Por Leonardo Lima Ribeiro.
A sociedade não é líquida, a fome não é líquida, o instinto cuja necessidade clama por se viver melhor não é líquido. Os bloqueios civilizatórios perpetrados pelo capitalismo e pelo politicismo mais vulgar não são líquidos.
Nem mesmo os conceitos de liberdade e emancipação humana deveriam ser colonizados pela liquidez pós-moderna, porquanto estão erguidos sobre os escombros de necessidades não inteiramente satisfeitas no âmago da materialidade histórica agora expressa na fase dos horizontes de expectativas decrescentes.
Uma vez que nem tudo o que é sólido se desmancha no ar ou se dilui nos oceanos sociais, “líquida” é apenas uma forma de contingência niilista, irracional e espetacularizada, pautada em engrenagens ideológicas que são vertidas como cortina de fumaça, simulacros de vida, lá onde, em contrapartida, a vida dos sem nada, ou daqueles que pouco possuem, ruge assustadoramente com clamores de esperanças proteladas já desde o nascimento.
Tal é o ponto de partida pelo qual podemos compreender a gênese da revolta popular como vontade de despossessão dos grilhões da frustração, fomento ao caos caotizado que sobrecarrega o cotidiano, nojo dos insuportáveis espectros políticos mórbidos, expansão da criminalidade desenfreada que vocaliza mal as forças do ódio coletivo o qual não tem meios de acesso para expressa emancipação.
Não deveria ser espantoso, são esses os dados refluxos dos apartheids invisíveis e, enfim, rescaldos dos embargos que impedem e desvirtuam perspectivas melhores como forma de engendramento de um futuro humanista alternativo. Quando se trata do colapso da esperança que floresce a partir das derrotas da fé na luta de classes, o que se expressa ao fundo são conteúdos de vida plasmados e fixados nas ruínas dos desejos fundamentalmente não realizados.
Nisso podemos compreender tanto a emergência impulsiva quanto os desvirtuamentos autofágicos correlativos às jornadas de junho de 2013, com a cooptação posterior de suas demandas enquanto espécie de revolta dentro da ordem codificada no limite das margens de respiro intempestivo do próprio status quo, passíveis de ukranização que a fariam dar um cavalo de pau à direita nos anos subsequentes.
Ou seja, se o caminho da construção humana integral não é erguido com rigor e consistência, subsequentemente o que advém é a corrosão das bases constituintes do próprio país, na forma de erosão da ordem a partir das engrenagens da sua desordem implosiva. Invertendo a roda da história, mirando o passado em vez do futuro, instaura a regressão subjetiva e objetiva na forma de retorno involutivo às etapas de desenvolvimento aquém daquilo que o presente aparentemente mantinha como sólido e inquebrantável.
É nesse sentido que o brutal, o bizarro, o grotesco, o cruel e o cínico emergem como naturalizadas formas de expressão comum, imanentes ao colapso total de um país que, desumanizado até a medula, utiliza-se instrumentalmente da miséria de suas pseudorrevoltas e instaura as anomias populares mais vis, com a necessária consequência da regressão histórica ao arcaico, em todas as dimensões a partir das quais podemos assim entender o termo em questão.
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Nota:
- Leonardo Lima Ribeiro é Mestre em filosofia (UECE), graduado e especialista em Comunicação Social, com ênfase prática em cinema e publicidade voltada ao jornalismo sindical. Também é designer, diagramador e editor do site da revista A Comuna; gestor de conteúdo digital do canal TvAComuna; membro do comitê editorial de publicações da revista. Autor dos livros Necropolítica do Capital e Ciência Intuitiva e Suprema Liberdade na Ética de Spinoza. Possui uma diversidade de ensaios e artigos publicados em revistas especializadas e, também, de forma independente. Foi professor e orientador de estágio no ensino básico nas escolas profissionalizantes do Governo do Estado do Ceará (Curso de Multimídia), bem como já foi docente universitário (Universidade Estadual do Vale do Acaraú).
