Por Rui Svensson Fonseca*
Revolução brasileira, a partir das experiências históricas e também da conjuntura atual.
Esclareço de início que esse texto não é inteiramente político; pretende ser também organizativo, com fim de principalmente sugerir algumas atualizações táticas. Ainda que um tanto mal estruturado, a ideia é clara. Se leu e não entendeu, por favor tome um copo de água e leia de novo; isso pode ser um problema de quem está acostumado a textos somente políticos/econômicos: a falta de costume de pensar nos aspectos práticos dos desafios à frente.
Considerando que vivemos hoje numa ditabranda – para alguns a palavra certa é democratura – um regime que conserva alguma aparência de democracia por ainda haver eleições, mas restringe fortemente as liberdades democráticas, em especial a participação da grande maioria da população nas grandes decisões de governo – já referido como um Estado de exceção permanente. Já há muito tempo a burguesia descobriu que esse regime híbrido de democracia burguesa clássica e Estado de exceção é o melhor para os negócios. Embora haja ainda legalmente liberdade de expressão e reunião, os aparelhos de repressão fazem já algum monitoramento constante, chegando a tomar algumas medidas de intimidação quando excedido algum limite na organização das massas exploradas. Limite esse que não chega a ser explicitamente definido, por vezes chega a ser considerado subjetivo, existindo apenas na mente das cabeças da repressão. À medida que o sistema político vai perdendo a capacidade de conter a mobilização das classes exploradas, vai adquirindo importância na dominação os métodos repressivos, e com isso a frequência em que teremos infiltrações dos aparatos de repressão nos espaços democráticos, dificultando a capacidade de articulação dos movimentos sociais.
Num país que durante a maior parte de sua história sempre teve muito pouca participação popular – afinal a república já foi criada pelos militares – aquilo que chamamos de “democracia” sempre foi algo muito restrito e compartimentado. Com a queda do regime soviético e do muro de Berlim, e o consequente descrédito do sonho socialista, a burguesia internacional se viu livre para tirar a máscara, e descartar o que era conhecido como regime de bem estar social. A moda agora são os regimes da “democracia de faz de conta”: os governantes podem prometer o que quiserem, mas na prática seguem um caminho muito estreito – “podes fazer o que quiser, desde que seja o que eu quero” – sempre subordinados ao capital. O diagnóstico da realidade atual é curto e grosso: como a direita tradicional não consegue criar um regime político estável, a extrema direita aproveitou a instabilidade como uma brecha para alavancar seu projeto político.
Segundo meus estudos de sociologia – confesso que é muito pouco, mas dá pro gasto – é preciso entender a gênese social e cultural de um povo, para traçar o caminho de sua libertação. Ora, o Brasil nasceu a partir de um cadinho de nacionalidades, sendo sua elite inicial de origem portuguesa, com alguma participação inglesa (afinal na independência, o país já nasceu devendo num acerto financeiro entre a coroa portuguesa e a inglesa), francesa, alemã, etc; e a maior parte de sua força de trabalho sendo trazida à força da África; e dependendo da região do país, uma forte participação indígena. Ora, naquele acordo inicial constava a prioridade inglesa nas importações brasileiras, o que trouxe junto toda uma série de produtos e serviços cujo uso e manutenção demandava algum conhecimento da língua inglesa. Por aí temos ideia de onde vem aquele sentimento arraigado de que tudo que vem do exterior é bom, o famoso “complexo de vira-latas”. Mais tarde, após a segunda guerra, este posto foi assumido pelos estados unidos, aproveitando-se justamente do idioma e da indústria do cinema, que introjeta não só no Brasil uma hegemonia cultural vinda do norte que se associa a um corte de classe fortemente excludente, mercantilista e concentrador. Mas essa submissão introjetada não acontece sem luta: o brasileiro aprendeu a dar volta por cima, criando soluções em sua vida cotidiana que demonstram extrema criatividade. Tendo destrinchado rapidamente o nó dessa submissão introjetada, cumpre então traçar o caminho de sua superação, começando por atribuir ao brasileiro de todas origens o direito e o dever de lançar-se ao desafio de alcançar níveis internacionais de excelência, partindo de sua conhecida capacidade de criação, e descartando qualquer ideia de inferioridade a priori. Justamente entre as comunidades de periferia, encontram-se variados exemplos de como aproveitar os parcos recursos para superar adversidades. Se essa explicação não é exatamente a mesma dos historiadores mais experientes, creio que possam contestar de forma fundamentada; ademais, creio que sejam explicações complementares.
Como complemento deste ponto de vista, destaco que a classe dominante brasileira, ao longo da história, implementou, sob determinação do imperialismo, uma série de entraves ao desenvolvimento do país, favorecendo de
formas variadas o grande capital internacional. Para garantir isso, os governantes contam com a crônica tibieza das forças políticas que poderiam questionar tais ações, e o baixo nível cultural entre os explorados, que os faz não enxergar o quadro todo, e ignorar os privilégios da elite, as falhas do sistema e as possibilidades abertas pelo desenvolvimento tecnológico.
O trabalho constitui um dos elementos essenciais na formação do caráter do ser humano, mais até do que a formação escolar; mas como sabemos, esta se torna em grande parte dos países subdesenvolvidos, de abrangência e profundidade cada dia mais precária. Assim, temos que os trabalhadores têm sua visão de mundo “moldada” principalmente pela natureza de seu trabalho individual, assim como pela religião. Sem acesso a rica diversidade da ciência e cultura conquistada pela humanidade, temos que para grande parte da humanidade, é difícil vislumbrar as muitas possibilidades que se abrem no caminho pelo progresso, que permitiriam garantir vida digna a cada ser humano, embora em cada país apresente desafios singulares. Faz parte das tarefas da esquerda explicar a cada segmento dos explorados, de forma clara e consistente, que é plenamente possível outra forma de organizar um mundo sem as mazelas que sofremos… Para isso, teremos de abandonar pelo menos em parte, o estilo acadêmico e professoral com que nos acostumamos.
Dentre os muitos sinais da decadência do capitalismo, destaco apenas quatro: a pesca predatória, que chega a explorar de forma destrutiva e irresponsável até ameaçar de extinção algumas espécies, rapinando até o fundo dos oceanos; a terceirização, que insere um intermediário entre o trabalhador e sua fonte de renda; a mal disfarçada incapacidade de combater a produção e comércio de drogas prejudiciais à saúde, já que faz parte do metabolismo real da economia; e a resoluta negativa em adotar significativa redução no consumo de combustíveis fósseis, baseada em estudos patrocinados pelas próprias petroleiras – este último nos dá até uma data aproximada, depois da qual não se pode dar garantias de evitar o descalabro ambiental e social. Nesse avançado estado de crise, estes sinais recentes mostram que o capitalismo se assemelha a um monstro da FC, que em troca da imortalidade se metamorfoseia em formas cada vez mais grotescas e pavorosas. Não encontrando novas fronteiras de exploração, o sistema passa, de forma autofágica, a devorar suas próprias forças produtivas. Tudo isso me leva a concluir: cabe a essa geração da esquerda superar sua própria crise, porque a próxima enfrentará condições ainda mais adversas. A recente decisão dos donos do mundo, de tomar medidas globais para reduzir o valor do trabalho é outro motivo para botar na ordem do dia – para ontem – a necessidade urgente e inapelável de recuperar o perfil de luta da esquerda, reconstruir seus partidos, e voltar a lutar (porque a impressão que tenho, é que não estamos nos esforçando o suficiente).
Uma vez eu cheguei a avaliar a História sob um ângulo que misturava determinismo com teleologia: imaginem que a História tenha armado duas guerras mundiais e uma violenta revolução social (que seria revertida 72 anos depois) para obrigar o capitalismo a implementar (pelo menos numa parte do mundo) o Estado de bem estar social e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, (que décadas depois também sofreriam novo ataque, despejando sobre uma geração -a nossa- a responsabilidade de reagir a esse retrocesso global), chegando a uma situação em que um país se arvora sobre os outros em vários sentidos, significando que as lutas de libertação nacional agora são válidas inclusive no que antes era o Velho Mundo, levando o curso dos eventos a uma nova encruzilhada histórica. Olhando essa evolução de longe, não se consegue imaginar que possa piorar. Já se disse que a História não segue uma linha reta, nem mesmo uma curva harmônica: lembra mais a rota de um animal em fuga, que muda de direção constantemente, e a cada vez as opções se estreitam. Sem dúvida que não há nenhuma inteligência superior governando os destinos da humanidade, mas o curso dos eventos tem desafiado, era após era, a capacidade do ser humano em antecipar as características dos processos em nosso futuro. Nesse (talvez pouco) modesto trabalho, estou tentando fazer a minha parte, tentando enxergar um pouco mais longe, a partir dos ensinamentos das experiências anteriores, na esperança de melhorar as chances de uma solução positiva para o inevitável conflito que virá.
O quarto poder – a imprensa – faz parte do regime, manobrando e cultivando a opinião pública segundo os interesses da classe dominante. Quero acrescentar algo pouco considerado: o efeito mistificador da propaganda sobre a classe trabalhadora. Ao assistir ao merchandising dessa impressionante variedade de produtos, poucos percebem que a maior parte do que é oferecido destina-se a uma pequena parte da população, favorecida pela sorte ao nascer em uma família mais endinheirada: isso poderia ser muito melhor explorado pela esquerda. Também esclarecer que, ao ser gratuita, a difusão da imprensa aberta tem como clientes não a população, mas os anunciantes; e, é claro, favorecendo uma determinada narrativa, explorando a notícia sempre segundo ângulos que favoreçam os planos dos governos e das elites.
Enquanto isso, nos subterrâneos da economia, a lógica abstrusa da distribuição da renda no capitalismo continua socavando e cobrando seu preço. As crises periódicas, ainda que sejam uma determinação inescapável da economia, assumem uma característica muito mal compreendida pela população: sendo por definição uma situação que tende a se afastar do ideal, poucos percebem que em algum lugar, há alguém esfregando as mãos de felicidade (nunca lucramos tanto! …). À medida que a tecnologia cria novas formas de substituir trabalho humano por alguma nova máquina, a concorrência obriga cada empresa a seguir esta tendência, para acelerar o giro do capital, mas a desigualdade entre a concorrência determina que nem todas consigam fazer esta substituição – algumas ficam pelo
caminho, rumo à falência – e assim se aprofunda a concentração dentro de cada setor da economia (que me perdoem os economistas marxistas, por resumir tanto o que levaram dezenas de páginas para explicar). Se fosse explicar a um colono esse fato, começaria dizendo que o rio que corre hoje já não é o mesmo rio que corria ontem, porque muita água correu, levou terra, trouxe peixe e outros bichinhos; da mesma forma, a economia que vemos hoje em crise não é a mesma de ontem ou do ano passado porque muitas empresas fecharam e outras foram abertas, mas o fato a desvelar é que as empresas maiores não concorrem da mesma forma que as pequenas: aproveitam-se do predomínio de mercado e até da proximidade com o poder político para impor a clientes e fornecedores um nível de preços que lhe favoreça. A população em geral deve compreender que, longe de ser um ambiente saudável de concorrência saudável e harmoniosa, o tal “mercado” tão decantado é uma verdadeira selva, onde cada empresário que tenha alguma margem de manobra – o que exclui todos os pequenos e quase todos os médios – vive em luta de vida e morte com seu congênere; e que nessa guerra contra seu semelhante, algumas vezes não hesitam em se valer de expedientes escusos. Aos demais, a vida é como a de um trabalhador: obedecer aos ditames de outrem, mesmo acreditando ser patrão.
Posso abrir aqui uma explicação alternativa – e brutalmente mais simples – para o que Marx expôs em O Capital: o capitalismo se distingue especialmente não por produzir exatamente riqueza, mas dinheiro. Como se sabe, são dois conceitos que alguns podem até confundir. Mas a lógica abstrusa obriga a multiplicar incessantemente o segundo, sem que o primeiro consiga acompanhar. Quando os dois se descolam, o metabolismo leva fatalmente a um engasgo periódico e de difícil recuperação. Nesse cego afã, a mesma lógica obriga a transformar tudo de realmente importante para o ser humano – saúde, conhecimento, conforto, natureza, honra, prazer, segurança – em dinheiro. E quem não tiver o vil metal, que se lasque. É sempre esclarecedor acrescentar que as soluções praticadas para resolver cada crise quase sempre não podem ser repetidas, porque a memória dos investidores recupera o resultado sempre efêmero da tentativa anterior, inviabilizando que funcione da mesma forma.
Como consequência ainda mais perversa, o fechamento de um percentual crescente de postos de trabalho. Um olhar mais atento demonstra também uma diminuição relativa e continuada da proporção do mercado interno em relação ao conjunto da sociedade, e até um indicador muito singular e creio pouco estudado: a partir de uma análise estatística, percebe-se haver uma sobreoferta relativa nas camadas mais privilegiadas, em contraste com a suboferta no outro extremo, o que contribui para travar a economia. Confirmando esta tendência, um percentual expressivo já fora do mercado consumidor – os moradores de rua – e uma camada intermediária parcialmente fora, por comprar por fora do mercado legalizado. Comparando a geração de valor por pessoa física, descobre-se também que uma parte crescente da população gera valor para alguém situado numa faixa de renda acima – alguns descobrem estar até mesmo fora da faixa de renda para a qual geram valor, o que contradiz diretamente aqueles manuais da economia clássica (que por explicarem os conceitos do mercado como naturais e inevitáveis, não ensinam uma ciência, mas uma doutrina). Além disso, neste malfadado país, há mais de um século alguma grande corporação estrangeira decidiu que, ao contrário da maior parte do mundo civilizado, todo transporte de carga ou passageiros teria de ser rodoviário, encarecendo toda cadeia produtiva para melhor escoar a produção das grandes montadoras – mais uma prova da absoluta subserviência das elites nacionais aos gringos. A tributação fortemente regressiva, por incidir principalmente sobre o consumo, põe à mostra um viés que privilegia fortemente grandes investidores.
Muitos tratados sociológicos e filosóficos têm sido escritos descrevendo a complexa relação existente entre o sistema econômico e sua influência sobre a psicologia das massas. Assim, espero dar minha curta contribuição de novo simplificando a compreensão sobre isso. A solidariedade é o comportamento natural do ser humano; a ideologia da classe dominante consegue corromper esta natureza solidária, instilando sobre o indivíduo de todas classes o egoísmo. Esta simples constatação vai contra o senso comum, que nos bombardeia de todos os meios, o tempo todo, que o individualismo faz parte indissociável do ser humano. Em outro plano, em uma sociedade em que a maior parte da população tem baixo nível cultural, o treinamento para o trabalho constitui o fator principal que molda a personalidade de quem não tem outras fontes de conhecimento – o que é apenas uma forma mais singela de explicar o que Marx já nos dissera, mas lhe custou uma longa e árida explicação filosófica. Também se depreende de seus escritos, embora alguns leitores não o compreendam, que a sanha desmedida pelo lucro passou a governar com prioridade absoluta as empresas e as nações: isso recentemente ficou evidenciado pela incapacidade de reagir eficazmente à ameaça global do colapso ambiental. Tolos os homens que pensam que governam, porque o dinheiro é que manda…
Mais um sinal dos tempos: o agigantamento do que chamamos de capital fictício. Quantidades monstruosas de capital sendo negociadas eletronicamente, através da internet, buscando valorização. Apurou-se por exemplo, que em 2015 o total negociado entre instituições financeiras internacionais representava aproximadamente 88 vezes tudo que foi produzido no planeta inteiro. Ou seja, esta turma ensandecida negocia uma riqueza que não existe! E quando esse cassino financeiro sofre um engasgo, induz uma crise no sistema produtivo, vindo diretamente da ganância e da falta de planejamento que é própria do capitalismo. O capital financeiro, ao relacionar-se com seu congênere industrial, ao conceder empréstimos, personifica nesse momento a própria essência do capitalismo, exigindo a máxima rentabilidade sem expressar a mínima consideração pelas pessoas que fazem o trabalho real.
Um dos indícios do relativo despreparo em que nos encontramos – e que muitos encaram como um toque de modernidade – é essa tendência muito recente, pandêmica entre a juventude e a pequena-burguesia, de encontrarmos pessoas em cada momento de pausa grudados num smartphone – a tal nomofobia: a necessidade psicológica de permanecer online o tempo todo. Em cada parada de ônibus, sala de espera, refeitório, sala de aula, e até andando pela rua encontramos pessoas que em outra época estariam conversando, ou refletindo sobre sua realidade, agora dedicam seus poucos momentos livres a assistir e replicar banalidades, boatos e até notícias falsas. Não se trata de saudosismo, mas de uma constatação mais que realista: evidentemente que estarmos conectados de forma prática e barata deveria facilitar nossas vidas, mas precisamos lembrar que o sistema usa toda informação sobre nossas mensagens e contatos para nos dominar de forma mais completa e abrangente, invadindo nossa privacidade… e até bloqueando de alguma forma as tentativas de organização da classe, afinal mesmo dizendo o contrário, cada rede social é uma empresa privada, onde o cliente não é o usuário, mas o anunciante… Pois vou me dar ao luxo de ser paranoico: em caso de convulsão social, seria inteligente a esquerda contar com outras formas de contato… porque acreditem ou não, com certeza existe algum obscuro departamento nas entranhas do poder criado especificamente para monitorar a esquerda, e que certamente vai inchar numa escala inédita quando conseguirmos atrapalhar de forma mais efetiva os planos das elites.
Outro sinal dos tempos insanos é aquilo que chamam de esporte: duas dúzias de jovens semianalfabetos, a tourear uma bola de um lado pro outro, e legiões de imbecis grudados na tevê como se fosse a coisa mais importante do mundo (a lavagem cerebral é tão poderosa que tem até militante de esquerda nessa roubada). Provavelmente para os atletas seja a oportunidade de uma vida – ganhando pequenas fortunas para se divertir – mas pro público é apenas uma válvula de escape, uma forma que o sistema encontrou para domesticar e imbecilizar multidões, de fazê-los esquecer seus problemas, além de gerar grandes lucros pros anunciantes.
Porém, ficar no sofá enchendo as guampas de cerveja torcendo para alguém que nem conhece pessoalmente, eu não chamo de esporte: é apenas mais uma forma sofisticada de lavagem cerebral, para tirar das pessoas o ânimo de lutar (se fosse esporte, não haveria tantas barrigas pronunciadas, a denunciar falta de exercício). Mesma coisa para as redes sociais, cinema, carnaval, corrida de carros, novelas, etc.
Antigamente havia apenas a religião a cumprir esse papel, porém a emergência da revolução russa demonstrou que não tinha suficiente abrangência social, então a burguesia tratou de variar e modernizar seus esquemas de dominação – alguns preferem chamar de aparatos de hegemonia, talvez seja mais apropriado – que estão dando muito certo: veja-se a apatia da classe trabalhadora frente à queda no nível de vida.
O sistema político brasileiro, sem destoar muito do que existe no restante do mundo, é uma mescla bem costurada de balcão de negócios com um teatro bem montado, onde marionetes engravatados da classe dominante, em tom monocórdio e propositalmente maçante de doer, encenam uma pantomina grotesca de troca de favores disfarçada de “interesse público”. Os parlamentos, prostituídos pelo poder econômico, se historicamente nunca representaram a população, continuam ampliando e escancarando sua absurda falta de representatividade. Quando algum parlamentar tenta alguma medida mais popular, quase sempre resulta de simples interesse eleitoreiro, sem ameaçar a lógica capitalista. Os partidos, verdadeiras quadrilhas, são constituídos predominantemente por aqueles que se especializaram na arte da enganação – muitas vezes, são chamados para a tarefa celebridades sem qualquer compromisso social. Mesmo entre os partidos da esquerda, é muito forte a pressão para adaptação ao sistema, onde os mandatos parlamentares se constituem em esferas de decisão autônomas, quase como se o titular do mandato fosse um sócio de uma empresa, em um patamar mais elevado que os outros filiados. Os impressionantes índices de votos nulos e abstenções nos processos eleitorais demonstram a qualquer um com mínimo de raciocínio que a tal democracia representativa não emociona mais ninguém.
A população, ainda acreditando no sistema que chama isso de Política, prefere manter-se à margem, somente prestando alguma atenção em período eleitoral, por ser obrigatório o voto – e mesmo assim, logo esquece em quem votou. A reputação do sistema político permanece em níveis folcloricamente baixos. A esquerda radical – ou seja, aqueles que mantêm algum referencial de derrubada do sistema capitalista – no momento presente ainda dividida em pequenos grupos, consegue episodicamente mobilizar alguns setores sociais, mas muito longe do que tínhamos logo após a redemocratização. Seus líderes esmeram-se em prognósticos econômicos, caracterizações políticas e avaliações conjunturais, aparentemente sem conseguir perceber a origem de suas debilidades.
A imprensa, conhecida eufemisticamente como quarto poder, exerce o papel de desviar a atenção da população para longe de seus interesses imediatos: oferecendo um variado sortimento de notícias escolhidas que distorcem a realidade, mescladas com futilidades variadas, e propaganda que além de fonte de lucro, serve como instrumental adicional e muito poderoso de alienação. A esquerda bem que poderia aproveitar e denunciar: esses produtos e serviços servem a uma parcela muito pequena da população; esse é um desfilar das facilidades da vida das elites – se soubermos contrapor, por meio de diferentes canais sob nosso controle, as mazelas das periferias haverá provavelmente um gradual despertar da consciência dessas populações desassistidas, e um correspondente aumento da revolta em relação à realidade. O fato da TV ser um serviço prestado de forma gratuita apenas evidencia a conclusão de que o cliente da imprensa não é a população, mas os anunciantes.
O espectador não passa de produto, a ser cultivado, moldado e vendido conforme os interesses de quem pagar mais… e parte do tempo, o principal cliente é o governo de plantão, na defesa incessante do sistema, dos planos econômicos e na ocultação das medidas impopulares. O aparelho de Estado, além de ser um instrumento de dominação de classe, tornou-se também fonte de lucros privilegiada para as grandes corporações, em especial os bancos (que além de lucrarem sem risco sobre a poupança da população, agora engendraram um esquema criminoso e perfeitamente legal de extorquir um naco generoso das receitas do Estado), que sem produzir absolutamente nada, ainda estendem seus tentáculos sobre os serviços públicos. Ao longo das últimas décadas, gestou-se dentro dos Estados modernos uma separação entre o governo propriamente dito, e as várias instituições subordinadas, na qual em nome da eficiência a maior parte das decisões ficam a cargo de burocratas de carreira, e por cargos de confiança não eleitos. Em decorrência da fraquíssima participação popular, além da prioridade do atendimento ser a quem tem mais dinheiro, há uma epidêmica e invencível tendência ao desvio de recursos públicos, que faz parte da administração desde o início da História do país, cuja denúncia costuma ser cavalo de batalha entre as facções em disputa, sendo verdadeira ou não…
A economia brasileira, há tempos anda de lado: em poucas palavras, lembra um elefante vesgo e capenga, que sucessivos planos econômicos não conseguem acelerar. A redução dos rendimentos da parcela mais pobre da população leva ao descalabro boa parcela dos varejistas, que sem ter escolha nem consciência, fecham o coro em torno das elites, movidos pelo ódio de classe e pela mídia. Uma minoria de grandes corporações, bancos principalmente, disputam incansavelmente uma fatia maior dos recursos públicos – via incentivos, superfaturamento ou privatização – usando desde lobbies junto aos parlamentares e a burocracia estatal, concorrência desleal, abuso do poder econômico, fraudes, até as várias modalidades de corrupção. A burguesia intermediária, sem ter escolha, não consegue ter planos próprios. Sem ter planos de desenvolvimento coerentes, nem qualquer compromisso real com causas populares, os sucessivos governantes, em conluio abjeto com seus financiadores, conseguem se eleger e reeleger à custa de campanhas milionárias e uma asquerosa cumplicidade da imprensa. Serviços públicos sucateados e mal geridos (intencionalmente, visando privatizar), principalmente quando tem como alvo a maioria da população, a qual entorpecida por um quadro social pouco animador, não vislumbra saídas. Obedecendo aos ditames dos países centrais, as elites empreendem há algum tempo uma gradual e pouco comentada desindustrialização do país, ao mesmo tempo entregando ao controle estrangeiro suas reservas mais valiosas. Nesse ritmo, logo teremos um grande fazendão, ainda mais feio e violento, com um povo ainda mais pobre e ignorante…
Mais uma pista das tantas mazelas que afligem nosso povo, entre tantas, é o recente e absurdo predomínio das religiões evangélicas entre as camadas populares menos instruídas: além de desfrutarem de uma forte proteção legal – criminalização de qualquer ataque que sofram, isenção tributária, uma complacência mais que suspeita por parte do judiciário – agora as diferentes igrejas se esmeram em espoliar financeiramente os mais pobres, sem que pareça algo descabido aos agentes públicos a quem deveria caber a proteção dos menos favorecidos. E junto com a extorsão vem o conformismo social frente à crise social e o ataque continuado aos avanços sociais: uma versão renovada do papel que as religiões vem desempenhando desde o início da História até o ponto de inflexão que representou a Revolução Russa, mas agora em novas condições – o uso desbragado da TV e do rádio, e o desincentivo à educação científica. Ora, para que servem as religiões? Justamente para isso: tornar as pessoas dóceis, obedientes, aceitarem a cruel realidade sem questionar. A religião surgiu como fator essencial à coesão social, em comunidades vivendo em ambientes rústicos e cruéis; e logo seus sacerdotes tornaram-se aliados dos governantes, ávidos por quem os legitimasse. Hoje, em uma sociedade em constante transformação, pode-se dizer sem sombra de dúvida: a religião é fator indubitavelmente de atraso.
Para aqueles que teimam em responder aos meus ataques ao status quo com algum dito religioso, eu costumo contrapor com uma narrativa mais original (que pelo menos tem o mérito de ter alguma coerência): o inferno vai ser aqui mesmo, se se concretizar plenamente esse plano das elites globais de cortar todos direitos sociais; já o paraíso também será aqui mesmo, se conseguirmos superar esse estágio da civilização e criar um sistema econômico em que o interesse predominante seja a maioria da população. E esse destino será certamente coletivo, não individual; conquistado pelos nossos esforços coletivos e conscientes, ou pela nossa inépcia continuada.
Nosso longo passado escravista também é um fator determinante nesse cipoal de mazelas: em lugar de socializar uma plena cidadania após a abolição da escravatura, o perverso ambiente social conseguiu introjetar e estender aquela submissão que lhes era característica aos brancos pobres, a característica mentalidade do escravo. Lembremos que os cativos acorrentados nas monoculturas dos séculos XVI a XIX, se pausassem o trabalho para olhar para o lado, costumavam receber logo uma chibatada: nem mesmo o direito de contemplar seus companheiros de infortúnio lhes era reconhecido, pois poderia ensejar uma fuga ou até uma revolta.
Fechando o quadro em primeiro plano, um judiciário com forte corte de classe – juízes e promotores, geralmente vindos das camadas médias, se esmeram num dialeto propositalmente incompreensível para as massas, que bem ou mal disfarça seu inabalável compromisso com a classe dominante, cultivando uma falsa imagem de sapiência e imparcialidade, as quais frequentemente se mostram mais curtas que o nariz do juiz… A concepção de justiça que perpassa tal sociedade que se diz civilizada é uma dupla escala de valores, onde a classe social determina o que as pessoas podem fazer. Por trás de tudo, as forças armadas servem de último recurso, a garantir silenciosa e ostensivamente o predomínio da burguesia – e poucos percebem, uma fidelidade maior ao imperialismo que às autoridades eleitas.
Como em outros lugares, nem sempre conseguem disfarçar seu sórdido papel de exército de ocupação contra seu próprio povo. Dividida entre forças federais e estaduais, cabe às segundas o enfrentamento imediato aos eventuais levantamentos populares; mesmo subordinadas formalmente aos governadores, são dominadas pela mesma ideologia reacionária e excludente que as federais. Frequentemente, ficamos sabendo de casos em que pessoas inocentes são agredidas ou mortas por suas violentas incursões, caracterizando claramente um compromisso mais forte com o ódio de classe que à justiça, em alguns casos pura incompetência.
Eu costumo usar uma alegoria para representar esse quadro: um velho decrépito representa o aparato político jurídico, que já não consegue se sustentar sozinho, escorado num poste (fora de foco) que seria o poder econômico. Atrás do poste, bem disfarçado mas rosnando, um buldogue, que seria o aparato policial-militar. Dando evidência ao primeiro, uma lâmpada seria a imprensa. Essa imagem serve para colocar em evidência a conclusão de que, ao contrário do passado, a perda das funções do primeiro não leva à derrocada do terceiro.
Isso pode ser resumido da seguinte forma: antes costumávamos considerar o aparelho policial-militar como um braço armado do Estado, porque dependia de sua iniciativa para atuar; era um apêndice mas na prática deixou de sê-lo, autonomizou-se; hoje devemos considerá-lo como um guardião do mesmo. Se antigamente precisava da iniciativa do executivo para agir, agora não precisa mais; e pior: hoje sabemos que há uma relação de subordinação com as forças armadas do imperialismo. À medida que o aparato político-legal deixa de cumprir sua função política, o aparato policial-militar assume gradualmente o papel do primeiro – e sua interação com a sociedade, como sabemos não é política.
Incompetência relativa
Há alguns poucos anos, fiz uma rápida pesquisa na internet, descobri que existem nesse conturbado planeta 138 organizações – a maioria grupinhos nacionais sem alinhamento internacional; outras conseguiram encontrar congêneres na vizinhança imediata, reunindo algumas poucas organizações nacionais; e até algumas que pretendem ser internacionais – que se reivindicam da tradição do trotskysmo revolucionário (a turma que quer derrubar o sistema, não se adaptar a ele), pretendem a longo prazo derrubar o sistema capitalista e instaurar regimes genuinamente socialistas, superando o estigma do stalinismo, até mesmo com um programa atualizado que contempla a pauta feminista, antirracista, ambiental, LGBT, indígena, etc., articulando com a questão nacional – o que comparado ao tamanho do inimigo e das tarefas históricas, me parece um bom ponto de partida para iniciar uma discussão e encarar algumas ações comuns nos países onde as lutas as coloquem na mesma trincheira. Da minha condição de independente (ainda que muito longe de ser capaz de me aprofundar nisso), consegui fazer a minha avaliação programática, e cheguei à conclusão que, no geral, existe uma convergência programática suficiente e que, em alguns lugares é possível ao menos uma atuação conjunta.
Não precisei de muita experiência para perceber que, dentro desse quadro, o Brasil tem uma posição singular: justamente por seu tamanho, encontramos aqui representantes dessas diferentes correntes, que compartilham não só algumas frentes de luta como alguns princípios básicos, até participando do mesmo partido, mas que divergem em avaliações conjunturais e estratégias de lutas. Compreende-se sua extrema cautela, tendo em vista alguns erros monumentais cometidos por quem se enxergava herdeiros de uma longa tradição histórica. Tal desacerto, a meu ver, certamente se deve menos a deficiências de um ou outro que à falta de discussão entre elas, que permitiria não só encontrar uma linha mais correta, como propiciar uma atuação conjunta, que vejo ser o caminho de superação da crise da esquerda. Vejam bem, não proponho nada como unificação (ainda), mas tão somente que aceitem que seus militantes de base se reúnam regularmente, a confrontar argumentos e atuar publicamente como um partido de verdade: unido.
Ora, se realmente está em seu horizonte a criação de uma verdadeira Internacional revolucionária, seria de se esperar que tentem iniciar um diálogo inicial entre si (algo como um fórum), para encontrar pontos de convergência e talvez num futuro próximo estabelecer um realinhamento programático para talvez, quem sabe, um dia construir uma Internacional digna do nome. Talvez haja em algum canto do mundo muitos outro(a)s a sonhar com uma recomposição de nossas fileiras, ainda que lenta e muito criteriosa – e que, por não serem independentes, não percebam que erros todos cometem, mas nem todos percebem o caminho da superação. Evidentemente que se estão separadas, deve-se a terem programas realmente distintos; mas se pretendem ser revolucionárias, saberão que sua tarefa é demasiado grandiosa para ser empreendida por punhados de militantes espalhados. Talvez alimentem a concepção de que possam crescer, e ver prosperar seu programa específico; mas tal atitude algumas vezes tende a ser na prática simples birra política. O ataque aos direitos sociais que o capitalismo empreende na ordem do dia é global, a resposta também precisa ser global. O tempo urge, a hora de lutar é agora. Se essa geração não conseguir retomar a ofensiva, a próxima estará em condições ainda mais desfavoráveis.
Todos nós, na esquerda, acostumamos a avaliar os potenciais parceiros políticos quanto ao grau de compromisso com a revolução, segundo a clareza de seu raciocínio e os efeitos imediatos de suas políticas. Não podemos nos guiar cegamente pelos clássicos, nem deixar de aprender com as experiências do passado; mas também não podemos deixar de reconhecer que, embora a natureza básica do sistema seja a mesma, há todo um aparelhamento muito mais complexo do inimigo. Ingrata tarefa que nos lega a História: tentar enfrentar os desafios do presente e do futuro insuficientemente armados de lógica e ousadia, paciência e empatia, criatividade e planejamento… Pois descobri recentemente que, entre os revolucionários de verdade e os reformistas, existe uma heterogênea franja indecisa, que até topa entrar nessa aventura de revolução, desde que não seja muito difícil… (não me peçam nomes, alguém vai querer me lançar pela janela…!)
Existe uma expressão corrente – barril de pólvora – que empregamos quando queremos referir a uma situação explosiva em potencial; mas creio estar desatualizada. Se nos dirigirmos ao trabalhador comum, oprimido pela sufocante conjuntura, e explicarmos que ele precisa lutar por seus direitos, o mais provável resultado será uma tácita concordância, sem um efetivo engajamento. Pelas experiências que tive, posso dizer que somente teremos um crescimento efetivo da participação nos movimentos sociais, se partirmos das realidades concretas das massas exploradas, conhecer suas demandas imediatas, e daí começar a estruturar experiências de organização. O grau de apatia é tal que a maior parte da classe trabalhadora somente vai entrar no movimento de massas a partir de experiências organizativas em andamento. Aqui vou abrir uma pequena digressão: eu vi uma pessoa colocar um pouco de querosene numa latinha para esquentar uma refeição, jogar um fósforo, não acendeu; e então? Ao que eu tive de explicar: o querosene não acende à temperatura ambiente, por questão de segurança. Mas como acender? pergunta ele. Simples, faça uma bolinha de papel, acenda com o fósforo, e jogue na latinha, aí acende.
Voltando: a situação atual não é um barril de pólvora, é um tonel de querosene. As pessoas precisam tomar contato com um movimento já organizado, ou então alguém com mais paciência precisa tomar a iniciativa de convocar, a partir de algumas demandas já conhecidas. Esse know-how o PT já tinha até três décadas atrás (mesmo sendo um amalgama informe de correntes onde a direção do partido oscilava em torno de uma dúbia e genérica plataforma de defesa dos direitos trabalhistas e sociais, mas com alguns setores mais à esquerda que conseguiam alavancar em várias partes do país uma atuação mais combativa); mas acabou abandonando com a sua integração ao poder da burguesia, ao decidir pelo caminho da conciliação de classes. Temos de recuperar esse aprendizado de organização, não descartar como talvez imaginem aqueles que falam em “superar a experiência do PT”. Se não voltarmos a essas práticas, estaremos simplesmente “jogando a criança fora junto com a água do banho”. O movimento de massas tem um potencial enorme de mobilização; mas os trabalhadores que estão fora dos movimentos sociais somente irão se integrar à luta se perceberem alguma chance de sucesso.
Um dos sinais da crescente crise política está no realinhamento das forças políticas: a recente ascensão da ultra direita trouxe o perverso efeito de trazer ao primeiro plano, na defesa de um governo decididamente antipopular, algumas forças que até então pouco ou nada influíam, realmente o que havia de pior no quadro político brasileiro. Como uma sequela, a cada vez que uma parcela mais esclarecida se rebela, o governo resolve conceder mais benefícios a esses sinistros aliados, a garantir apoio nas esferas de poder. Isso aumenta a distância entre o poder estabelecido e a maioria da população. Diagnóstico: essa gente não sabe o tamanho da fogueira que está se armando, porque conta com a estabilidade do sistema, que é cada dia mais duvidosa…
Um dos motivos porque a direita está nadando de braçada no momento atual, é a relativa incompetência da esquerda em conseguir desenvolver uma tática política devidamente adaptada ao momento atual, que realmente consiga organizar os explorados de forma duradoura. Tanto no Brasil quanto no exterior, governos de corte socialdemocrata são descartados facilmente quando a situação econômica não seja favorável. Especificamente, devemos ter em conta que, tendo como objetivo arregimentar a grande maioria da classe trabalhadora para a tomada do poder, ao mesmo tempo conseguindo isolar aquele minúsculo segmento social que consegue manipular a classe média como massa de manobra das classes dominantes, boa parte dessa classe trabalhadora vive em condição social em que passa toda a vida fugindo da fome. Outro motivo seria, no caso brasileiro, depois da adesão do PT ao regime burguês, com a política de conciliação e convivência com o fisiologismo e a corrupção, o abandono da dinâmica de funcionamento interno do partido nos núcleos de base. Considerando que durante a maior parte daquele período antes de chegar ao poder, quase toda esquerda brasileira estava dentro do mesmo partido, foi possível criar um muito saudável ambiente de debate onde grande número de militantes experimentaram expressiva evolução política, permitindo colocar em movimento vastas camadas da classe trabalhadora, o que deu margem a expressivos avanços em direitos sociais. Abandonando essa experiência política, jogou-se fora todo um período histórico de uma geração. Sem ter instâncias internas onde haja um debate partidário, onde as correntes coloquem suas posições e estratégias, onde todos militantes possam interagir, a dinâmica partidária vai continuar pobre, porque sem que as correntes enfrentem suas debilidades no debate, a evolução política do partido vai ser lenta e quase estagnada, a militância vai continuar para alguns um passatempo, a esquerda vai continuar pequena e irrelevante, uma verruga na orelha.
Um sintoma dessa incompetência ocorreu nas jornadas de junho de 2013, que nasceram de anseios legítimos das massas, mas que a esquerda deixou escapar entre os dedos: a direita, que costumamos ver como pessoas sem conhecimento da História e dos processos sociais, demonstra ser dirigida por uma camada mais competente, na média, que a esquerda. Afinal, usando de uma combinação inédita de algumas práticas tradicionais de mobilização da esquerda com alguns recursos tecnológicos inovadores passou à frente, e capturou aquele movimento para seus próprios fins. Ainda não vi, dentre as muitas avaliações que a esquerda fez sobre esse período, alguma corrente fazer essa autocrítica. E ter esse reconhecimento será parte da longa retomada que precisamos fazer para retornar o bonde da esquerda ao caminho do poder. Pode parecer falso que uma explicação tão curta consiga exprimir um diagnóstico realista por trás da nossa indigência política (embora recentemente pareça haver alguma retomada); na verdade, assumir o fardo de ter deixado passar a oportunidade de retomar a ofensiva demonstra que a verdade fica muito mais difícil de enxergar quando pregada ao nariz… e a ousadia revolucionária nem sempre vem acompanhada da humildade da autocrítica!
A emergência recente de uma corrente de ultradireita – definida basicamente por ter como programa o retrocesso nos direitos sociais dos explorados – é um sintoma evidente dessa incompetência relativa, mas várias correntes da esquerda preferem atribuir a uma “onda conservadora”, como se não fosse nossa responsabilidade. A existência persistente de uma corrente anarquista é outro sintoma: certamente que seu anseio por uma sociedade em que o poder não seja exercido por um aparelho apartado da sociedade é legítimo, mas a falha em não querer montar
um aparelho político centralizado – um partido – com a missão de derrubar o poder existente e substitui-lo por outro (ainda que muito diferente) somente será revertida quando esse partido conseguir encarnar verdadeiramente os anseios dos explorados, conseguindo não somente definir de forma gramaticalmente correta seu programa, mas também incorporar táticas que conquistem corações e mentes mesmo entre as camadas menos instruídas do proletariado.
Uma medida necessária seria criar eventos públicos que funcionem como aulas de formação política para a militância: membros mais experientes de diferentes correntes do partido serão convidados a debater diferentes temas relacionados com a luta revolucionária. Nada melhor para a evolução política do partido e seus militantes que o confronto de ideias. Eu tenho até um nome para esta iniciativa: sugiro chamar de Escola Socialista, a ser promovido online ou presencialmente e itinerante. Sei que hoje algumas correntes promovem algo parecido, mas justamente por isso são ponto apenas de propaganda, não de debate; se forem promovidas pelo partido poderão ter uma audiência muito maior, justamente por haver um contraponto. Não devemos esquecer de providenciar a devida segurança e proteção contra as provocações da direita e o assédio da repressão. Oportuno destacar que neste debate, bem como das demais mudanças apontadas como essenciais, a esquerda mais radical leva vantagem. Os debatedores deverão ser avisados para deixar de lado o linguajar acadêmico, porque senão o pobre trabalhador que for assistir vai entender nadica de nada…
Faz falta que a esquerda consiga recuperar seu perfil de luta, reaprendendo a falar claramente, em especial quando reconhecer o inimigo. Por exemplo, a direita é constituída por três camadas distintas: os muito ricos, que financiam as campanhas, e dão o programa; os setores da classe média, mantidos na linha sendo garroteados pelo dinheiro ou fazendo parte do Estado – mandatários, parlamentares e seus assessores, burocratas em geral, juízes, militares, policiais, economistas, jornalistas, comentaristas, blogueiros, etc. -; e uma enorme franja de desmiolados, teleguiados pela imprensa e por algumas redes sociais, os pobres de direita. Estes últimos terão de ser disputados politicamente; já quanto a segunda camada, podem ser neutralizados quando em virtude de seu histórico e da conjuntura divirjam da agenda principal da burguesia. Outro exemplo: um banco é um ralo por onde escoa parte significativa da renda nacional, e uma grande parte fica entesourada nos cofres, nunca retornando à economia porque na verdade a quantidade de papel-moeda se torna muito maior que a riqueza efetivamente produzida. Tendo se apropriado da parte do leão, os banqueiros conseguiram criar uma espécie de “trincheira econômica”, em que conseguem se manter separados dos demais segmentos econômicos, a salvo das crises, lucrando como nenhum outro setor mesmo nas piores crises. Por último: existe riqueza suficiente para dar a cada homem, mulher e criança no brasil e no planeta uma vida digna; se tem gente passando necessidade, é porque está muito mal distribuída. Gasta-se mais com guerra que com saúde e educação – por aí se vê que mundo essa elite quer construir.
Essa mudança de linguagem resulta muito salutar, porque para cada profissional de grau universitário, deve haver uma penca de gente muito longe de entender as leis que governam suas próprias vidas, que hoje confia em explicações religiosas ou metafísicas. Longe de propiciar uma “diluição programática” ou “vulgarização da linguagem”, como sugeriu alguém, constitui o caminho de superação do absoluto isolamento em que a esquerda se encontra há décadas. Como exemplos positivos, cito os textos de Ladislau Dowbor, que mesmo tendo um horizonte social democrata, soube expor de forma contundente as lacunas e contradições do discurso hegemônico dos asseclas do capital, e expor alternativas práticas que podem nos ensinar muita coisa quanto a viabilidade do que imaginamos como democracia radical, autogestão, administração colaborativa, etc.
Como a burguesia internacional decidiu recentemente que, para tentar reverter a tendência de queda da taxa de lucro, seria necessário reduzir o valor da força de trabalho, apareceu uma facção dentro da classe que corporificou em termos políticos essa necessidade, aproveitando assim a instabilidade política crônica do sistema e a incompetência relativa da esquerda para alavancar um projeto político distinto – aquilo que alguns chamam de onda conservadora, na verdade a antiga ultradireita que estava escanteada – o qual emprega profissionais regiamente pagos, desde marketing e psicologia, até alguns pouco conhecidos serviços de garimpagem de dados na web, para implementar seu pacote de maldades: corte de direitos sociais e serviços públicos, entrega das riquezas nacionais aos estrangeiros, liberação de agrotóxicos numa escala inédita, vista grossa ao desmatamento para expandir a fronteira agrícola…
Em face dessa enorme renovação nos esquemas de dominação da burguesia, é necessário atualizar a compreensão da esquerda sobre as motivações das diferentes camadas sociais para aderir aos movimentos sociais: entender que pessoas com diferentes graus de compromisso com justiça social ou com a verdade, tendem a aderir em diferentes momentos à luta social. Todos que estudaram a história da revolução russa lembram de quando o czar mandou sua força armada atirar na população reunida em frente a seu palácio: foi naquele momento que muitos, mesmo portando ícones religiosos, perderam a fé na justiça política do sistema.
Se temos em conta que qualquer revolução terá de ter esse momento de supremo desencanto, a apontada maior heterogeneidade da classe trabalhadora moderna leva a concluir que teremos um desenrolar político mais longo e complexo; temos de estudar melhor o impacto da conjuntura em cada um desses segmentos. Se nos atentarmos que pessoas diferentes olham para a mesma coisa e veem coisas diferentes, entenderemos que o que para alguns o extremo individualismo – que é o espírito de nosso tempo – leva a encarar como irrelevante, mera notícia de jornal, para outros torna-se inaceitável, verdadeiro motivo para abandonar a apatia e entrar em ação, talvez até violando a lei…
O processo de crise institucional que antecede uma revolução, se for analisado em sua dinâmica, quando acontece tem o efeito de desmascarar os conceitos que fazem parte da democracia burguesa, e que só existem dentro dessa realidade, pondo à mostra o que está por trás: as classes em luta. Nesse ângulo, pode-se considerar bastante similares os distintos processos revolucionários, diferenciando entre si na complexidade mas não em sua natureza. A gravidade da crise pode então ser medida pelo grau em que o proletariado, parecendo acordar de um sono letárgico, vai percebendo a situação de exploração, e suas distintas camadas passam a desfazer-se gradualmente de suas ilusões, iniciando um processo – que para nós parecerá sempre inconcluso – de chamar outros a entrar em ação, a também lutar por uma vida mais digna. Faz parte então da luta revolucionária ajudar essa massa de gente pouco esclarecida, que muitas vezes acostumou-se a acreditar no sistema, ou que não luta por comodismo, a diferenciar o que é real do que é ilusório, a entender que esse estado de coisas não é natural, e que pode mudar, e que precisa mudar. Esse esclarecimento somente terá efeito se partir da realidade concreta das pessoas; para isso teremos de estudar seu cotidiano, as mazelas que o sistema impõe a cada um, abrindo a caixa preta do metabolismo social e econômico do sistema, de uma forma que as pessoas consigam entender – coisa que a esquerda atual parece não estar conseguindo, para falar a verdade. Interessante constatar que até algum tempo atrás, conseguíamos… Por mais durável que seja o sistema de dominação, ele começa a desandar quando seus serviçais começam a duvidar dele.
Mesmo entre a dita esquerda radical, percebem-se diferentes graus de compreensão quanto aos desafios à frente. Muitos militantes têm a vaga noção de que basta manter-se fiel aos princípios e seguir adiante, a vitória está lá na frente. Uma parte da esquerda (que chamamos de exquerda porque abandonou seus princípios) acha que ser moderno é aderir à democracia burguesa; outra parte sustenta o equívoco de confundir a “adaptação à situação atual” com o reformismo; não sugiro abandonar nenhum princípio (talvez até acrescentar alguns), mas capacitar-se melhor a enfrentar os desafios à frente, inclusive a onipresente (e nem sempre evidenciada) tutela do aparelho policial-militar sobre a muito relativa democracia burguesa (que se caracteriza por ter sido sempre muito elitista e tutelada, embora nunca tenha sido muito estável), bem como o uso crescente da tecnologia para cultivar um campo heterogêneo de apoio ao regime do capital, criando entre as massas exploradas um ambiente paradoxalmente infértil à revolta. Não se trata de menosprezar a importância da teoria revolucionária, fundamental como sempre, mas de reconhecer que a causa principal da nossa indigência política não reside no campo teórico: está no fato de estarmos relativamente desatualizados em nossas táticas, de termos dado ultimamente dois passos para trás a cada passo para frente. Algumas lições da luta de classe não estão (ainda) escritas. Muitos se esmeram em afiar-se na teoria revolucionária, mas se não resultar em avanço efetivo na consciência de classe e organização da classe trabalhadora, não passa de uma epifania sociológica coletiva – porque na verdade é a prática revolucionária que está faltando: cadê as grandes manifestações de massa? Cadê a greve geral, o decidido levante do proletariado contra o retrocesso em marcha? Faz falta a capacidade de dirigir-se claramente às camadas mais exploradas da sociedade e propor “esse partido é seu, tome-o para si; é o seu instrumento para conquistar uma vida mais digna para si e sua família. Falando claramente: não pedimos que nos escolham como seus representantes; estamos lhes dizendo que o único caminho real para superar esse quase inferno é agarrar seu destino em suas mãos. Não confiem em ninguém que lhes diga que tem uma solução para seus problemas, porque a solução está em vocês mesmos.”. É relativamente fácil explicar isso para alguém acostumado a lutar por seus direitos; mas é preciso conscientizar-se de que, para grande maioria da classe, sem o costume da leitura
e do debate político, essa proposta terá de ser feita não com palavras, mas com exemplos. Essa pode ser, a meu ver, a principal falha da esquerda atual em se reposicionar a cumprir sua missão histórica.
É fato que o sistema político está podre; sua disfuncionalidade é mascarada pela venalidade da imprensa e a sabujice de uma casta política pouco afeita a abrir mão de seus privilégios sociais; mas como a esquerda parece incapaz de dizê-lo, apareceu um asno troglodita, um palhaço tosco e bufão fazendo pouco das virtudes da tal democracia, a massa ignara captou a mensagem, e uma classe média ressentida e magoada respondeu entusiasticamente. Deveria ser a esquerda a escancarar a podridão do sistema, mas abandonou a clareza, deu no que deu… Fato estranho: poucos percebem, mas trata-se de um ego adolescente, tosco psicopata – um espantalho patrocinado pelo sinistro da economia (que é quem pensa nessa quadrilha, foi quem armou o plano todo, até enfiou o boneco no poste, depois chamou o gado para seguir), brandido pela porção mais ensandecida das elites, usado para ganhar eleição com um programa oculto que nunca conseguiria popularidade… De sandices a agressões, entre bravatas e barganhas escancaradas, vai forçando o sistema político numa agenda de retrocessos e ataques a quem o desafie diretamente (que o digam as mulheres jornalistas que tiveram o azar de topar com a criatura). Se não estamos ainda em um regime fascista, percebe-se que faz parte dos sonhos ainda de uma faixa bem delimitada do espectro político, que tomou da esquerda algumas práticas, juntou com alguma tecnologia e técnicas psicológicas muito bem pagas, e agora segue balançando o barco para ver no que vai dar… A direita tradicional, alijada temporariamente do centro das decisões, faz de conta que é do jogo, mas procura alguma forma de reconquistar a posição anterior, sem ameaçar o status quo; para isso, tenta equilibrar-se entre as várias facções do capital e as muitas correntes políticas penduradas no parlamento, e até pede ajuda a uma parte da esquerda que ainda sonha com avanços sociais… Acordem: os tempos são de retrocesso… pero en toda la montaña subimos, hay una manera de descender… E quem quiser arriscar um prognóstico, tome antes uma bebedeira…
Assim como não faz sentido disputar hegemonia com a burguesia em seus espaços privilegiados de dominação (esse aprendizado é antigo), também é preciso superar o conceito de continuar limitado às velhas práticas de antigamente. Vejam o dilema: nem adotar as recentes práticas altamente tecnológicas adotadas recentemente pela burguesia, nem ficar atrelado somente às antigas. Nem um nem outro: devemos continuar as práticas já consagradas, mas atualizadas para os tempos atuais. Dou um exemplo: o conhecido e inescapável costume de sair à rua arrebanhando gente para protestar contra alguma medida impopular do governo de plantão, pode ser muito mais frutífero se forem promovidas em várias cidades simultaneamente, e compartilharmos em tempo real as imagens via smartphone, tentando criar um evento distribuído, como se fosse uma mesma manifestação, afinal a causa é uma só. Da mesma forma, tentar reforçar a ideia de que, mesmo separados por milhares de quilômetros, somos a mesma classe, sofremos as mesmas mazelas. Imaginem ainda: ponha o telefone ao lado do megafone, o orador de uma cidade, com sotaque de sua região, ler as faixas da multidão e dirigir-se aos manifestantes de outra região. Cada cidade saudando as demais, reafirmando suas palavras de ordem e se reforçando em sua determinação: isso vai dar muito mais ânimo à luta. Na mesma toada, pode-se imaginar que, em manifestações de caráter municipal, em vez de limitar se a atos somente no centro da cidade, possamos promover vários atos simultâneos a meio caminho entre o centro da cidade e as periferias, tirando assim da polícia a capacidade de isolar as manifestações do público. Percebi que agora as polícias adotaram essa prática de isolar as manifestações, a pretexto de segurança: a maior parte da cidade nem fica sabendo que tem gente protestando. Da mesma forma que os nacionais, esses atos podem enviar vídeos entre si, aumentando assim a força do movimento de massas. Pelas minhas estimativas, talvez uns 4% da população passe pelo centro da cidade; os eventos distribuídos podem aumentar a visibilidade para quem sabe uns 40 a 50%. Também seria muito inteligente produzir em grandes quantidades aquelas máscaras caseiras contra gás lacrimogêneo, feitas com garrafas PET, e distribuir livremente em grandes quantidades em cada ato público. Outra ideia: no movimento pelo transporte público, seria conveniente os militantes se espalharem pelas paradas e passar a colar adesivos na lateral dos ônibus, denunciando o descaso do poder público e seu compromisso com os transportadores privados; daria um resultado tremendo porque a maior parte da população passaria a tomar contato com o movimento, e a repressão não tem como colocar um policial em cada parada para impedir. Se o inimigo vai usar e abusar da tecnologia, devemos também aproveitar alguns desses novos recursos, ainda que não possam ser nossa principal vantagem, afinal sempre terão muito mais tecnologia que nós. Nessa linha, seria extremamente útil ter à disposição da mídia de esquerda alguns drones (pelo menos um em cada grande cidade) que consiga de forma regular fotografar ou até filmar as manifestações de cima, rompendo assim a relativa dependência em relação à mídia burguesa e à polícia para medir as nossas forças e romper o cerco midiático.
Também é fundamental que a militância perceba que o trabalhador comum, quando se integra a uma luta de qualquer natureza, o faz pelos seus próprios motivos, não pelos nossos. Ele não vai se juntar a nós porque precisamos multiplicar nossa militância, mas quando perceber que é o único caminho para conquistar uma vida mais digna para si e para sua família. Assim, temos de primeiro tentar visitar cada grotão desse país, conhecer sua realidade, ajuda-los a elaborar pautas de reinvindicações, para motivá-los a se colocar em movimento e se organizar; somente então será propícia uma abordagem mais integradora.
Relacionado com esse último, talvez até mais importante, abandonou-se também a experiência de reunir militantes da periferia a estruturar táticas de luta por aqueles direitos. Justamente nas periferias onde vivem os setores mais precarizados, que podem dar aos movimentos a motivação, número e força. A esquerda somente vai conseguir sair da situação atual de isolamento e paralisia quando se aperceber que quem vai derrubar o regime é quem passa fome, enfrentando até as forças armadas por não ter alternativa: alguém sem automóvel, casa própria ou mesmo um simples telefone celular. Pode parecer bastante fatalista, mas o desespero é o principal gatilho que dará à massa de despossuídos a coragem de superar o medo, desafiar as forças da repressão, derrubar cercas e muros, e abrir caminho para tomada do poder. Sem agregar à luta essa massa que não tem tempo nem disposição para ler um livro, nem compreende ideologias ou estratégias, a luta política vai continuar dominada pelas figuras do sistema e pela direita, a esquerda vai continuar um feudo ideológico sem conseguir sequer iniciar a disputa pelo poder. Boa parte dos militantes da esquerda nunca visitou uma ocupação de terreno, nunca tentou argumentar com um analfabeto funcional, nunca frequentou a periferia fora dos períodos eleitorais, nunca entrou numa casa feita de papelão e lona, nunca conversou com um morador de rua, nunca visitou uma área sujeita a enchente; talvez imaginem possível realizar a mítica “revolução sem povo”. Se fossem, perceberiam a distância que os separa de realizar seus objetivos. Deveríamos ter táticas para disputar essas pessoas em situação de pobreza extrema, afinal são depois da classe média, os mais fáceis de serem recrutados pela direita para agredir a esquerda nas manifestações, com a possível ascensão do fascismo. Já ouvi argumentações de que dar tal importância ao desespero é menosprezar a importância da luta revolucionária; crédito tal avaliação à parcela da esquerda que menospreza a importância das periferias dentro da estratégia revolucionária.
Outro aspecto pouco evidenciado: toda literatura marxista aponta que o protagonismo do proletariado vem da sua capacidade potencial de paralisar a produção. Dado o grau crescente de automação industrial, e a contínua redução percentual do operariado industrial, essa liderança torna-se (a meu ver) mais difícil, porque fora da produção a alienação do trabalhador em relação aos frutos do seu trabalho torna-se ainda mais poderosa. Em consequência, torna-se indispensável abrir novas frentes de luta, em especial onde desafiem diretamente a institucionalidade burguesa. Destaco especial atenção às ocupações de terreno para fins de moradia, as quais incorporam uma massa enorme de pessoas extremamente oprimidas porque a indústria imobiliária direciona a somente construir com expectativa de lucro. É necessário reconhecer que essas camadas sociais têm sido muito negligenciadas pela atuação da esquerda.
Outra imagem me vem à mente: a esquerda de hoje eu posso comparar com o cinturão de asteroides, que gira na mesma trajetória mas não consegue se juntar para formar um planeta. Ou ainda: um lutador de boxe que acaba de levar uma pancada forte e acaba no chão. Ao lado, o treinador berra no ouvido: “Levante e volte a lutar!”, mas o lutador está ainda longe de se reerguer. Estas alegorias eu considero úteis para manter o foco no objetivo, desde que não levem a simplificações grosseiras.
Para todo marxista, deve ser claro o conceito de que toda exploração do trabalho alheio é um roubo. Logo, segue-se que a divisão internacional do trabalho significa na prática um roubo associado, em que um parceiro estrangeiro usa o aparato legal das relações internacionais para assegurar para si a parte do leão na divisão dos frutos do roubo à classe trabalhadora. Ora, em qualquer roubo, qualquer participante nunca vai pensar em trair seus parceiros: assim se explica a absoluta covardia das burguesias locais em enfrentar essa divisão dos lucros. Claro que existem alguns exemplos à regra; geralmente acabam mortos ou sofrem perseguição política: existirá sempre a ameaça onipresente da denúncia por corrupção, verdadeira ou falsa…
Tenho convicção de que quando houver enfim a vitória do partido revolucionário, essa ocorrerá não sobre um Estado aparentemente democrático, mas um Estado policial-militar, em que a burguesia recorrerá frequentemente a iniciativas praticamente fascistas: processos judiciais sem os devidos direitos legais, perseguições, agressões em ambientes públicos, etc. Atentem para o fato de que as elites só tem apreço pelo sistema legal enquanto lhe convém: conforme vimos no filme argentino “O segredo dos seus olhos”: quando ameaçada em seus planos, a elite não hesita em recorrer até mesmo a assassinos confessos para perseguir a esquerda. Mesmo entre aqueles que portam uma arma por fazer parte do aparato de repressão, muitos adotaram a carreira não por se identificarem com a prestação de serviço público, mas para poder manusear uma arma sem incorrer em penas. Se não estivessem ali, podemos ter certeza de que provavelmente estariam do lado do crime; aliás, não é incomum que incorram em crimes mesmo estando a serviço do Estado: frequentemente vemos notícias em que agentes armados incorrem em abusos de autoridade, ou até compactuam com o crime organizado. Mesmo entre a magistratura, desvios de conduta tendem a ser ignorados quando o corte de classe assim o determina.
Para retomar a iniciativa e superar o avanço da direita, será imprescindível retomar a organização em núcleos de base (dica: começar a partir da lista de filiados do partido), e um decidido processo de capilarização entre as periferias. Parece haver entre as correntes da esquerda o receio de perder militantes para as outras correntes… E se o partido a que pertencemos, por falta de direção não consegue se estruturar para seguir esse caminho, o jeito é passar por cima: começando por procurar as correntes mais combativas, que tenham claro a necessidade de superar essa maré de negativismo, propor alianças táticas em torno desses dois pontos, e implementar onde der algumas iniciativas nesse sentido, mesmo que as correntes mais atrasadas do partido como organização prefiram manter a situação atual. Lembremo-nos: a paralisia e a desorganização contam a favor da burguesia. Como resultado, prevejo que talvez em dois anos possamos virar o jogo e começar a tecer em alguns lugares uma dinâmica partidária mais frutífera.
Quero lembrar aqui as diferenças entre três momentos históricos distintos: o primeiro, a onda de greves e agitações operárias que tomou parte do mundo em 1917, inclusive aqui no Brasil espalhou-se por várias capitais. Pelos relatos que tenho, em São Paulo chegou-se a paralisar a cidade por vários dias. Como se explica que uma classe que não tinha na época nem sindicatos nem partidos operários, conseguisse tal demonstração de força? Considero que nesse caso, houve uma vitória, porque arrancou algumas conquistas, devido principalmente a burguesia não estar preparada para o momento. Um segundo momento: 35 anos atrás, tínhamos nesse país uma grande e heterogênea massa de militantes, que empreendiam em vários movimentos suas lutas em prol de melhores condições de vida, sendo responsável em parte pela derrocada de uma longa ditadura. Terceiro e inglório momento: não conseguimos hoje construir nem sequer um partido que atue de forma unificada; mas sendo cada vez mais frequentes os ataques aos direitos sociais, a conjuntura é propícia, para conseguirmos superar essa apatia teremos de retomar o perfil de luta, inclusive superar a dita “militância de sofá”.
Enquanto o inimigo se transmuta e evolui para garantir sua hegemonia, a esquerda ainda se mantém presa a uma concepção estratégica incompleta, precária e atrasada, sem conseguir assimilar todas as lições das experiências anteriores; faz falta uma concepção estratégica atualizada: em curtas palavras, a esquerda quer chegar ao poder, mas não sabe direito o caminho… A julgar pelos fatos mais recentes, a maior parte da esquerda cultiva a impressão de que as coisas irão se definir melhor conforme a aproximação de uma crise revolucionária. Parece existir um vago conceito implícito de que será suficiente não ceder aos desvios reformistas que tudo se resolverá, como se a vanguarda não conseguisse chegar a todas as conclusões de seu raciocínio, como se chegar ao poder fosse simples questão de conseguir maioria numérica – um vestígio de reformismo, quem sabe?
Analisando sob um corte histórico, prevejo que, comparando a sociedade atual em diferentes países, e um olhar especial sobre o modo de vida concreto das diferentes camadas sociais, o fator tempo será um diferencial maior que as diferenças entre os países na determinação da dinâmica dos processos revolucionários. Dito de outra forma: o capitalismo, em seu afã de criar um grande mercado mundial e globalizado, trouxe as realidades locais muito mais próximas umas das outras do que havia quando ocorreram outros processos revolucionários. Assim, pode-se dizer que também os futuros processos revolucionários, quando ocorrerem, terão uma dinâmica menos desigual, já que as realidades locais são muito mais similares.
Um dos fatores que certamente contribuíram para a vitória da revolução russa, seria a relativa desorganização da burguesia, por estar fora do aparelho do poder e somente ter dominado por um curto período, sem tempo suficiente para criar instituições de fomento à sua consciência de classe, como existem hoje os think tanks que funcionam por trás dos partidos da burguesia. De criação relativamente recente, estes estranhos organismos funcionam longe dos olhos da opinião pública, escondendo-se atrás de palavras vagas, tais como “defesa do ambiente democrático”, “promoção da competitividade” e outros apanágios vazios. Também chamados de aparelhos de produção de consenso, conseguem se manter relativamente alheios à investigação jornalística, lançando mão até mesmo de perseguição contra curiosos. Afinal, até mesmo a imprensa está a serviço da burguesia.
Dessa constatação, segue-se a conclusão de que no estágio atual de desenvolvimento do capitalismo, a resistência do regime político que serve ao capital revela-se muito menos propícia ao colapso tal como vimos em situações anteriores. Uma classe burguesa muito mais integrada e consciente de seu papel na sociedade, resulta em ter uma estratégia de predomínio mais eficiente a longo prazo. Lançando mão de várias estratégias de cooptação, consegue recrutar os melhores cérebros entre a pequena burguesia e até mesmo entre as camadas menos privilegiadas do proletariado, criando uma franja reformista dentre os dominados, pessoas que se vendem em troca de migalhas. O que de forma alguma afasta a necessidade de derrubá-lo, mas leva a concluir pela necessidade de uma estratégia mais elaborada e consequente para que se realize.
Junte-se a isso uma redução significativa do peso do operariado industrial em relação ao conjunto do proletariado (fruto não somente do aumento da produtividade, mas também de uma recente desindustrialização do país) , e uma extensa franja de situações profissionais intermediárias, em que o trabalhador vê a condição de seu trabalho colocá-lo em relativa oposição ao trabalhador comum: vendedores informais, ambulantes, autônomos, pejotistas (em que juridicamente o trabalhador tem que se transformar em empresa individual para poder trabalhar), corretores, uma grande variedade de profissionais liberais, etc. Uma estatística recente aponta que atualmente metade da classe trabalhadora trabalha em atividades fora de alcance da atividade sindical; o que nos leva a concluir pela necessidade de criar formas semilegais, ou até ilegais de abranger parcela expressiva desses contingentes sob a solidariedade da classe – uma tarefa essencial se quisermos reagir ao relativo atraso da esquerda em sua atuação em comparação à direita. Nesse sentido, poderíamos começando por inventar uma vaquinha permanente para subsidiar a atuação daqueles companheiros militantes que se afastam da luta devido ao desemprego: se a burguesia se aproveita da penúria como arma para solapar nossa classe, esse é um dos caminhos para contra-atacar. Aquele antigo conceito de que a força do proletariado reside somente na capacidade de paralisar a produção, resulta bastante desatualizado, porque a produção representa já uma pequena parte da economia; o que deve nos remeter à conclusão de que teremos de estudar melhor os fatores que deverão propiciar o gradual e irreversível colapso da dominação capitalista. Em particular, devemos atentar para o fato de que o capital financeiro conseguiu criar para si uma trincheira virtual, separando-o das demais frações do capital, atrás da qual se protege contra as crises econômicas… Teremos de demonstrar na prática que são muito mais vulneráveis do que se pensa, e não me refiro às janelas de vidro….
Sou de opinião que, embora o legado teórico dos que nos precederam seja inestimável, em vista dessa relativa atualização da direita, resulte na prática insuficiente para os resultados a que nos propomos. Calma, esta singular argumentação não pretende abrir outra senda pro reformismo, mas justificar um raciocínio que talvez não encontre amparo nos textos clássicos – embora a meu ver não haja incompatibilidade. Urge acrescentar mais alguns ensinamentos (que pretensão!) que seriam uma extensão lógica de uma teoria que será sempre imperfeita e inacabada, necessitando sempre de uma comprovação prática. Tenho lido alguns textos que, tentando justificar a incapacidade de prever o desenvolvimento dos fatos, apelam para situações sui generis – a esse respeito, pondero que a História não segue regras, ela as cria. Todo esse legado teórico, que tanto prezamos, vem a ser uma tentativa sempre imperfeita de interpretar os fatos e deduzir leis históricas, algumas das quais podemos ainda vir a descobrir. Como disse alguém, o caos é o nome que damos a uma ordem complexa demais que não conseguimos interpretar inteiramente.
Bem que eu desejaria poder expressar esta soturna avaliação em palavras mais amigáveis, de forma menos agressiva, mas confesso ser falta de prática: somente recentemente me forcei a abrir uma original linha de interpretação, por não ver mais ninguém que perceba esse ângulo da questão; inclusive estou agora independente, sem ligação com qualquer organização justamente por causa disso. Mas, talvez esse meu lado casca grossa seja minha parte mais autêntica… Decerto esse destrinchar soturno há de soar estranho aos afeitos a teses acadêmicas e arrazoados filosóficos, mas é um chamado à luta que pretende superar essa mórbida realidade. Se ninguém se dispor a fazer o papel de “pimenta na sopa”, a mesma vai continuar insossa e rala, não vai sustentar a luta…
Mas somente após conseguir criar um partido que atue de forma unificada, retomando a mobilização das massas inclusive das periferias onde vivem as camadas mais pauperizadas (tarefa na qual estamos já bastante atrasados), será possível passar ao próximo nível de organização. Isso porque tal preparação não poderá ser empreendida por um pequeno grupo isolado: além de exigir recursos humanos e materiais de que não dispomos, uma iniciativa isolada certamente seria motivo para ainda maior fragmentação. Mas nada nos impede de ir já pensando nas possibilidades…
Nota:
- Rui Svensson Fonseca é militante social, com graduação em CONHECIMENTOS GERAIS, mestrado em GAMBIARRA, doutorado em SUSTENTABILIDADE, ECOLOGIA e afins, inclusive na singular arte (pouco apreciada por aqui) do SUBFATURAMENTO (a arte pouco praticada por aqui de realizar projetos custando muito menos do que seria o normal) , sigo tentando lançar uma luz sobre o lado prático da luta pela tão sonhada e decantada
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