Por Leonardo Lima Ribeiro
Li Lian Jie, mais conhecido como Jet Li, recusou fazer Matrix porque no contrato de trabalho que deveria assinar havia uma cláusula de mapeamento dos seus movimentos marciais.
Se o ator e artista marcial topasse fazer o filme a Warner Brothers (somada aos bancos e bolsas de valores) se tornaria detentora dos seus movimentos corporais. Não por acaso cedeu seu papel para Colin Chou, alegando que não faria Matrix porque precisava cuidar da filha que acabava de nascer. O apoio a Nina Li Chi, sua esposa, seria mais do que necessário.
Claro, tratava-se de uma mistura de sinceridade e construção de uma linha de fuga para autoproteção. O sequestro do corpo implica na aquisição dos espólios da alma. Li Lian Jie estava certo.
De modo complementar, a questão recentemente levantada por Vladimir Safatle em artigo acerca da imagem de Elis Regina, subsumida às metamorfoses necrófilas do capital, já era patente, antes mesmo da virada do século e do surgimento das inteligências artificiais. O impulsionamento de mapeamento e transformação digital dos mortos em vivos já estava no horizonte daquilo que prenunciava o Admirável Mundo Novo dos bastidores de Hollywood. Confira aqui o texto de Safatle.

Já em 1999 e com sequências realizadas no início dos anos 2000, Matrix emergia no cinema. Abordava a temática do simulacro e das cortinas de fumaça que passamos a desejar em torno dos paraísos artificiais e niilismos Cyberpunks, tomando como obra literária de referência o escrito “Neuromancer”, de William Gibson. Acesse aqui o livro para consulta.

Mas aquilo que parecia ser uma crítica à sociedade ao circular nas salas escuras de cinema tinha como objeto real uma posição autoirônica, ou mesmo cínica. Ou seja, tratava-se da apologia daquilo que se pretendia criticar, a saber: o roubo do corpo e da alma dos trabalhadores do cinema por parte das plutocracias hollywoodianas, seja ou não para preencherem cenários em filmes posteriores como figurinistas.
Tal horizonte faz convergir entretenimento, pesquisas militares e universitárias a partir da linha de encontro entre Hollywod, DARPA, NSA e MIT, os quais já haviam transformado o Vale do Silício em sucursal experimental que lançaria mão de startups. Trata-se de projeto econômico, político, geopolítico e ideológico.
Sem dúvida, a repaginação intencional de Hollywood a partir do mapeamento de atores e atrizes objetiva o alinhamento com essas sucursais sob o pano de fundo de organizações militares.
O próprio Li Lian Jie se deixou vencer por essa lógica, quando, anos mais tarde, teve seus golpes analisados e registrados, de modo a produzirem o jogo de videogame que o teria como protagonista (Rise to Honor). Hoje há pouca diferenciação comparativa entre jogos e filmes, quando se trata da maior parte do percentual de obras de super-heróis que circulam por aí.

A perda ou despossessão de si mesmos seria então a condição pela qual filmes e jogos seriam esteticamente produzidos pela mão de obra de seus atores e personagens. E lá onde o filme Matrix abordava cinematograficamente a crise da sociedade capitalista e o sequestro das vidas alheias se tratava basicamente da reafirmação daquilo que as burguesias produtoras do cinema estadunidense faziam cotidianamente com seus atores, a partir de contratos de codificação e patenteamento dos corpos e subjetividades.
Ora, tal é o justo pano de fundo a partir do qual está havendo agora mesmo uma enorme greve dos trabalhadores da indústria cinematográfica, porquanto o que está em pauta é não apenas a precisão da estabilidade dos empregos de muitos e as negociações salariais via sindicatos relativamente às mudanças na estrutura produtiva cinematográfica, mas a raiva que denuncia e clama para que as almas e os corpos dos atores e roteiristas não lhes sejam roubados na era da indústria 4.0.
Precisamos atentar então para as greves dos trabalhadores do cinema, tanto dos atores quanto dos roteiristas. Afinal de contas, a máquina da indústria cultural pifa de vez em quando e, através da crise nas suas engrenagens, podemos observar sinais e tendências daquilo que devemos utilizar discursivamente como meio de organização social. O objetivo é o de não nos tornarmos reféns da vida capital pós-morte, como ocorreu no caso de Elis Regina.
“Dentre os vários efeitos dessa generalização de um novo regime de trabalho, além da precarização generalizada pela qual alguém trabalharia mais e sem a necessidade de contratar outras pessoas, haveria seguramente o aprofundamento do sofrimento psíquico que o neoliberalismo nos impõe. Pois agora o nível de alienação atinge um patamar até então impensável. Sua personalidade não é mais sua. Depois de morto, você pode continuar a agir a partir dos interesses de rentabilização das empresas e corporações. Uma empresa pode exigir esse tipo de cláusula para te contratar, e você não terá como dizer “não”. Pois esquecemos de um princípio elementar: a história do capitalismo não é a história de seus desenvolvimentos tecnológicos. Ela é a história das lutas operárias, da força que a classe trabalhadora tem para impor freios ao processo de violência e espoliação ao qual ela está submetida. Mas, ao que parece, estamos muito ocupados para lembrar disso.
Em um livro chamado Cosmópolis, de Don Delillo, o protagonista afirma: “no futuro, as pessoas não morrerão, elas se tornarão informação”. Como sempre, artistas percebem os riscos antes de todos. Só faltou completar: “informação no interesse de quem?”.” Arremata Safatle.
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