Identidade e resistência

Viagem à Palestina – agosto de 2019 – Cijordânia.

Nossa mesa – situada na entrada do pátio interno

Já era noite em Beit Ur al-Tahta, esse pequeno vilarejo situado a cerca  de 12 quilômetros ao oeste de Ramallah, a temperatura já se tornara agradável  em contraste com o calor do dia, dando a todos um alívio merecido e uma  disposição renovada para caminhar. Nessa época do ano, que compreende a  estação da seca, é assim durante as noites – a atividade é mais intensa para  aqueles que podem fugir do calor do dia. Foi caminhando que decidimos nos  dirigir à antiga casa da família do nosso anfitrião, local que guarda sentimentos  profundos e vários acontecimentos, como o nascimento do próprio tio Khader.  A velha residência da família Othman havia sido toda restaurada a sua antiga  glória, sendo a única das antigas casas do vilarejo nessa condição. Não se sabe ao certo quantos anos aquela casa possui, contudo estima-se mais de  150 anos, dada a idade dos antepassados que viveram ali. A casa toda é de  pedra ao estilo típico da região, com dois pisos e um grande pátio interno  rodeado por muros de pedras. Sua composição é a de um complexo de quartos  anexos a uma residência principal e mais antiga. Nessa última, a disposição é  também de dois pisos, sendo que o inferior era destinado aos animais (cavalos,  vacas, ovelhas, etc.) e, logo acima, o piso em que a família dormia. Essa  configuração ajudava a manter aquecido o ambiente durante o inverno ao  mesmo tempo que protegia os valiosos animais de perigos como os lobos.  

Nas noites de hoje, o espaço se transforma no local de encontro dos  homens da vila, que usam o grande pátio como um estabelecimento similar a  um “café”. Algo que impressiona muito é a luminosidade alta devido à  capacidade que as pedras brancas têm de refletir a luz, dando a impressão de  ser dia. A atmosfera do ambiente é familiar, pois nessas pequenas vilas  palestinas praticamente toda a população se conhece, quando não de uma  forma ou de outra, são aparentados. Assim, ao sentarmos na primeira mesa  junto à entrada do corredor de acesso ao pátio, na companhia dos mais velhos  – o anfitrião tio Khader Othman, tio Kalil Osman, tio Fauwzi Mustafa El-Mashni e tio Mohammed Mustafa El-Mashni – nos surpreendemos com a quantidade  de primos, sobrinhos, netos e toda a espécie de parentes que emergiam  durante toda a noite. Do meu lado, tio Kalil (irmão de tio Khader) prepara a seu  modo o narguilé, dispensa ajuda dos funcionários do estabelecimento. Logo  reclama do tipo de fumo, argumentando ser inapropriado para um bom  paladar, também protesta contra o tipo e a posição da pedra de carvão que,  segundo ele, resseca o fumo muito rapidamente, deixando claro que o cliente  em questão, além de exigente, é um mestre na arte do narguilé. A fumaça de  cheiro adocicado impregna o meio, como se trata de uma vila islâmica não  existe álcool nas mesas, em compensação o narguilé está presente em  praticamente todas.  

 É possível ver também nas mesas ao lado as pessoas jogando gamão,  compenetrados na disputa do jogo e, outros esperando o vencedor como  próximo oponente. A bebida consumida em abundância é o chá ou o café  árabe, ambos com aromas e sabores próprio da Palestina. O chá é acompanhado por uma erva aromatizante chamada Maramia, que dá um gosto  peculiar à bebida habitualmente bastante açucarada. Quanto ao café, o sabor  é impregnado por especiarias, que são moídas e misturadas junto para lhe dar  essa peculiaridade característica da bebida palestina. O próprio modo de  preparo, que não envolve filtração do pó é também particular em toda a região  árabe. O cardamomo é a especiaria mais usada e que mais se sobressai tanto  no aroma quanto no sabor e é, de longe, a mais tradicional e amada por aqui.  

A conversa flui entre todos, o som do idioma árabe preenche todos os  sentidos, parece areia saindo da boca das pessoas, o que é compreensível  para uma língua que nasceu no deserto. É cheio de nuances e expressões de  significado poético, religioso e amoroso, tem cheiro de zaatar e, na Palestina,  gosto de azeite, acreditem em mim! De repente, um som oriundo do minarete  da Mesquita rompe à noite com seu chamado a Salah Isha (última oração do  dia) – esse chamamento é conhecido como azâân, trata-se de um som  melódico apenas entoado pela voz do muezim. Esse chamamento é o mesmo  desde a época do Profeta, foi Bilal (ex-escravo e Etíope) que subiu na Kaaba,  no momento mais importante da história islâmica com o Profeta vivo – a  entrada triunfal em Meca – e o entoou. As pessoas respondem a esse  chamado com as expressões religiosas como Allahu Akbar (“Deus é  grande”), lā ilāha illā allāh (“Não há outra divindade a não ser Deus”)… mesmo  entre os mais jovens que são a ampla maioria. Nesse exato momento, em que  ouvimos toda a beleza do azâân, adentra ao recinto um grupo de jovens que  ao nos verem dirigem-se respeitosamente com a saudação Salaam Aleikum  (“Que a paz esteja com vocês”), cumprimento esse típico dos muçulmanos e  que remete ao encontro celestial entre os profetas Mohammed e Ibrahim  (Abrão) – que a paz esteja com eles.  

O vilarejo está rodeado de Oliveiras, essas árvores centenárias que  moldam a paisagem de toda a Palestina, que adentram quintais das casas e  que são o símbolo desse povo. Delas se extrai o fruto que serve de alimento  fundamental para a culinária, assim como o seu óleo, o azeite, alimento  também indispensável da culinária palestina. Das sobras desse processo de  retirada do azeite, o bagaço, saía o antigo combustível para o aquecimento  das casas. Além disso, as árvores mortas servem com suas madeiras aos mais diversos propósitos. Na paisagem árida, desta época do ano, o verde  predominante é oriundo dela – a Oliveira – a árvore mãe dos palestinos.  

Quanto ao vilarejo, tem sua origem perdida na história milenar da  região, não se sabe ao certo quando surgiu. Alguns advogam ter sido um  importante ponto de passagem pelas terras palestinas desde muito, contudo  ninguém estima menos que 2000 anos e, alguns até 2500 anos de idade. Além  disso, se pensarmos que pela pequena dimensão de toda a Palestina, estamos  em terras por onde passaram, viveram e/ou estão enterrados figuras como  Jesus, Abrão, Moises, Ismael, diversos santos, etc. isso no campo da  religiosidade, e não menos no campo da história, pois por aqui passaram  personagens e aconteceram episódios significativos para humanidade, o que  cria e consolida em todos orgulho e robustos laços com essa terra.  

É preciso juntar todas as peças desse quebra-cabeça: a casa  centenária, o centenário narguilé, o gamão centenário, o milenar chá e café  com todo o requinte para adquirirem suas atuais formas, o idioma árabe  milenar, o milenar azâân, o milenar cultivo da Oliveira, o vilarejo palestino  milenar com intensas relações interpessoais, a farta história e religiosidade que  saturam toda a Palestina.  

Essas peças remetem há uma identidade que se formou há muito e  carrega consigo elementos históricos e culturais anteriores à chegada dos  árabes, assim como posteriores a esses e que foram absorvidos e  incorporados pelos árabes palestinos. O que faz, no fundo, essa rica história  própria é gerar uma “face árabe” distinta das demais faces árabes do mundo.  

 Esse povo, em toda a sua longa história, se fez, se refez, se desfez em outros  até culminar na sua última grande transfiguração étnica em árabes palestinos,  e mesmo esses não deixaram de absorver ao seu modo a história que  percorreram até os dias de hoje.  

A identidade palestina é parte da resposta a uma questão central da  resistência ao processo de colonização sionista, a saber: um povo que sabe  “quem é”, que sabe “o seu lugar no mundo” e que tem “raízes profundas nesse  lugar” não se desfaz facilmente.   

Uma das premissas centrais do colonizador sionista, como de todas as  outras colonizações similares europeias, era a da inferioridade do colonizado,  foi assim em África, Ásia e América. No caso específico da Palestina, os  sionistas acreditavam que ao expulsarem os árabes palestinos de suas casas,  vilas, cidades, terras, … através do terror e da violência esses por sua vez  deixariam de existir em duas ou três gerações no máximo. Apostavam que os  palestinos se transformariam num “árabe genérico”, sem traços próprios,  acabando no exílio sob tendas de refugiados ou se “dissolvendo” enquanto  identidade no imenso “mar de árabes” que os circundava seja no Líbano, Síria,  Egito, Iraque, Golfo ou na Jordânia. O colonizador sionista, prepotente e  incapaz de ver grandeza no outro, cometeu um gigantesco erro de previsão e o  que vimos nesses mais de 70 anos desde a Nakba, foi a identidade palestina  se fortalecer e adquirir contornos claros e definitivos, ante a presença do  invasor estrangeiro.  

A força que Israel empregou e emprega sobre o povo palestino é  imensa, brutal, descomunal, um monstruoso gasto de forças incomparável as  outras colonizações do século XX, … com o objetivo claro de aniquilar o povo  originário. Era esperado por eles, portanto, que o resultado fosse a extinção do  árabe palestino, mas a história mostrou a resistência inabalável desse povo.  Posso dizer mais ainda, os palestinos acabaram por desenvolver uma  identidade ligada à resistência distinta dos demais árabes, a ponto de hoje  serem os mais politizados e com um elevado grau de escolaridade em relação  a toda região.  

A prova mais forte dessa resistência inabalável é dada nos campos de  refugiados fora da Palestina, as gerações e gerações que se sucedem não  veem a si mesmas como “árabes genéricos” ou pertencentes ao país em que  se encontram. Todos têm clareza que são palestinos, clareza de sua  identidade, clareza da terra a que pertencem e clareza de que retornarão a ela  – Insha’Allah em breve. O povo palestino é o maior entrave ao sonho do  colonizador sionista e, dia a dia, na luta de resistência se firma como seu maior  pesadelo e será, mais cedo ou mais tarde, seu principal algoz.  Autores: Yasser Jamil Fayad, Jamil Abdalla Fayad e Khader Othman.

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