambos chamavam de pseudomorfose: “o fato de que no Brasil se verificava uma imposição de estilos culturais e institucionais estrangeiros, sobre uma realidade original, cuja expressão e estilização são dificultadas pela própria artificialidade daqueles elementos adventícios”.
Constitui-se mesmo num empréstimo! “Pseudomorfoses históricas são para mim aqueles casos”, diz Spenlger (1973, p. 295),
em que uma velha cultura estranha pesava com tamanha força sobre um país que uma cultura nova, autóctone, não conseguiu respirar e se tornou incapaz, não só de desenvolver formas expressivas peculiares e puras, mas também de alcançar a plenitude de sua consciência própria.
Ora, não é exatamente este o uso do termo por Ramos e Rangel; e por um motivo simples: o “velho” (externo) e o “novo” (interno) não mantêm uma estraneidade entre si, de modo que o que se lhe ajunta como externo não impede o interno de se desenvolver. Ao contrário, é própria à realidade nacional, desde seu interior, essa duplicidade – melhor dizendo, essa dualidade. Diz Rangel (1999, p. 15):
Meus estudos levaram-me à conclusão de que nossa peculiaridade por excelência é a dualidade, no sentido que atribuo a esse termo, isto é, o fato de que todos os nossos institutos, todas as nossas categorias – o latifúndio, a indústria, o comércio, o capital, o trabalho e nossa própria economia nacional – são mistos, têm dupla natureza, e se nos afiguram coisas diversas, se vistos do interior ou do exterior, respectivamente.
Essa tese da dualidade não pode ser identificada sem mais a uma concepção dualista, pois, ao contrário desta, não estabelece polos excludentes e em trânsito (um atrasado e um avançado, por exemplo), mas sim polos unificados, ainda que divergentes, nos mesmos fenômenos. Todas as categorias (ou determinações) de nossa formação social têm dupla natureza, diz de outra forma Rangel; uma dualidade que, sendo-lhe constitutiva, se encaminha e se manifesta em determinações distintas em seu metabolismo interno e em suas relações externas, metabolismo e relações que não são estranhos entre si, como no conceito de pseudomorfose em Spengler, mas cuja unidade constitui a lógica própria de nossa formação social.
Desse modo, posso dizer que essa noção de dualidade é tanto descritiva quanto lógica. Descritiva, pois informa o processo histórico no qual a sociedade brasileira veio a ser e permanece, em cada um de suas grandes fases. Mas não se constitui apenas numa noção que ajuda a descrever gênese e desdobramentos históricos específicos da formação social brasileira: ela oferece também inteligibilidade ao seu modo de ser. Por isso, Rangel (1999, p. 32) a concebe como “a lei básica fundamental da economia brasileira”, e a define assim (itálicos no original): “A economia brasileira se rege basicamente, em todos os níveis, por duas ordens de leis tendenciais que imperam respectivamente no campo das relações internas de produção e no das relações externas de produção”.
Duas ordens de leis tendenciais atuam, uma internamente, outra externamente, como desdobramentos de uma mesma e única lei que move essa formação social em sua totalidade. Em outras palavras, de modo inverso, uma única lei dessa formação social se encaminha através de duas legalidades econômicas, se se considera seu movimento interno ou seu movimento externo. Ao invés de legalidades econômicas descompassadas, mas justapostas, temos legalidades distintas atuando em conformidade, com base numa legalidade única. Por isso, a dualidade ganha o status de lei – a lei básica de nossa economia.
A gênese dessa natureza dual de nossas formas econômicas estaria no processo histórico de como emergimos na e passamos a participar da economia mundial: a colonização. Diferentemente das sociedades pioneiras na constituição do mercado mundial, não nos conduzimos a este a partir de “forças internas”, pois “nossa evolução não é autônoma”, já que nossa “economia nasceu e se desenvolveu como complemento de uma economia heterogênea [à nossa] e sempre esteve sujeita a suas vicissitudes” (RANGEL, 1999, p. 29). Em outras palavras, à lógica interna da economia brasileira se impôs, desde o início, a adstrição ao modo de ser de uma economia externa a ela. Como adstrita a essa economia externa, a economia nacional não a tem (e à sua lógica) como estranha a si (e à sua própria lógica), mas mantém essa heterogeneidade como própria ao seu movimento interno.
Essa natureza dual, assim concebida por Rangel, se inaugura na sociedade colonial, que, fundada numa economia escravista, se constitui numa empresa comercial em suas relações externas. Inscrevendo sua interpretação na de Caio Prado (1947, p. 15), para quem a expansão colonial portuguesa é uma “vasta empresa comercial”, Rangel (1999, p. 30) lembra que a “fazenda de escravos […] nasceu e se desenvolveu tendo em vista o comércio. Era, ela própria, uma empresa mercantil, dedicada a atender às necessidades do mercado mundial”.8
Ora, na concepção de Caio Prado, nisto seguido por Rangel, essa relação econômica da economia escravista – como unidade produtora de mercadorias – com o mercado mundial não é algo que apenas de fora se sobrepõe à economia colonial, mas é o que a funda historicamente e o que a constitui em sua lógica interna. Nos casos brasileiro e similares, a colonização não se exerce externamente, sobre uma economia nacional pré-existente; diante da inexistência anterior dessa economia, a colonização teve que constitui-la, organizá-la, atuando nela internamente, orientando desde dentro o sentido dessa economia para fora.9
E é essa orientação para o mercado mundial (portanto, como empresa comercial), que, nas condições do Brasil de então, estabelece a lógica interna da produção escravista, por definição baseada numa forma social não-mercantil da força de trabalho (e, a rigor, oposta a ela). Mais do que uma justaposição casual, uma adstrição necessária naquelas condições. A bem da verdade, neste aspecto estamos num ponto quase consensual da interpretação marxista da economia colonial, com a exceção, nos autores com que estamos lidando aqui, de Alberto Passos Guimarães.10
N. W. Sodré, na sequência de Prado Junior, Rangel e Celso Furtado (1961), e em debate principalmente com este último, concebe a sociedade colonial como escravista, excluindo as hipóteses de que fosse feudal ou capitalista. E, justamente nisso, identifica um movimento regressivo, ainda não tematizado conceitualmente nesse momento de sua exposição, no desenvolvimento aqui de relações sociais fundadas no trabalho escravo: “Assiste-se, assim, o colonizador, originário de uma área em que domina o modo feudal de produção, regredir ao modo escravista, por imposição da finalidade mesma da produção colonial” (SODRÉ, 1963, p. 70). A finalidade: “produzir para o mercado externo” (ibidem); consequência: “o colonizador, senhor de escravos, […] regride do modo feudal ao modo escravista” (ibidem).11
Por enquanto, adio a discussão sobre esse conceito de regressão, e retorno a Rangel. Para o autor da Dualidade básica, esse processo, que aparece a Sodré como regressivo, instaura (ou, talvez, manifeste) uma sobredeterminação de legalidades econômicas na mesma e una economia colonial, em que a lógica escravista interna se articula de modo essencial com a lógica comercial externa; e, dessa forma, a economia colonial escravista se insere na economia comercial, própria ao período de acumulação primitiva do capital na Europa. “O senhor de escravo brasileiro era, ao mesmo tempo, um dominus, no sentido romano”, diz Rangel (1999, p. 30), “e um comerciante, no sentido holandês do século XVII, ou um industrial, no sentido inglês dos séculos XVIII e XIX”. Legalidades distintas, temporalidades históricas diversas, embora contemporâneas.
Essa dualidade, que se constitui na lógica de nossa formação social, se manifesta em mais dois outros períodos aos quais Rangel se refere. Concebendo como feudais as relações sociais internas ao latifúndio da segunda metade do século XX,12 Rangel (1999, p. 31) diz que, nele,
a fazenda se relaciona com outras unidades da economia nacional e com o mercado mundial, como se fosse uma empresa capitalista; mas no interior, entre o latifundiário e os “agregados”, essas relações são, em essência, de enfiteuse [i.é., feudais]. (Ultimamente, esboçam-se aí relações de outro tipo, de tipo capitalista)
Em outras palavras, internamente feudais, os latifúndios se relacionam entre si e com outras unidades econômicas (produtivas, comerciais) no e através do mercado, em relações monetário mercantis, ainda que não sejam essas as que vigorem em seu próprio interior. Sua legalidade interna se insere numa legalidade externa que lhe é distinta – no limite, oposta. A mesma lógica, só que de modo invertido, ocorre com a empresa capitalista, na qual
a dualidade perdura porque o mercado capitalista para o qual a fábrica trabalha e da qual tira muitos dos fatores de produção que emprega, é menos capitalista do que a própria fábrica. Este mercado, embora seja capitalista se comparado com o latifúndio, comporta-se como feudal do ponto de vista da fábrica. (RANGEL, 1999, p. 36).
Nesse caso, o “atrasado” não está dentro (como no caso dos latifúndios), mas fora (no mercado), as empresas capitalistas sendo, para este último, o “avançado”. Como a maior parte do trabalho nacional é doméstico (trabalho gratuito), em pequena produção (não-capitalista) e servil (enfiteuse), o mercado é, em sua forma econômica, menos capitalista do que são internamente as fábricas. Assim, capitalistas em seu interior, as fábricas se inserem num mercado não-capitalista (diria ele: de comportamento feudal).
Naturalmente, Rangel admite a tese de orientação materialista histórica de que as relações de produção conformes às forças produtivas mais avançadas têm, por conta dessas últimas, poder de pressão e atração sobre as relações de produção baseadas em forças produtivas menos desenvolvidas. Trata-se aqui de algo bem simples, empiricamente verificável: em qualquer sociedade humana, trabalhos mais produtivos tendem – pela economia de tempo e de esforço humanos que oferecem – a exercer atração sobre trabalhos menos produtivos. (Excetuam-se atividades específicas como o sacrifício ritual, o trabalho religioso etc., que cumprem funções simbólicas no interior dessas economias). Nessa ótica, essas formas econômicas mais produtivas atrairiam para si, em termos formais, as economias menos produtivas. Contudo, se este é um movimento razoável, diz Rangel, “não é obrigatório” (RANGEL, 1999, p. 32); pelo menos, não no plano histórico. Em sua análise, teria acontecido algo assim em nossa própria formação histórica quando da abolição da escravatura, e justamente por conta da lei da dualidade: “A pressão do comércio capitalista, como consequência da revolução industrial, não provocou entre nós o aparecimento do capitalismo no interior da fazenda de escravos, mas o aparecimento de uma ordem feudal”.
Neste caso, à economia escravista dos quatro primeiros séculos seguiu uma economia feudal, e isso graças à ação do mercado capitalista sobre aquela mesma economia escravista (com a qual ela compunha uma unidade dual). Embora pressionada pelas condições de troca do mercado mundial (pressões econômicas em termos de perda de produtividade do trabalho escravo), a economia escravista não se moveu em direção à sua contrapartida, a economia capitalista, mas à feudal, forma de produção inferior à capitalista em termos de forças produtivas e de divisão do trabalho (portanto, de produtividade do trabalho).
Essa interpretação, por questionável que seja em termos de história econômica (e efetivamente o é), é generosa em termos de concepção da história, pois quebra justamente com a unilinearidade da sucessão ascendente das formas econômicas. Aceitando em princípio o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho como critério de uma “hierarquia das relações de produção” (portanto, de modos de produção), Rangel (1999, p. 32) defende que essa hierarquia teórica é “a inversa da que nos apresenta a cronologia histórica”. Em outras palavras, nem sempre as sociedades avançam em suas relações econômicas.
Por vários motivos é estranho, mas Sodré não registra na Formação histórica sua leitura da Dualidade, ainda que seja pouco provável que não a tenha lido. São duas obras desenvolvidas no interior do importante grupo de intelectuais, que foi o Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Rangel publicara seu ensaio pelo ISEB, em 1957, com Apresentação de Guerreira Ramos, fundador e um dos cabeças da instituição. Sodré (1963, p. ix) adverte, no Prefácio da Formação histórica, que é de 1962, que ela “é resultado direto de um curso, o de Formação Histórica do Brasil, por mim professado no Instituto Superior de Estudos Brasileiros, desde 1956”. Ainda que Sodré não tenha lido o ensaio de Rangel, são importantes, e constatáveis, as continuidades conceituais entre as duas obras. Elas aparecem, explicitamente, no conceito de coexistência do não coetâneo e, em seu raciocínio essencial, na concepção da regressão.
Diferentemente da Dualidade, a Formação econômica do Brasil, obra de Celso Furtado que expressa o campo político e teórico da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), é, por várias vezes, citada na Formação histórica. É nela que aparece a concepção do feudalismo como regressão econômica, concepção esta central à interpretação do campo brasileiro por Sodré. Vamos a ela.
No Capítulo IX de sua obra, Furtado discute sobre as possibilidades de expansão e evolução estrutural da economia escravista (e, ao final, conclui como não possíveis). Com esse objetivo, mostra que a economia escravista-exportadora não produz internamente um fluxo (circulação) de renda monetária, pois todos os seus pagamentos (equipamentos, materiais de construção, consumo de luxo e mão-de-obra escrava) são feitos no exterior, diferente do que ocorre com uma economia industrial capitalista, que paga força de trabalho e pelo menos parte dos meios de produção na sociedade em que atua, alavancando nela uma circulação monetária.
Celso Furtado lembra que a alimentação, as vestimentas, os móveis etc. de um engenho escravista são produzidos no próprio engenho, com força de trabalho cujo custo se paga no momento da aquisição do escravo no exterior e cuja manutenção (ou reprodução: alimentação etc.) é garantida pelo próprio trabalho escravo (daí que os custos dessa reprodução sejam deduzidos do tempo de uso do trabalho do escravo). Nesses termos, o engenho é uma unidade produtiva autônoma, não dependendo de um mercado.13 Isso não significa, contudo, que não fossem feitos os cálculos monetários (custos das importações de equipamentos, materiais e escravos, dos juros de empréstimos etc., bem como dos valores das vendas, dos pagamentos de frete, de impostos reais etc.), como base de cálculo de lucros (que, como em qualquer contabilidade mercantil, se constituía da diferença monetária entre saídas e entradas).14
Igualmente ocorria com os lucros do senhor de engenho: “Esse incremento da renda não tinha, entretanto, expressão monetária, pois não era objeto de nenhum pagamento [em dinheiro e internamente, acrescento]” (FURTADO, 1961, p. 64). Em outras palavras, ainda que calculados monetariamente, não era em dinheiro que, pelo menos nos dois primeiros séculos, o senhor de engenho recebia seus lucros;15 e isso não significa que sua contabilidade não fosse monetária.16
Faço essa retomada para situar em que contexto aparece na discussão de Celso Furtado o conceito de regressão. Estabelecida a natureza monetária dos cálculos econômicos que contabilizam a produção escravista-exportadora, apesar de ela não se expressar monetariamente em suas relações internas (pois escravistas), limitando-se essa expressão à relação entre o engenho e seus parceiros comerciais no exterior, Furtado (1961, p. 66, itálicos meus) polemiza com as teses que interpretam essa economia escravista-exportadora como feudal, dada a “natureza puramente contábil do fluxo [monetário] de renda”. E explica:
O feudalismo é um fenômeno de regressão que traduz o atrofiamento de uma estrutura econômica. Esse atrofiamento resulta do isolamento imposto a uma economia, isolamento que engendra grande diminuição da produtividade pela impossibilidade em que se encontra o sistema de tirar partido da especialização e da divisão do trabalho que o nível da técnica já alcançado lhe permite.17
Retomo a citação acima: o que faz do feudalismo uma regressão é que ele é resultado do atrofiamento de uma economia, que antes conhecia níveis de divisão do trabalho (especialização) e de desenvolvimento das forças produtivas (produtividade) superiores ao que vem a conhecer ao final, e isso devido ao seu isolamento. É essa concepção de regressão que Sodré toma para pensar alguns fenômenos econômicos na história do Brasil, fenômenos que ele considera de regressão feudal.
Antes de ir a eles, note-se que não é este o mesmo sentido de regressão que lhe permitira, no caso da montagem colonial do escravismo, considerá-lo regressivo. Quando considerou o escravismo no Brasil uma regressão frente à sociedade feudal portuguesa (mesmo que esta já estivesse em crise, sob a ascensão do capital comercial), Sodré teve como referência o quadro tradicional da sucessão de modos de produção, que se substituiriam conforme seus níveis de produtividade (portanto, de desenvolvimento das forças produtivas: o escravismo aqui seria uma regressão frente ao feudalismo europeu, que, na própria Europa, seria posterior e superior ao escravismo antigo. Já quando passa a operar com o conceito de regressão com que Celso Furtado concebe o feudalismo, Sodré o pensa regressivo como fenômeno de declínio de produtividade no interior de outras relações sociais hegemônicas (ora do próprio escravismo, que passa a não mais ser considerado regressivo em face do feudalismo, ora da transição ao trabalho assalariado, como ocorre após a abolição).
Se o quadro sucessivo de modos de produção do establishment marxista sugere como norma histórica a substituição de modos de produção com menor produtividade por outros de maior produtividade, desmentindo assim as regressões históricas, esses eventos regressivos feudalizantes concebidos por Sodré, com base em Furtado (e, em minha hipótese, também em Rangel), abrem no interior do seu pensamento a admissão da regressão histórica. Há apenas cinco anos dissera Rangel (1999, p. 32): “A hierarquia dos tipos de relações de produção é a inversa da que nos apresenta a cronologia histórica”. Embora não se possa tomar essa inversão como uma nova norma histórica, ela se apresenta, no campo das possibilidades abstratas (teóricas), tão possível como a sucessão progressiva das formas econômicas.
A primeira aparição regressiva de relações feudais anotada por Sodré teria ocorrido no desenvolvimento autônomo da pecuária, quando esta se desligou do engenho e se fez um ramo econômico no século XVII. Segundo Sodré (1963, p. 123), nesse momento “geram-se relações feudais no pastoreio, pela sua incompatibilidade com o trabalho escravo”. As condições em que isso ocorre seriam essas: “Reaparecem, com o pastoreio sertanejo, áreas isoladas, sem dependência direta da Metrópole, ou dos mandatários desta, autônomas, desligadas de qualquer acomodação com a Coroa. No sertão não há poder público; o poder privado é ali exclusivo” (SODRÉ, 1963, p. 124). Como ocorrerá em outras situações analisadas, Sodré não descreve aí as relações sociais que concebe como feudais, limitando-se a apresentar sua condição principal, o isolamento, tal como na caracterização furtadiana do feudalismo como “fenômeno de regressão”.18
Outro momento é durante a crise da economia açucareira, na segunda metade do século XVII (depois, portanto, do aparecimento da pecuária como ramo próprio).19 Se a queda dos preços do açúcar no mercado internacional e a elevação do valor da libra levavam a nova crise a economia açucareira, voltada para a exportação de seus produtos e importação de equipamentos, materiais e escravos, essa crise teria consequências nas regiões não exportadoras da economia brasileira, “que eram compelidas a um estágio de produção de mera subsistência, com um declínio de produtividade que as relegava ao isolamento e ao estiolamento” (SODRÉ, 1963, p. 134). Para Sodré (1963, p. 134), esse declínio levava ao “estabelecimento de relações feudais, e a área feudal, na Colônia, ampliava-se depressa”.
Um terceiro fenômeno de regressão feudal teria ocorrido na crise da mineração, no final do século XVIII. Na região mineradora teria nascido e se expandido um mercado interno, com um grande número de pequenos e médios empresários, um grande afluxo de mercadorias e dinheiro, até mesmo com importações de produtos de luxo, a própria atividade mineradora estruturando-se com grande especialização do trabalho. Em tudo e por tudo, era diferente da produção escravista açucareira. Dadas essas características, a “mineração […] representa o primeiro abalo sério e profundo no trabalho escravo”. Por isso, com a crise da economia mineradora não ocorre, nas regiões em que teve lugar, uma simples reconstituição das anteriores relações escravistas. “As relações que ocorrerão, com o declínio aurífero, não corresponderão a um retorno ao passado. Caracterizarão, ao contrário, a passagem para o quadro feudal, que se generaliza no interior da Colônia, depois do país” (SODRÉ, 1963, p 137). As relações monetário-mercantis ali antes desenvolvidas, nos marcos das relações de compra e venda com o exterior, teriam regredido a uma economia de subsistência, mantida a grande propriedade da terra, e essas seriam as bases para a regressão a relações servis.20 Não preciso apresentar todos os fenômenos regressivos, que se dirigem ao estabelecimento de relações sociais servis, apresentados por Sodré em seu livro. Nos três casos relatados acima, penso fazer compreensível o quanto lhe é central o apoio na concepção do feudalismo por Celso Furtado. O isolamento, a diminuição da divisão do trabalho, com o rebaixamento das forças produtivas e da produtividade do trabalho, caracteriza a natureza regressiva das relações feudais. Sodré tende a conceber esses eventos regressivos em diversos momentos da história econômica do país resultando em relações feudais, que, assim, iam-se ampliando a partir de diversos focos.21
A abolição da escravatura e o que lhe segue são objeto, entre os autores de que trato aqui, de um importante debate historiográfico. O problema interpretativo é o do lugar da transição ao trabalho assalariado na abolição da escravatura; de outra maneira, trata-se de saber o que sucede à força de trabalho com o fim da escravidão. O autor com quem nesse terreno Sodré estabelece um diálogo mais direto é, mais uma vez, Celso Furtado. Ambos observam fenômenos de regressão à economia de subsistência em alguns dos momentos daquele período que, no título da Parte IV de seu livro, Furtado caracteriza como de “transição ao trabalho assalariado”. Apesar do título, não se trata, para Furtado, de que à crise econômica da escravidão22 tenha seguido de modo simples e linear a emergência do trabalho assalariado, ainda que tenha sido esse o resultado mais geral do processo; e não foi uma sequência simples e direta justamente porque permeada de diversos eventos regressivos.
Para Sodré, o resultado desse processo que leva à dissolução da escravidão não resulta necessariamente (ou apenas) no trabalho assalariado; e isso porque a própria dissolução da escravatura não se constitui unicamente pela crise da oferta da força de trabalho. As duas coisas – processo de dissolução do trabalho escravo e o que o segue – estão ligadas; e nas duas os processos regressivos têm força, quando não hegemonia. Sodré (1963, p. 248) observa emergirem, durante e após a crise que leva à abolição, a emergência de “relações [de trabalho] que cabem perfeitamente na classificação genérica do trabalho [juridicamente] livre, mas já não cabem tão perfeitamente na classificação de trabalho assalariado”. Por isso, de modo mais circunstanciado, ele pensa a crise da escravatura a partir de dois movimentos: o da ampliação da economia de subsistência no interior da economia escravista (como mostram os eventos antes informados) numa direção regressiva a relações sociais de servidão e o da crise do trabalho escravo em direção ao trabalho assalariado (no sentido apontado por Furtado). Em seu ponto de vista, o “trabalho assalariado, a rigor, preenche apenas uma faixa da área muito ampla em que o trabalho escravo vai desaparecendo […] a massa escrava evolui muito mais para a servidão do que para o trabalho livre” (SODRÉ, 1963, p. 248).
Buscando mostrar como a necessidade de força de trabalho durante a expansão da grande lavoura do café não poderia ser satisfeita com a utilização dos trabalhadores então ocupados na economia de subsistência, como talvez tenha ocorrido em transições mais clássicas ao capitalismo (via cercamento etc.), Celso Furtado (1961, p. 140-141) explica que eles estavam bastante dispersos em todo o território nacional, em atividades de agricultura e pecuária baseadas em técnicas rudimentares, que possuía “mínima densidade econômica”. E adverte que “não se limita a viver de sua roça o homem da economia de subsistência. Ele está ligado a um grupo econômico maior, quase sempre pecuário, cujo chefe é o proprietário da terra onde tem sua roça”. Mais adiante, na mesma página, acrescenta algo que não pode deixar de ser importante para a interpretação de Sodré: “Havendo abundância de terras, o sistema de subsistência tende naturalmente a crescer e esse crescimento implica, as mais das vezes, redução na importância relativa da faixa monetária” (itálicos meus). São essas determinações que principalmente constituem empecilhos sociais, políticos e culturais para o encaminhamento desses trabalhadores ao trabalho assalariado.23
É preciso ter em conta o que diz acima Furtado para que seja compreensível a discussão de Sodré sobre uma das forças de dissolução do modo de produção escravista, justamente a do crescimento da economia de subsistência.24 Esta tem particular importância para a discussão sobre o problema teórico da regressão, pois ela (economia de subsistência) constitui, evidentemente, um fenômeno regressivo no interior da própria economia escravista;25 uma regressão do trabalho associado da grande lavoura escravista, com elevado nível de especialização das atividades, para o trabalho individual (familiar) da economia de subsistência, o que faz decair o nível de produtividade. A isso, segue-se o isolamento (determinante da dispersão informada por Furtado) dessa forma econômica.
Para Sodré, constitui uma condição primeira desse encaminhamento regressivo a abundância de terras a ocupar, terras, contudo, já apropriadas e concentradas em poucas mãos, ainda que não efetivamente ocupadas pela produção, havendo ali muitos vazios produtivos. “É nesses vazios que se estabelece a base da regressão”, diz ele. Em sua descrição, ocorreria
uma invasão formigueira de pequenos lavradores ou de pequenos criadores que estabelecem as suas roças de mera subsistência e que permanecem, no conjunto, ausentes do mercado. A extensão em que o fenômeno se opera, e a variedade das formas que apresenta, são enormes. Trata-se de um quadro feudal inequívoco. (SODRÉ, 1963, p. 248, itálicos meus)
Inequívoco não é, embora Sodré estivesse convencido disso.
Essa tendência regressiva à economia de subsistência, que constitui uma das determinações da crise da economia escravista, é reforçada, na segunda metade do XIX, pelos fracassos iniciais das tentativas de substituição da força de trabalho escrava: a colonização e a imigração.
Comecemos pela colonização. Furtado (1961, p. 146) observa que “quando, após os vultosos gastos, se deixava a colônia [agrícola, cedida aos imigrantes] entregue a suas próprias forças, ela tendia a definhar, involuindo em simples economia de subsistência”. Apesar dos enormes investimentos iniciais e, em alguns casos, continuados, por parte do Império e dos governos locais, como ocorreu no Sul do país, “a vida econômica das colônias era extremamente precária”: “não havendo mercado para os excedentes de produção, o setor monetário logo se atrofiava, o sistema de divisão do trabalho involuía e a colônia regredia a um sistema econômico rudimentar de subsistência” (FURTADO, 1961, p. 146). As palavras de Sodré (1963, p. 250) são quase as mesmas a respeito das colônias:
E as colônias definhavam, inevitavelmente; quando não se extinguiam, declinavam para uma situação vegetativa que só se mantinha na medida em que os colonos se tornavam “caboclos”, inclusive pelo emprego de suas técnicas, regredindo à lavoura de subsistência.
No Sudeste, a alternativa tentada foi a imigração, inicialmente com base no contrato de trabalho de parceria, que, na verdade, se constituía numa espécie de escravidão temporária de imigrantes (escravidão por dívida), seguida, ao término de um período, pela meação dos produtos. Para Sodré (1963, p. 251), nesses casos, se estabeleciam na verdade relações servis (no sentido de feudais ou semifeudais), tal como já se dava desde antes em outras regiões:
Como o custo da imigração corria por conta do próprio imigrante, que hipotecava trabalho, havia a tendência, natural em um país em que a escravidão dominava, para a deterioração das relações contratuais, que derivariam para a servidão, como acontecia no interior do país com trabalhadores livres nacionais, agravado o quadro pelos poderes incontrastáveis do senhor e proprietário.
A imigração, tal como tentada a partir dos anos 1860, baseada na parceria, termina por fracassar, sendo substituída por outras formas, com maior sucesso (até mesmo o trabalho assalariado, associado à agricultura de subsistência, como na grande lavoura de café). O importante aqui é a interpretação de Sodré dessas relações de parcerias como servis, à semelhança do que aconteceria “no interior do país com trabalhadores livres nacionais”. Eram juridicamente livres, mas não assalariados.
Esses fenômenos econômicos de regressão – nos quais a colonização e a imigração resultaram – mostram as fortes tendências regressivas existentes, naquele momento, na economia escravista brasileira em crise, dilacerada entre impulsos opostos, declinantes uns, ascendentes outros. Por isso, as formas sociais assumidas pela força de trabalho na sequência do fim da escravidão seriam, em geral, duas: a servidão e o assalariamento. Para a servidão, que constitui um fenômeno regressivo, Sodré encontra por explicação o baixo nível de acumulação de capital, particularmente nas áreas econômicas em que a agricultura tradicional já vinha definhando em economia de subsistência no interior de grandes propriedades, estabelecendo ali, entre proprietários e lavradores, relações de dependência pessoal de natureza servil.26 Em suas palavras:
Em condições normais, a transformação do trabalho escravo em trabalho livre resultaria no aproveitamento dos escravos, que seriam transformados em trabalhadores assalariados. Ora, isto não ocorreu. Nas condições brasileiras do tempo, não poderia ocorrer. A estrutura econômica estava ainda tão profundamente onerada pela herança colonial que se apresentava impreparada para o estabelecimento do trabalho assalariado. (SODRÉ, 1963, p. 252-253)27
Ao invés de apenas “avançar” para as relações sociais já então hegemônicas no mercado mundial (as capitalistas-assalariadas), a maior parte de nossa produção social teria “recuado” para relações sociais economicamente mais simples, de menor divisão social do trabalho, de técnicas rudimentares, de baixíssima produtividade, relações sociais caracterizadas pele dependência pessoal e pela coerção não econômica (a força do prestígio do chefe, dos laços de solidariedade da comunidade, da violenta direta etc.). Trata-se de um recuo tanto do escravismo, no interior do qual esse processo se desenvolve, quanto do capitalismo, cuja consolidação no mercado mundial seria, consideradas as mediações, uma das determinações da própria crise do sistema escravista. Precisamente nesse último sentido, constitui-se uma regressão. Essa não tem como referência uma métrica absoluta, mas histórica: essa involução econômica é regressiva não apenas diante da economia a partir da qual ela acontece (a escravista moderna), e esse seria o sentido percebido por Celso Furtado, mas também em vista do presente no qual, e pelo qual, ela se impõe (marcado pelo início das relações assalariadas no Brasil, e de capitalismo monopolista no mundo).
Essa tese de regressão feudal de Sodré se aproxima da análise de Rangel sobre a unidade entre imperialismo (externo) e feudalismo (interno) no período pós-escravista. E, nesse terreno comum, vem em ambos o conceito de coexistência do não coetâneo. Rangel mobiliza esse conceito numa justificativa do seu uso não-sucessivo dos modos de produção. Segundo diz, para compreender as formas sociais constitutivas de nossa formação social, faz uso dos conceitos delas tal como se refletiram idealmente – “na literatura, na ciência e na arte” – com base em outras experiências históricas (com as quais temos relações externas), ainda que aqui elas se apresentem de “forma modificada pela coexistência com institutos não coetâneos”; e ressalta: são não coetâneos “pelo menos do ponto de vista da história clássica” (externa) (RANGEL, 1999, p. 34).
Assim, ao mesmo tempo em que a formação histórica da sociedade brasileira se distingue da via clássica de transição ao capitalismo (na qual se encontraria uma sucessão de modos de produção ascendentes do ponto de vista produtivo), esta mesma via clássica nos forneceria um critério, como reflexo ideado daquela via histórica, que nos permite compreender, em face dela, não uma progressividade, mas sim a coexistência do não coetâneo em nossa formação social. Para Rangel, épocas produtivas distintas coexistem e se articulam, sendo essa articulação, mais do que a simples coexistência, que constituiria a dualidade básica da formação social brasileira.
Algo próximo encontramos em Sodré. Para ele, modos de produção distintos tanto se sucedem quanto coexistem em nossa realidade nacional; relações escravistas, servis e assalariadas tanto se substituíram na história brasileira quanto se mantêm articulados entre si, contemporaneamente, como resultado de nossa específica formação histórica. Em suas palavras: encontramos na formação social brasileira os modos de produção constituídos por essas diferentes relações sociais tanto “sucessivamente, como a sua coexistência ao longo do tempo e ainda hoje – é a coexistência do não coetâneo, um dos traços específicos do caso brasileiro, mas não privativo desse caso” (SODRÉ, 1963, p. 4).
Desse modo, o conceito de regressão no plano histórico, que nos permite pensar declínios de formas sociais para outras menos produtivas, com menor nível de socialização, divisão e produtividade do trabalho, está relacionado com este outro, o de coexistência (ou contemporaneidade) do não coetâneo (ou não contemporâneo). Essa não coetaneidade é pensável em face do desenvolvimento clássico do capitalismo, que, em definitivo, não é o nosso; e este pode servir-nos de referencial porque, em sua apresentação teórica mais abstrata, segue uma sequência progressiva de formações sociais, que nos permite pensar, pela diferença, a especificidade do nosso próprio trânsito ao capitalismo e da formação social que dele resulta.
* * *
“O historicismo propõe a imagem eterna do passado; o materialista histórico fá-lo acompanhar de uma experiência que é única. […] Nela se libertam as poderosas forças que estão presas no ‘Era uma vez’ do historicismo”.
W. Benjamin
O debate sobre a existência de relações feudais no campo brasileiro teve sua época; já se encerrou. Mesmo os autores que a sustentaram em tese nos anos 50 e 60 chegaram às vésperas de 1964 discutindo o avanço do capitalismo no campo brasileiro, num processo de modernização conservadora da produção agrícola. O que me parece importante reter dessa discussão, quando se dialoga com Nelson Werneck Sodré, é o problema histórico da regressão e da articulação orgânica entre formas econômico sociais distintas. O interesse atual pelo tema está em poder orientar nossa pesquisa sobre a sociedade brasileira, que há quatro décadas vive, num contexto de terceira revolução industrial mundial, a crise de sua industrialização, com a emergência, em bolsões de marginalização econômica e social, de novas e regressivas relações de dependência pessoal e coerção não-econômica; relações cujas expressões políticas têm se manifestado de modo igualmente regressivo, como temos visto nos últimos anos.
Notas
1 Essa concepção unilinear integra de modo central o que Otto Alcides Ohlweiler (1984, p. 62-63) chama de “vulgarização mecanicista do marxismo”: “é a ideia da unilinearidade na sucessão das formações sociais. Ela encontra-se muito bem estereotipada numa obra coletiva soviética, Fundamentos do marxismo-leninismo, […] onde pode ser lido que ‘o desenvolvimento da sociedade transcorre sob a forma de substituição consecutiva, submetida a leis, de formações econômico-sociais, de tal maneira que o povo, que vive em condições de uma formação mais avançada, mostra a outros povos o seu futuro, exatamente como estes lhe mostram o seu passado’”. Para este autor, ainda que textos mais apressados de Marx, como o Prefácio de 1859, permitam uma “interpretação unilinearista”, esta estaria em “flagrante contraste com tudo o que ele escreveu nos Grundrisse e, particularmente, nos manuscritos sobre as Formações econômicas pré-capitalistas [dos mesmos Grundrisse], que excluem completamente qualquer ressaibo de unilinearismo”.
2 Como disse acima, seria infundada a pretensão de que esses autores levem voluntariamente à crítica teórica a concepção de história dominante no marxismo. Se perguntados a respeito, certamente reafirmariam sem pestanejar sua fidelidade às categorias que orientam essa concepção (progresso, inevitabilidade do socialismo etc.). Desse modo, trato aqui da concepção presente no trabalho historiográfico deles, a despeito de suas elaborações filosóficas explícitas.
3 Carlos Alberto Dória (2007), em quem me apoio nessas linhas, reconstrói esse contexto e mostra como ele se expressa no pensamento de Ignácio Rangel. Alguns dados ajudam a visualizar as transformações então ocorridas: para um índice de 100 para 1949, o produto da indústria chega em 1964 a 328,5, “em termos reais, deflacionados” (OLIVEIRA, 2003, p. 82-83); em outras palavras, mais do que triplicou em 15 anos. Durante esse período, houve uma diminuição das importações de produtos industrializados (bens de consumo e bens de produção), enquanto produtos manufaturados (bens de consumo) começaram a compor nossa pauta de exportações; é a época em que “a indústria já ultrapassou a agricultura. E no setor rural mesmo, o capitalismo tem se expandido […]”, segundo informa Wanderley Guilherme (1963, p. 58), na última publicação do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).
4 Juntando uma passagem daqui outra dali, resulta uma colagem compreensível dessa interpretação e sua perspectiva política: “O grande no Brasil é o fazendeiro de café, de São Paulo e Minas. O fazendeiro do café, no Sul, como o senhor de engenho, no Norte, é o senhor feudal. O senhor feudal implica a existência do servo. O servo é o colono sulista das fazendas de café, é o trabalhador de enxada dos engenhos nortistas. A organização social proveniente daí é o feudalismo na cumieira e a servidão nos alicerces. […] São dois mundos que se chocam: o feudalismo e o industrialismo. O industrialismo despedaçará o feudalismo. E o socialismo despedaçará o industrialismo burguês” (BRANDÃO, 2006, respectivamente, p. 36 e 47). Numa aposta de “revolta permanente”, a liquidação do suposto feudalismo pelo industrialismo burguês, numa primeira etapa da revolução, pediria a união “[d]o proletariado, [d]a pequena-burguesia e [d]a grande burguesia industrial” (idem, p. 187). Como teoria da realidade brasileira, a tese de que tais transformações agrárias são necessárias ao desenvolvimento industrial não é exclusivamente, nem originariamente marxista: ela pode ser encontrada desde o “liberalismo radical” (BOSI, 1988; SALES, 2002) da segunda metade do século XIX. O abolicionismo (1883), seguido de Campanha abolicionista no Recife: Eleições em 1884 (1885), ambos de Joaquim Nabuco (2000, 2005), a expressam e a defendem com vigor.
5 Como sabemos, a persistência dessa teoria é mostrada e criticada por Caio Prado Junior (2014, especialmente p. 30-76), em A revolução brasileira (1966). Ele a debita ao VI Congresso da Internacional Comunista (1928). No caso do partido comunista em nosso país, contudo, ela antecede a esse Congresso da IC, pois Agrarismo e industrialismo foi escrito, no essencial, em 1924, concluído e publicado em 1926.
6 Assim como a visão liberal radical do século anterior, a proposta marxista da revolução antifeudal, industrialista burguesa, como primeira etapa de uma revolução permanente, tinha como pressuposto, nos anos 1920, a repetição aqui das mesmas etapas de desenvolvimento europeu (Holanda, Inglaterra, França…) do século XVIII; portanto, se assentava numa concepção unilinear do desenvolvimento histórico. Próximo – e talvez membro – do partido comunista no início dos anos 1960 (SANTOS, 2004), Wanderley Guilherme (1963, p. 96) manifesta naquele momento a consciência de que “o modo pelo qual se vem realizando a expansão capitalista no Brasil atesta a configuração de formação econômico-social distinta do capitalismo clássico […] é necessário ainda que não se suponha ser a imagem que tais países exibem, hoje, uma antecipação do que seremos nós, no futuro”. Não é apenas que chegamos atrasados e, portanto, percorremos depois o caminho antes trilhado pelos países de desenvolvimento capitalista clássico: “O processo brasileiro é diverso do que remotamente se verificou em outras áreas porque se fez e se está fazendo em condições históricas diferentes” (itálicos no original). Publicado a alguns meses do golpe reacionário de 1º de abril de 1964, essas páginas expressam as discussões que as antecedem no interior do ISEB e do marxismo brasileiro.
7 “O regime das capitanias foi em princípio caracteristicamente feudal. […] Esse ensaio de feudalismo não vingou. Decaiu com o sistema de colonização que o engendrara, e com ele desapareceu sem deixar traço algum de relevo na formação histórica do Brasil” (PRADO JUNIOR, 1947, p. 18). Ele volta a esse tema, de modo mais amplo e numa polêmica política, justamente na obra de 1966, já referida.
8 Desde o início de sua produção, Prado Junior (1947, p. 26) desenvolve esta argumentação sobre a economia colonial: “O importante é saber o que nela predomina, se a grande exploração agrícola, isto é, que reúne grande número de pessoas, trabalhando conjuntamente, ou se pelo contrário se funda num trabalho individual de pequenos agricultores autônomos, que lavram eles mesmos terras próprias ou arrendadas. A resposta não pode sofrer dúvidas. A economia colonial sempre teve por tipo a grande exploração rural”. Essa determinação, ao contrário do que comumente pensam os teóricos do feudalismo brasileiro que se apegam à grandeza da propriedade rural, descarta a natureza feudal da economia colonial. Por isso, a relevância, para a análise teórica do fenômeno, da forma social do trabalho que lhe serve de base: “É de fato numa base essencialmente escravista, ninguém o ignora, que assenta a economia colonial brasileira. Sem escravos não era possível aos colonos abastecerem-se da mão de obra de que necessitavam” (idem, p. 37).
9 “Não éramos como as índias um país de civilização avançada, cujo aproveitamento pelos conquistadores se pudesse fazer pelo comércio ou pelo saque – que na época se fundiam num só e mesmo conceito. Aqui, uma só riqueza: os recursos naturais; daí uma só forma de exploração: a agricultura ou a pecuária, subordinadas ambas à posse fundiária. Assim, um povo de comerciantes, que fazia um século se afastara do cultivo do solo para se dedicar de preferência a especulação mercantil, era novamente arrastado para o amanho da terra” (PRADO JUNIOR, 1947, p. 19). Esse é um topos importante, talvez central, na discussão sobre a natureza da criação do Brasil como colônia pelo capital comercial europeu, através da Corte portuguesa; e, em seguida, também na discussão sobre como se estabelece a dependência econômica já nos quadros do imperialismo. Caio Prado retoma esse argumento em Formação do Brasil contemporâneo (PRADO JUNIOR, 2011, particularmente p. 21) e em A revolução brasileira (PRADO JUNIOR, 2014, particularmente p. 80-81).
10 Para Guimarães (1968), ainda que (ou justamente porque) a sociedade portuguesa do período da colonização brasileira vivesse o declínio das relações feudais (e, sem dúvida, com a emergência lá do capital comercial), o que se desenvolveu aqui não foram relações sociais superiores às da metrópole, ou mesmo as próprias relações sociais emergentes em Portugal (em sua hipótese, comerciais), mas justamente as relações sociais lá em declínio: as feudais. Por isso, constituiu-se um “feudalismo colonial”, que “teve de regredir aqui ao escravismo, compensando a resultante perda de produtividade, em parte com a extraordinária fertilidade das terras virgens do Novo Mundo e, em parte, com o desumano rigor aplicado no tratamento da mão de obra”. (GUIMARÃES, 1968, p. 29). Escrita após a Formação histórica do Brasil, essa obra de Guimarães já se apoia na tese da regressão histórica desenvolvida por N. W. Sodré, desenvolvendo essa outra tese: a de que toda colonização estabelece necessariamente uma conformação regressiva da colônia mediante a metrópole.
11 Desse modo, enfim: “Verifica-se, claramente, que a exploração colonial e o trabalho escravo são sinônimos, são peças inseparáveis do mesmo processo”. (SODRÉ, 1963, p. 70). Numa breve revisão bibliográfica, em que perfila autores clássicos da tese feudal (Varnhagen, Capistrano de Abreu) e da tese capitalista (Sérgio Bagu, Roberto Simonsen), Sodré (1963, p. 81) diz: “Caio Prado Junior não se preocupa com a caracterização do regime [colonial], mas defende a ideia de que houve, no início da vida brasileira, propriedade imobiliária. Celso Furtado nega o caráter feudal da colonização, defendendo a tese do escravismo e explicando a fisionomia hermética do regime”. É curiosa sua leitura sobre a posição de Caio Prado, que, como mostrei mais atrás, sustenta a mesma posição de Celso Furtado. Contudo, Sodré não cita em seu livro a Evolução política do Brasil, obra que inicia justamente com essa polêmica, com Caio Prado apresentando nela, contra a interpretação feudalizante, a tese da economia escravista como essencial à empresa comercial da colonização. Após argumentar contra a tese do capitalismo e do feudalismo, Sodré (1963, p. 82) resume sua própria posição: “Assim, a conclusão a que leva o exame da realidade é que o Brasil iniciou sua existência colonial sob o modo de produção escravista”.
12 A impressão que dá, na leitura de livros como os de Rangel e Guimarães, é que a expressão latifúndio, mais do que um termo descritivo, ganha a dimensão de um conceito econômico, justamente ligado à tese do feudalismo (não na economia colonial, mas já na economia agrária daquele período).
13 “A casa da gente rica representava uma economia autônoma […]. Para os escravos, fiava-se e tecia-se a roupa; a roupa da família era feita no meio dela; da alimentação, fornecida por peixe de água doce ou salgada, mariscos apanhados nos mangues ou caça, estavam encarregados os escravos; a criação miúda de voláteis, ovelhas, cabritos e porcos evitava as surpresas de hóspedes da última hora; não havia açougues ou mercados […]”. (ABREU, 2013, p. 78) Essa descrição de Capistrano refere-se ainda ao século XVIII.
14 Que assim fosse, mostra-o detalhadamente, em seus róis, André João Antonil em Cultura e opulência do Brasil (obra de 1711). Antonil (1976, p. 141-145) apresenta os cálculos monetários de custos justamente para mostrar que lucros, por partes dos particulares, e impostos, por parte da Corte, são os inequívocos objetivos da produção açucareira: “[…] sempre doce e vencedor de amarguras, [o açúcar] vai a dar gosto ao paladar de seus inimigos nos banquetes, saúde nas mezinhas aos enfermos e grandes lucros aos senhores de engenho e aos lavradores que o perseguiram e aos mercadores que o compraram e o levaram degradado nos portos e muito maiores emolumentos à Fazenda Real nas alfândegas”.
15 “O senhor de engenho opulento remetia a safra diretamente para o Reino, e recebia o pagamento do além-mar em fazendas finas, vinhos, farinha de trigo, em suma, coisas de gozo ou luxo” (ABREU, 2013, p. 77). Nas relações econômicas internas, “dominava a permuta ou empréstimo de gêneros; transações a dinheiro não se conheciam ou eram raríssimas, e como ninguém sabia aproximadamente [o valor de] suas posses, o endividamento era geral” (ibidem). De maneira mais completa: “A vida econômica tinha duas faces: nas transações internacionais ou antes interoceânicas era a moeda o tipo a que tudo se referia; nas transações internas dominavam o naturalismo econômico, a permuta de gênero contra gênero, ou empréstimo de gêneros […]” (ABREU, 2010, p. 35, itálicos meus).
16 “O fluxo de renda se estabelecia, portanto, entre a unidade produtiva [o engenho], considerada em conjunto, e o exterior [vendedores estrangeiros de equipamentos, de materiais de construção e de escravos, bem como o frete por navios etc.]. Pertencendo todos os fatores a um mesmo empresário, é evidente que o fluxo de renda se resumia na economia açucareira a simples operações contábeis, reais ou virtuais. Não significa isto que essa economia fosse de outra natureza que não monetária. Tendo cada fator um custo que se expressa monetariamente, e o mesmo ocorrendo com o produto final, o empresário deveria de alguma forma saber como combinar melhor os fatores para reduzir o custo de produção e maximizar sua renda real”. (FURTADO, 1961, p. 65). Possibilitar ao empresário (senhor de engenho) esse saber é a função da contabilidade de natureza monetária.
17 Para não inflacionar o texto principal, complemento em rodapé a passagem citada, que mostra o argumento de Furtado (1961, p. 66) sobre as diferenças entre escravismo exportador e feudalismo: “Ora, a unidade escravista, cujas características indicamos em suas linhas gerais, pode ser apresentada como um caso extremo de especialização econômica. Ao inverso da unidade feudal, ela vive totalmente voltada para o mercado externo. A suposta similitude deriva da existência de pagamentos in natura em uma e outra. Mas ainda aqui há um total equívoco, pois na unidade escravista os pagamentos a fatores são todos de natureza monetária, devendo-se ter em conta que o pagamento ao escravo é aquele que se faz no ato de compra deste. O pagamento corrente ao escravo seria o simples gasto de manutenção, que, como o dispêndio com a manutenção de uma máquina, pode ficar implícito na contabilidade sem que por isso perca sua natureza monetária”. A descrição que dela Antonil faz, no início do XVIII, mostra o nível de divisão do trabalho e especialização da produção do açúcar.
18 É possível que tivesse em vista o sistema de parceria (como faz Alberto Passos Guimarães), descrito assim por Caio Prado Junior (2011, p. 201): “Contribui para a multiplicação de fazendas o sistema de pagar o vaqueiro, que é quem dirige os estabelecimentos, ¼ das crias; pagamento que só se efetua decorridos cinco anos, acumuladas as cotas de todos eles”. Essa parceria na pecuária é análoga à da agricultura, que constitui argumento forte dos defensores da tese feudal (argumento que recebe sua contra-argumentação em PRADO JUNIOR, 2014).
19 “O açúcar […] deixa de ser monopólio de Portugal. Surgem outras áreas coloniais de produção, particularmente a holandesa. Nesta, como na inglesa e francesa, as técnicas já avançadas permitem melhor produtividade e permitem ainda retirar um produto, a bebida alcoólica, que complementa e reforça a produção e o comércio. Por estas e outras razões, a concorrência é desfavorável a Portugal. A estagnação econômica leva a sucessivas desvalorizações cambiais: o valor da libra sobe, entre 1640, ano da Restauração, e 1700, quando começa a afluir ao mercado europeu o ouro brasileiro, de um mil-réis para três mil e quinhentos. Em consequência há um reajustamento das importações [brasileiras] em nível muito mais baixo do que antes”. (SODRÉ, 1963, p. 134)
20 Celso Furtado (1961, p. 102) também considerara que se produzira uma regressão econômica na área mineradora: “Não se havendo criado nas regiões mineiras formas permanentes de atividades econômicas – à exceção de alguma agricultura de subsistência –, era natural que, com o declínio da produção de ouro, viesse uma rápida e geral decadência. À medida que se reduzia a produção, as maiores empresas se iam descapitalizando e desagregando. A reposição da mão-de-obra escrava já não se podia fazer, e muitos empresários de lavras, com o tempo, se foram reduzindo a simples faiscadores. Dessa forma, a decadência se processava através de uma lenta diminuição do capital aplicado no setor minerador. […] Todo o sistema se ia assim atrofiando, perdendo vitalidade, para finalmente desagregar-se numa economia de subsistência”. Mas, diferente de Sodré, não concluía daí a regressão a relações feudais.
21 Além dos três momentos acima descritos, Sodré observa essa regressão feudal na crise econômica após a independência, na nova crise da produção açucareira, acompanhada da do algodão, quando da emergência da hegemonia econômica do café na produção agrícola (atraindo para si capitais e força de trabalho escrava) etc.
22 Furtado concebe essa crise fundamentalmente como de carência de força de trabalho, dada a impossibilidade de a oferta de mão-de-obra escrava acompanhar a expansão da produção cafeeira.
23 “[A] economia de subsistência de maneira geral estava de tal forma dispersa que o recrutamento de mão-de-obra dentro da mesma seria tarefa bastante difícil e exigiria grande mobilização de recursos. Na realidade, um tal recrutamento só seria praticável se contasse com a decidida cooperação da classe de grandes proprietários da terra. A experiência demonstrou, entretanto, que essa cooperação dificilmente podia ser conseguida, pois era todo um estilo de vida, de organização social e de estruturação do poder político o que entrava em jogo”. (FURTADO, 1961, p. 142).
24 “O modo escravista está sendo corroído pelas duas extremidades, portanto. Se não distinguirmos as diferenças entre uma e outra – uma é avanço [o trabalho assalariado], a outra é atraso [a agricultura de subsistência], e ambas tendem a distanciar se cada vez mais e a levar a uma desigualdade regional clamorosa –, não compreenderemos claramente as razões da extinção do regime de trabalho escravo em nosso país”. (SODRÉ, 1963, p. 248).
25 Como Furtado buscara mostrar, a economia escravista não tinha uma propulsão interna; e por isso, tendia à regressão quando lhe faltam as condições externas (mercado consumidor, com preços que compensem, além de força de trabalho, com preços e condições de compra que também compensem). “Não havia […] nenhuma possibilidade de que o crescimento com base no impulso externo originasse um processo de desenvolvimento de autopropulsão. […] A economia escravista dependia […] assim, em forma praticamente exclusiva, da procura externa. Se se enfraquecia essa procura, tinha início um processo de decadência, com atrofiamento do setor monetário”. (FURTADO, 1961, 67-68).
26 É ilustrativa dessas relações de dependência pessoal nos marcos da liberdade civil – embora não necessariamente servis, como as interpreta Sodré – a descrição de Celso Furtado (1961, p. 141) das formas de poder social nas zonas de economia de subsistência baseada na grande propriedade: “Se bem que a unidade econômica mais importante da economia de subsistência fosse realmente a roça, do ponto de vista social a unidade mais significativa era a que tinha como chefe o proprietário das terras. A este interessava basicamente que o maior número de pessoas vivesse em suas terras, cabendo a cada um tratar de sua própria subsistência. Dessa forma o senhor das terras, no momento oportuno, poderia dispor da mão-de-obra de que necessitasse. Demais, dadas as condições que prevaleciam nessas regiões, o prestígio de cada um dependia da quantidade de homens que pudesse utilizar a qualquer momento e para qualquer fim. Em consequência, o roceiro da economia de subsistência, se bem não estivesse ligado pela propriedade da terra, estava atado por vínculos sociais a um grupo, dentro do qual se cultivava a mística de fidelidade ao chefe como técnica de preservação do grupo social”.
27 Sem poder reproduzir nesta nota a sofisticada discussão que Celso Furtado faz sobre a força de trabalho negra após a abolição, limito-me a observar que, para ele, transcorreram duas lógicas de assalariamento: no Nordeste, os ex-escravos geralmente permaneceram nas mesmas fazendas, havendo poucos deslocamentos, num regime salarial em que os salários não ultrapassavam os custos que o senhor, antes, já tinha com a manutenção da força de trabalho escrava (não houve, portanto, mudança econômica efetiva); no Sudeste, na área do café, devido à imigração da força de trabalho europeia, que precisava ser atraída com salários mais elevados, houve a tendência de os ex-escravos receberem salários maiores do que os do Nordeste. Por isso, é correto afirmar que, diferente de Sodré, Furtado concebe que, apesar das direções diversas havidas no processo de transição ao trabalho assalariado, este teria terminado por se impor como forma social principal da força de trabalho dos ex-escravos. O mesmo poderíamos dizer de Caio Prado Junior (2014), para quem as relações de parceria no campo são formas de salário in natura e a economia de subsistência àquelas ligada é forma de complementação do rendimento do trabalhador, mas essas não são relações assalariadas puras (i.e., monetárias), que, além disso, convivem com formas semiescravistas de trabalho (portanto, formas de coerção não-econômica e de dependência pessoal), não tendo, até então, havido a universalização do trabalho livre (assalariada) na formação social brasileira.
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*Doutor em Filosofia pela PUC-SP, Professor do PPGFIL UECE – E-mail: emiliano.aquino@uece.br