Qual o rumo?

Por Ivo Tonet

É inegável que, do ponto de vista dos interesses da maioria da população, o governo anterior foi um descalabro, sob todos os aspectos – econômico, político, social, ideológico e moral.

Diante disso, é compreensível, sem entrar, ainda, em um exame mais aprofundado, a reação de muitas pessoas, inclusive que se denominam de esquerda, de apoio ao atual governo, ainda que alguns chamem de apoio crítico¹.

   Ainda nesse modo superficial, é inegável que o atual governo tem tomado algumas medidas, especialmente nas áreas econômica, política e social, cujo objetivo seria, sempre segundo o governo, retomar o caminho de uma gradativa melhoria da sociedade em todos esses aspectos. Vale dizer, tratar-se-ia de retomar o caminho do desenvolvimento, de modo a levar o Brasil a se tornar um país soberano e plenamente desenvolvido. Examinaremos, mais adiante, se isso é uma possibilidade real.

     A meu ver, dois pressupostos embasam o caminho proposto pelo atual governo. 

     Primeiro, o pressuposto de que o capitalismo, especialmente na sua forma democrática, é a melhor forma de sociedade possível. Certamente, enfrentando muitos obstáculos e dificuldades, mas, a melhor forma de convivência social possível. Qualquer outra poderia ser até desejável, mas não passaria de utopia. Tratar-se-ia, portanto, de defender, implementar e aperfeiçoar o sistema democrático/cidadão e, enquanto isso, tomar medidas, nacionais e internacionais, para ir diminuindo, gradativamente, a desigualdade social. Não é preciso dizer que essa é a velha concepção liberal de sociedade, formulada pelos grandes pensadores burgueses e que interessa à burguesia.

     Segundo, a pressuposição de que é possível, através de políticas adequadas, levar o Brasil a ocupar, em um espaço de tempo razoavelmente breve, um lugar entre os países mais desenvolvidos. 

     Esses dois pressupostos são, de formas diferentes, admitidos pela ampla maioria do que se chama, sem a mínima precisão, de esquerda. No interior dessa esquerda, as motivações para o apoio são muito diversas, mas, respeitando essa diversidade, creio que poderíamos resumi-las em duas. A primeira, que esse seria, simplesmente, o melhor e único caminho para o objetivo acima apontado. A segunda, que o combate ao que chamam de fascismo seria, no momento, a tarefa fundamental, devendo ter prioridade sobre a luta pelo socialismo. 

     Esses dois pressupostos são inteiramente falsos. O primeiro, porque a lógica do capital, teorizada, em sua essência, por Marx, implica, por sua própria natureza, que suponho conhecida, não a diminuição gradativa da desigualdade social, mas, ao contrário, o seu aumento, cada vez mais rápido e intenso. Com todo o seu cortejo de perversas consequências para a humanidade, mas, especialmente, para os trabalhadores. Os dados empíricos estão à vista de qualquer um que queira, honestamente, compreender a realidade. Essa lógica também implica uma crescente devastação da natureza, já que, para o capital, ela não passa de uma mera mercadoria produtora de lucros. Se, para produzir lucros, é preciso massacrar os trabalhadores e devastar a natureza, que assim seja. Mas, isso, claro, coberto por um discurso de respeito e sustentabilidade. Ainda mais, essa mesma lógica implica, como algo que é parte intrínseca do capital, a existência de crises periódicas, que concentram cada vez mais a riqueza em poucas mãos. Essas crises desembocaram, por volta dos anos 70 do século passado, na atual crise estrutural, que está levando a humanidade à beira de sua extinção. Cabe, ainda acrescentar, nesse momento, que essa lógica perversa do capital é incontrolável². Não há força nenhuma nesse mundo que possa obrigar o capital a investir na produção que não seja para gerar lucros, isto é, para sua autorreprodução, com todas as consequências acima apontadas. Acreditar que o Estado é capaz de controlar essa dinâmica do capital é desconhecer, por razões variadas, essa lógica. O Estado moderno foi configurado exatamente para dar suporte, com todas as forças – políticas, ideológicas e militares – à reprodução do próprio capital. Isso significa que há uma dependência ontológica do Estado em relação ao capital³. 

     O segundo pressuposto é falso porque o caminho trilhado pelo Brasil, desde a sua formação, após a invasão europeia, não foi o mesmo percorrido pelos países hoje desenvolvidos. Aqueles países fizeram a revolução burguesa na sua plenitude. Nos âmbitos econômico, político, social e ideológico. Mas, é importante enfatizar que essa revolução teve por eixo o desenvolvimento econômico interno de cada um deles. Ao contrário disso, o eixo do desenvolvimento brasileiro foi, sempre, a sua inserção – dependente, subordinada e articulada – aos países centrais, quer tenham sido Portugal, Inglaterra ou Estados Unidos. O que significa dizer que o Brasil nunca realizou a revolução burguesa típica. E mais, como essa dependência, essa subordinação e essa articulação com o imperialismo continuam existindo, o Brasil ocupa uma posição dependente, subordinada e articulada na divisão internacional do trabalho, tendo como função principal a produção e a exportação de matérias-primas. Se, portanto, levarmos em conta a dinâmica do capital e a realidade da crise atual, que implica uma enorme reformulação da divisão internacional do trabalho comandada pelos países imperialistas, poderemos concluir que o caminho do desenvolvimento, ou seja, da plena realização da revolução burguesa, está completamente bloqueado. Como acentuava Chasin: a revolução burguesa, no Brasil foi incompleta e é incompletável4. Em resumo, não há mais lugar, para nenhum país periférico, incluindo o Brasil, à mesa do pleno desenvolvimento. 

     A realização da revolução burguesa plena, implicaria avanços tecnológicos rápidos e intensos, conjugados com uma industrialização ampla e intensiva. Tudo isso para que o país deixasse de ser, principalmente, um exportador de matérias-primas. O que se está vendo é exatamente o contrário: pouco investimento em ciência e tecnologia, uma desindustrialização crescente e uma ênfase na produção e exportação de matérias-primas. Não é preciso dizer que isso tem profundas implicações nos campos político, social e ideológico.

     Ora, a burguesia brasileira, sempre dependente, subordinada e articulada com o imperialismo, hoje norte-americano, não tem o menor interesse em assumir essa tarefa, que implicaria um confronto e uma ruptura profunda com esse imperialismo. Por causa disso, essa mesma burguesia, para manter os seus lucros, necessita, independente de qualquer boa intenção, intensificar a exploração dos trabalhadores. Daí porque, o atual governo, promotor dos interesses dessa burguesia, apesar de todos os seus discursos pretensamente progressistas, não revogou nem a reforma trabalhista, nem a reforma da previdência, nem as privatizações. Também não tocou, de modo nenhum, na questão da dívida pública, que consome quase metade do orçamento nacional. Sem mencionar as políticas sociais nas áreas da saúde, educação, transporte, habitação e outras, todas elas coerentes com o posicionamento em relação às questões mais substanciais. A maioria dessas medidas não passa de uma cortina de fumaça, pois são completamente irrelevantes.  Algumas delas até servem para dar às ações do governo uma aparência de humanismo, de preocupação com os mais pobres e com setores específicos, e de avanço na superação da desigualdade social. Acrescente-se a isso o fato de que esse caminho, trilhado pelo atual governo, retira dos trabalhadores o seu protagonismo na resolução dos problemas sociais, transformando-os em meros clientes passivos do Estado e, com isso, subordinando-os aos interesses da burguesia.

     Quanto à afirmação de que a prioridade é a luta contra o fascismo e não pelo socialismo, valem algumas observações. Em primeiro lugar, que apesar de similaridades, não existe fascismo no Brasil5. Em segundo lugar que, o que existe, sim, é o avanço de uma direita cada vez mais extremada, o que não é estranhar, pois, uma vez que os caminhos trilhados por essa esquerda não resolvem os problemas das grandes massas exploradas, a tendência é que elas se voltem para outros pretensos salvadores. Frente à intensificação, cada vez mais rápida e brutal, da crise do capital, ele não hesitará em lançar mãos de todas as medidas, inclusive das mais violentas, para defender os seus interesses.   Por isso mesmo, a luta por uma transformação radical da sociedade, isto é, pelo socialismo, é cada vez mais prioritária.  

     Se o que foi dito até agora, está no caminho, de algum modo, certo, então surge, inevitavelmente, a pergunta: E agora, José, o que fazer? Qual o rumo? 

     Nem por sombra, é minha intenção, oferecer uma resposta mais completa a essa questão, extremamente complexa. Minha intenção é externar algumas ideias que possam contribuir para refletir sobre essa difícil questão.  

     Se é verdade, e penso que seja, que a classe operária, por sua posição no processo de produção da riqueza material que sustenta toda a sociedade e por ser impedida, por esse mesmo processo, de ter acesso a essa riqueza, é o sujeito fundamental de uma transformação radical da sociedade; transformação que permita a construção de uma forma de sociabilidade em que todos os indivíduos possam ter uma vida realmente digna, então, algumas tarefas se apresentam.           

     Primeira: a clarificação teórica do seu objetivo maior, o comunismo. Vale dizer, a demonstração de que é possível atingi-lo e o esclarecimento das determinações essenciais dessa nova forma de sociabilidade. Estas duas tarefas foram, em sua essência, realizadas por Marx, daí porque o estudo sério e aprofundado das obras desse pensador, ainda que, obviamente, não só dele, seja condição inescapável6. Considerando, todavia, as enormes deformações que a elaboração marxiana sofreu, ao longo da luta entre capital e trabalho, tanto por obra e graça dos seus inimigos de classe, como, também, por muitos dos seus seguidores, o resgate da proposta marxiana é de fundamental importância. Ter clareza, pelo menos, em termos dos traços essenciais, do objetivo maior a ser atingido é algo absolutamente necessário, pois é ele que deverá nortear todas as lutas dos trabalhadores. Infelizmente predominam, hoje,  na maioria da esquerda, ou ideias reformistas ou politicistas. As primeiras, defendendo a possibilidade de construir uma sociedade cada vez melhor ou até de chegar ao socialismo pela via de sucessivas melhorias, sem uma ruptura radical com o capital. As segundas, defendendo a possibilidade de alcançar esse mesmo objetivo através da tomada do Estado e/ou através da organização de um Estado dito operário ou sob controle dos trabalhadores. 

    Segunda: a sustentação de que se faz necessária uma ruptura radical, isto é, uma verdadeira revolução para superar o atual sistema social. Daí, a necessidade de clarificar o que é uma revolução7, seu fundamento, seus elementos essenciais, qual (quais) o(s) sujeito(s) desse processo8 e, pelo menos, em seus aspectos essenciais, como se dará o processo de transição do capitalismo ao comunismo. Considerando as deformações, teóricas e práticas que essa problemática sofreu, pode-se imaginar a magnitude dessa tarefa.

     Terceira: ainda dentro dessa tarefa teórica, uma análise que evidencie as linhas gerais da situação atual do capitalismo, tanto em nível internacional como nacional. Análise esta que deverá ser realizada com recurso ao método científico marxiano, de caráter histórico-materialista9. Sabemos que, neste método, “não é a consciência que determina o ser social; é o ser social que determina a consciência”, O que significa dizer que o eixo dessa análise tem que ser a dinâmica do capital em crise. Questões econômicas, políticas, ideológicas e militares só ganham o seu sentido mais profundo a partir desse eixo. É desnecessário dizer que a presença da problemática da luta de classes é, também, de capital importância. Infelizmente, a maioria das análises dessa problemática carecem dessa abordagem histórico-materialista, privilegiando aspectos – econômicos, políticos, sociais, ideológicas e militares – importantes, mas que, na falta de sua articulação com a dinâmica do capital em crise, não permitem uma compreensão correta da realidade.

     Quarta: a elaboração de uma teoria do Brasil, isto é, uma compreensão da realidade  brasileira atual, à luz do processo de formação da sociedade brasileira. Esta análise deverá evidenciar a articulação entre o momento universal (a formação geral do capitalismo e a crise atual) e o momento particular (a formação específica do Brasil).  

     Quinta: buscar formas de organização, independentes do Estado, que possam traduzir praticamente essas orientações gerais, de modo a articular as lutas imediatas com o objetivo geral.

Fundamental, ao longo desse processo, fazer agitação e propaganda dos temas acima mencionados, de tal modo a contribuir para a formação de uma consciência revolucionária. Vale enfatizar que, tanto da elaboração teórica mais geral, como da agitação e propaganda, deverá fazer parte o combate às mais variadas formas da ideologia burguesa: reformismo, politicismo, irracionalismo, pós-modernismo, decolonialismo, identitarismo e outras.

     Como se pode ver, as tarefas atuais de quem pretende contribuir para uma transformação radical do mundo, são imensas. E não há receitas. 

     Este caminho é difícil? Sem dúvida. Todavia, para a emancipação da classe trabalhadora, é o único possível. Ou isto, ou a intensificação da barbárie e a extinção da humanidade. Entendo, então, que é melhor dar poucos passos nessa direção do que muitos passos na direção errada de tentar humanizar o capitalismo. 

                                Maceió, julho de 2023

Notas

1 – Advertência: esse não é um texto acadêmico, no sentido formal, mas apenas de reflexão. 

2 – Sobre a questão da incontrolabilidade do capital, ver, além d`O Capital, de Marx, também Para Além do Capital, de I. Mészáros.

3 – Sobre a relação entre Capital e Estado, ver, de Marx, Glosas críticas…

4 – A respeito da formação do Brasil pela via colonial, ver, de J. Chasin, O integralismo de Plínio Salgado (Conclusão) e de Maria A. B. Rodrigues, Particularidade e objetivação do capitalismo.

5 – Essa questão, por si mesma, requereria uma alentada discussão que, infelizmente, não cabe nesse pequeno texto.

6 – Apenas a título de sugestão, para iniciantes, ver o meu texto: Estudar Marx, encontrável no meu site: ivotonet.xp3.biz.

7 – A respeito dessa categoria, ver meus textos: Trabalho associado e revolução proletária e Trabalho associado e extinção do Estado, encontráveis no meu site.

8 – A respeito da questão da revolução e do(s) sujeito(s) em conexão com a situação atual, ver, de I. Tonet e A. Nascimento: Descaminhos da esquerda – da centralidade do trabalho à centralidade da política; de S. Lessa e I Tonet: A grande revolução russa e de I. Tonet: O grande ausente. Encontrável no meu site.

9 – Sobre a questão do método marxiano, ver, de José Paulo Netto, Introdução ao estudo método de Marx e o curso por ele ministrado na pós-graduação da UFPE. Este curso pode ser encontrado na internet. Também, de J. Chasin: Marx – estatuto ontológico e resolução metodológica e meu livro: Método científico – uma abordagem ontológica. 

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