Por Leonardo Lima Ribeiro

É também ardil do capitalismo convencer que apenas os objetos das prateleiras e serviços precificados são mercadorias passivas. É aí que grande astúcia é operada e, ideologicamente, o objetivo do capital é cumprido. Afinal de contas, uma das maiores astúcias do capital é convencer as pessoas de que são humanas e livres, em vez de serem as principais mercadorias submetidas ao atacado ou varejo artificial como porta de entrada “civilizada” da opressão e exploração social.
Lá onde somos mercadorias mensuradas na forma de salário e operações correspondentes de tempo de trabalho socialmente necessário não há humanidade possível. Nós somos as principais mercadorias operadoras da reprodução do capital, e não os objetos e serviços que adquirimos (em realidade eles são frutos de nosso autoabate).
Se bem que a relação de indiscernibilidade entre pessoas e objetos é cada vez mais comum. No senso comum mais vulgar, somos glamouzirados pelos pertences em nosso entorno, e esquecidos pelo que não possuímos em nossas moradas. Somos “bons partidos” pelos bens que possuímos, e desprezados pelos calçados, carros e apartamentos que não possuímos. Isso ainda é mais real hoje do que ontem, para além dos textos de Balzac, nos marcos da “Comédia Humana”. Objetos têm personalidades e pessoas são subjetivamente objetificadas: a convergência entre as machine learnings, a robótica e a inteligência artificial têm como horizonte amadurecer a distopia.
Mike Davis (2020) confirma: “A automação, é claro, tem sido uma estrela da morte que se aproxima há gerações, com grandes debates sobre o desemprego tecnológico em todas as décadas modernas”. E ainda arremata: “Nesse mundo espelhado da manufatura, o design auxiliado por computador seria substituído pelo design dirigido por computador, resultando em maior desgaste de empregos de engenharia e linha de montagem na Ásia, bem como na Europa e na América do Norte.”
Pois bem, reproduzimos os fluxos do capital na esfera dos objetos que se autoconsomem no gasto de energia vital, tanto quanto outros seres vivos inerentes à totalidade do mundo em que vivemos (não são apenas cabeças de gado e as águas que estão precificados). E, para tanto, temos preços mais ou menos variáveis, que oscilam para mais ou para menos.
Nesse sentido, somos a engrenagem fundamental pela qual, precificados, colocamos a máquina vampiresca para funcionar enquanto indivíduos que extraem de si os gastos mentais e corporais internos com saldo na exteriorização de novos produtos. Estamos assim sob o horizonte da hiperprodutividade e esmagados pela concentração de riquezas que expande a propriedade privada dos meios de produção.
Nós somos também meios de produção, designados objetivamente como “capital variável” ou “mercadoria força de trabalho”. À diferença dos meios de trabalho (capital constante) somos capital variável. Embora hoje, na era do descarte dos sem nada, querem produzir humanoides (capital constante) objetivando a substituição acelerada de capital variável/mercadoria-força de trabalho. Ou seja, espelho de nós mesmos sob o léxico indexador bárbaro e inumano, e excludente de vidas nos marcos do capital.
Ora, qualquer perspectiva liberal (“democrática”) aparentemente descolada e propagada pelos mass media, escolas e grandes bancos que não reafirme pelo critério da denúncia o expresso apenas lubrifica a máquina da lógica vampiresca com o sangue e energia canalizados das vidas subhumanizadas, sob o horizonte da morte no tempo presente – embora autointituladas de “empoderadas”.
Nesse caso, os sonhos reais foram esquecidos e as fantasias fascistizadas pelas lógicas matemáticas das mercadorias e seus fetiches hipnóticos punitivistas e persecutórios. Saldo geral: o oprimido vira opressor, torna-se pequeno-burguês e arranca cotidianamente a cabeça de seus iguais no mercado que já é autoabate.
É isto que é ofertado nas principais instituições do país: o sadismo escancarado na lógica da concorrência de pessoas manufaturadas como mercadorias. No mercado das trocas de mercadorias, somos os principais objetos dinâmicos inumanizados, subjetivamente alienados e estranhados em si e para outrem, a partir do qual a máquina é lubrificada.
Sem dúvida, tal fato se segue em complementação à situação dos que não têm sequer condições de operar como peças ou carnes vivas de reposição da própria máquina. Ou somos explorados por dentro ou somos arremessados para fora, com as portas kafkianas do sistema quebrando a nossa cara e nos arremessando no penhasco do autoflagelo radical. Como nos disse recentemente Mike Davis, em seu “Velhos Deuses, Novos Enigmas”:
“A soma dessas transformações, tanto nas regiões ricas quanto nas pobres, é uma crise sem precedentes de proletarização – ou, se preferirem, da “subordinação real do trabalho ao capital”, personificada por sujeitos cuja consciência e capacidade de efetuar mudanças ainda são em grande parte enigmas. Neilson e Stubbs, usando a terminologia do Capítulo 25 de O Capital, afirmam que “o desdobramento desigual da dinâmica contraditória do mercado de trabalho de longo prazo do capitalismo está gerando um enorme superávit populacional relativo, distribuído em formas e tamanhos profundamente desiguais pelos países do mundo. Já é maior que o exército ativo e deve crescer ainda mais no futuro a médio prazo.” Para onde quer que olhemos, somos lembrados da advertência de Marx: “Uma vez que o objetivo do trabalho produtivo não é a existência do trabalhador, mas a produção de mais-valia, todo trabalho necessário que não produz trabalho excedente é supérfluo e sem valor para a produção capitalista”. Seja como trabalho contingente ou não coletivizado, como microempresários ou criminosos de subsistência, ou simplesmente como desempregados permanentes, o destino dessa humanidade “supérflua” tornou-se o problema central do marxismo do século XXI.”.
Basta atentarmos para o caso do Sudão do Sul, por exemplo. O povo do país é submetido à expulsão integral do sistema (uma regressão histórica catastrófica). Neste caso, o nazismo capitalista é integral, enquanto algumas classes médias mundiais (“trabalhadores-mercadorias”) têm como angustia o valor de um Milk Shake do Mcdonald’s durante uma sessão de cinema de seus shoppings prediletos. Não por acaso, dirá mais uma vez Mike Davis que:
“Enquanto isso, em grande parte do Sul global, as tendências estruturais desde 1980 derrubaram as ideias dos livros didáticos sobre “estágios de crescimento econômico”, à medida que a urbanização se dissociou da industrialização e a subsistência do emprego assalariado. Mesmo em países com altas taxas recentes de crescimento do PIB, como Índia e Nigéria, o desemprego e a pobreza aumentaram em vez de diminuir, razão pela qual o “crescimento sem empregos” se juntou à desigualdade de renda no topo da agenda do Fórum Econômico Mundial de 2015. A pobreza rural, especialmente na África, está sendo rapidamente urbanizada – ou talvez “armazenada” seja o melhor termo – com poucas perspectivas de que os migrantes algum dia sejam reincorporados às modernas relações de produção. Seus destinos são os miseráveis campos de refugiados e favelas periféricas desempregadas, onde seus filhos podem sonhar em se tornar prostitutas ou carros-bomba”.
Tal processo ocorre diferencialmente em cada pais, mas a dinâmica é a mesma. Repetem sua diferença na mesmidade, levando em consideração o espelhamento entre suas conjunturas específicas e estrutura capitalista mundial.
“Em um alto nível de abstração, o atual período de globalização é definido por uma trilogia de economias típicas ideais: superindustrial (costeira da Ásia Oriental), financeira/terciária (Atlântico Norte) e hiperurbanizante/extrativista (África Ocidental). O “crescimento sem empregos” é incipiente no primeiro, crônico no segundo e praticamente absoluto no terceiro. Poderíamos acrescentar um quarto tipo ideal de sociedades em desintegração, apanhadas no vício da guerra e da mudança climática, cuja principal tendência é a exportação de refugiados e mão-de-obra migrante. De qualquer forma, não podemos mais contar com uma única sociedade ou classe paradigmática para modelar os vetores críticos do desenvolvimento histórico” (MIKE DAVIS: Velhos Deuses, Novos Enigmas).
Nesse sentido, toda e qualquer perspectiva de “esquerda” que tente esconder o expresso é reacionária, tirânica, macabra e fascistoide. Em realidade, trata-se de um mecanismo de direita com indumentárias “progressistas”, ofertadas no mercado das ideias impotentes, metamorfoseadas em segmentos e personas do marketing de conteúdo burguês.
Trata-se de mais uma cortina de fumaça a partir do que Nancy Fraser denominaria ironicamente como uma espécie “neoliberalismo progressista“, cuja prática pouco difere em essência do fascismo sobrante das ruínas da história que o fez reemergir paulatinamente nos dias de hoje, tanto após a erosão da URSS quanto a partir da expansão geral do “american way of life” como léxico militarista e marketizado do imperialismo estadunidense. Excrescência paradoxal, o neoliberalismo progressista é irmão fraterno às investidas das recentes extremas-direitas mundiais.
E mesmo lá onde diz a elas se opor se trata de uma Blitzkrieg capitalista ultrarreacionária, cujo objetivo máximo é, ao ocupar o vácuo político deixado pelas esquerdas mundiais mais combativas, ser a expressão do sequestro colonial da consciência crítica das massas subsumidas aos mecanismos do capital. Como recentemente muito bem intuiu Slavoj Žižek em seu recente escrito Barbie não consegue lidar com a verdade: “Não apenas escapamos para a fantasia para evitar o confronto com a realidade, mas também escapamos para a realidade (empírica e banal) para evitar a verdade devastadora sobre a futilidade de nossas fantasias”.
Confira aqui o audiotexto do escrito completo.
