Carta para Ghassan Kanafani

Por Yasser Jamil Fayad

Para começar uma pergunta ao leitor: já lhe aconteceu de desejar muito falar com alguém, longamente, sobre determinado assunto e na hora não conseguir fazê-lo?

É dessa angústia que nasceu esse texto…

Era um dia de final de semana durante a pandemia de Covid-19, naquele isolamento físico os dias tendiam a pare- cerem iguais, então me dediquei a traduzir textos e entrevistas de Ghassan Kanafani, o célebre intelectual e escritor marxista palestino. Fui naquela noite dormir como de costume. Tomei meu banho, vesti o pijama, escovei meus dentes, tomei um copo de água e fui me deitar. Nada de mais até então, somente um rito cotidiano. O que não sabia era que não seria uma noite qualquer, pois tive um impactante sonho e desejo lhe contar em detalhes, caro leitor.

Nele me encontrava em uma espécie de longo corredor e caminhava apressado como se soubesse aonde ir, tendo em mãos um envelope pardo. Acabei adentrando a uma sala ampla com uma grande janela lateral, da qual não se via o exterior, dada a forte intensidade de luz solar que irradiava o ambiente. A decoração do local remetia, claramente, a um espaço de militância política, repleto de cartazes com figuras de luta, revolucionárias, lideranças políticas de todo mundo e um lindo mapa da Palestina bordado ao modo tradicional. Entre as imagens e faces que me rodeavam estavam a de Che Guevara, Mao Tsé-Tung, Lênin… mas fixo meu olhar na de Ho Chi Minh, o inconfundível líder comunista vietnamita, já velhinho, com sua barba rala e branca como sua roupa. Aquele sereno semblante sempre me transmitiu a segurança de um sábio ancião que compreende que um povo unido é mais forte que os impérios. Ao fundo, se ouviam vozes que falavam em árabe, algumas palavras eram inteligíveis outras não, pareciam que vinham de duas direções distintas: de atrás de uma porta fechada que conseguia ver em um canto da sala ampla onde me encontrava e, por vezes, também do corredor onde passara. Estranhamente me sentia ansioso, sem entender ao certo o porquê, ao mesmo tempo sabia que algum desfecho importante estava prestes a acontecer. Em um dado momento, alguém chama meu nome em árabe “Sr. Yasser Jamil Fayad”, não consigo ver nenhuma feição do rosto e a voz se dirige a mim dizendo que Ghassan Kanafani logo chegará para me encontrar.

O sonho me havia transportado para Beirute, a bela capital libanesa, mais especificadamente, no início da década de 70, antes de meu nascimento que só ocorreria uma década depois. A sala ampla em questão era a “famosa” recepção do escritório da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), local que emanava revolução. As imagens que tanto conhecia das entrevistas e encontros captados em vídeos e fotos, que o então porta-voz oficial da FPLP fazia naquele local, me permitiram reconstruí-la em sonho com um grande nível de detalhamento.

Nesse momento a sensação de ansiedade cresceu, exponencialmente. Sento em uma cadeira próxima à extensa mesa e meu corpo traduz minha inquietação. Movimentos rítmicos dos meus dedos, como um trote de cavalo acelerado sobre a mesa do escritório e um balanço de pernas em movimentos curtos e repetitivos para cima e para baixo.

A porta se abre e eis que entra Ghassan, com sua feição jovial e inconfundível bigode preto, me dirige uma saudação rápida e estende a mão. Ele devia ter uns 34 anos de idade, curiosamente, eu era o mais velho – nos sonhos os mortos não envelhecem. Emudeço, mas consigo ficar rapidamente em pé e apertar sua mão em resposta. Ele fala um árabe que consigo entender e, nitidamente, se esforça para falar de forma pausada, como se soubesse que seu interlocutor não domina o idioma em questão.

Contudo o que acontece é que apesar de compreender as questões que perguntava, não conseguia responder, aumentando assim minha tensão e ansiedade. Ghassan me observava como se esperasse minhas respostas. Então, sem hesitação, lhe dei o envelope pardo que carregava em mãos sem saber o que tinha em seu interior. Ghassan abriu

cuidadosamente e ficou a observar seu conteúdo… uma foto! Pude vê-la de relance. Após examiná-la olhou para mim como quem queria uma explicação sobre aquela imagem e gesto… Acordei.

Estava suado e conseguia recordar todo o sonho em detalhes, algo que nunca acontecera antes! O que faço ao perceber que tudo não passou de um sonho? Respondo, imediatamente, as questões feitas por Ghassan em português quase como uma forma de desabafo.

Esse sonho me atormentou por dias. Primeiro porque interpretei que a minha falta de domínio do idioma árabe havia impedido o sonho de prosseguir e revelado algum desfecho distinto. Gostaria tanto de ter conhecido e conversado com Ghassan Kanafani que não consegui, mesmo em sonho, frustrou-me enormemente.

Ghassan Kanafani no escritório da FPLP

Depois de muito pensar e refletir sobre o que aconteceu, como uma resposta necessária creio, decidi tomar a iniciativa de escrever uma carta para Kanafani. Isso mesmo, caro leitor, escrever para uma pessoa que foi assassinada há 50 anos! Uma carta! Sim… com claro objetivo de preencher a lacuna que o sonho deixou em aberto. Você, meu amigo leitor, pode achar estranho o caminho que tomei, mas creio que o conteúdo lhe será também interessante se a forma não lhe contentar. Além do mais, Ghassan adorava cartas e escreveu várias como forma de literatura, desse modo me sinto autorizado a fazer o mesmo. Então, vamos lá:

“Querido camarada Ghassan Kanafani,

Nosso encontro não terminou como desejava, por isso, me sinto na obrigação de retomá-lo. É verdade, a culpa foi minha e não sua para o desfecho não satisfatório e assumo-a. Como tenho muito a lhe dizer acabei ficando com um gosto amargo na boca e espero, francamente, que essa carta me faça reverter essa desagradável sensação.

Primeiro vou responder as suas questões feitas no sonho:

  • Estou me sentindo bem! Muito obrigado por perguntar.
  • De fato venho de longe, de um país do outro lado do Atlântico, o Brasil.
  • Descendo de libaneses… como você suspeitou. Meus avós deixaram essa terra rumo ao Brasil e acredite você, nem eles ao certo me souberam dizer o porquê dessa emigração. Gosto de imaginar, Ghassan, que isso tem a ver conosco, com a nossa cultura árabe, essa ideia bonita de sair em caravana pelo mundo como se ele fosse nosso quintal.

Você deve estar se perguntando por que lhe dei essa foto em particular?

Preciso dizer que a foto é de um rapaz em uma cadeira de rodas, com ambas as pernas amputadas, lançando uma pedra com seu estilingue caseiro, em direção ao exército invasor israelense. É possível perceber, na imagem, que se trata de uma paisagem de conflito dada a fumaça preta de pneus queimando ao fundo. Depois de retratada, devido à forma como nos comunicamos no mundo moderno, ela se espalhou rapidamente. Hoje, usamos computado- res, celulares e outros dispositivos eletrônicos capazes de difundir, velozmente, uma imagem como essa.

“Viralizar” é o termo usado e acredite em mim, Ghassan, quando lhe digo que milhões e milhões de pessoas viram essa mesma imagem ao redor do mundo. O fotógrafo Mahmud Hams que, notavelmente, a registrou assim como as outras fotos dessa sequência, recebeu elogios e prêmios internacionais como aclamado 25º Prêmio de Correspondentes de Guerra Bayeux-Calvados. É uma imagem forte… Você concorda?

Também preciso lhe dizer algo a mais sobre a pessoa nessa foto: o nome dele é Saber al Ashqar, teve as pernas amputadas após um bombardeio israelense à Faixa de Gaza, em 2014, e tinha à época da foto 29 anos de idade. Tinha? Sim. Ele foi dado como assassinado pelos israelenses naqueles dias de maio de 2018 e outras fotos surgiram apresentadas como sendo de seu funeral em Gaza. O que aconteceu, Ghassan, é que os jornais vinculavam a foto que lhe dei e a do funeral como sendo a mesma pessoa, contudo não era.

Recapitulando, o homem da foto não foi assassinado como disseram os veículos de comunicação mundo afora. Como poderia se produzir um erro desse tipo? Dado que essa foto havia se tornado “famosa” e o homem em questão ser um cadeirante com ambas as pernas amputadas?

Para que você possa entender isso preciso lhe contar, mais especificadamente, sobre quem aparecia nas fotos em um funeral, erroneamente atribuído a Saber al Ashqar.

As fotos da cerimônia de adeus eram de um rapaz, coincidentemente, de 29 anos de idade (30 anos dependendo de outras fontes), também com ambas as pernas amputadas em consequência, igualmente, de um bombardeio israelense, andava de cadeiras de rodas na mesma época e região que se encontrava Saber al Ashqar… em maio de 2018 na Faixa de Gaza.

Você pode estar ficando confuso ou me achando con- fuso? Calma. Esclarecerei melhor.

O funeral em questão era de um homem de nome Fadi Hassan Abu Salah. Ele havia perdido as duas pernas em uma amputação traumática para lhe salvar a vida após um bombardeio israelense na Faixa de Gaza, como Saber al Ashqar identicamente o foi, mas o ano noticiado era distinto: 2008. Mais uma vez se produziu um erro, pois ambos factualmente foram vítimas dos bombardeios de 2014. Você deve estar pensando o porquê desse novo erro? Aqui preciso fazer uma digressão sobre a Faixa de Gaza, pois ela não é a mesma que você conheceu, Ghassan. Só assim, creio que ficará mais clara a razão desse segundo equívoco.

O território agora se restringe a 41 quilômetros de comprimento por 6 a 12 quilômetros de largura e concentra 1,9 milhões de pessoas sendo, atualmente, a maior densidade hu- mana por Km² do planeta. Ela se tornou uma imensa prisão a céu aberto, um verdadeiro campo de concentração gigantesco, todo sitiado por terra, ar e mar. Pior, Ghassan, é um laboratório tenebroso em que seres humanos são cobaias para testes

de armamentos de guerra e equipamentos de controle populacional. Essa execrável situação construída e planejada, milimetricamente, pelos sionistas produziu dezenas e dezenas de experimentos macabros  sobre o povo palestino. Entre esses estão os sucessivos bombardeios à Faixa de Gaza em 2008, 2012, 2014, 2021 e 2022.

Mapa da Faixa de Gaza

São tantos que é compreensível a confusão, acerca de qual bombardeio gerou a amputação dos nossos dois cadeirantes, concorda comigo? Agora, isso não explica o porquê de tantos bombardeios, também há de concordar comigo? Para entender esses acontecimentos tenho que lhe falar sobre a função social da guerra para Israel.

Muito mudou de sua época para os dias de hoje, Ghassan. Se a expansão em guerras de alta intensidade foi a tônica israelense, de 1948 até 1967/1973, depois continuou em baixa intensidade, permanentemente até os dias de hoje, nesse processo de expansão lenta, contudo confinado ao território histórico da Palestina em uma limpeza étnica, cultural, histórica, patrimonial, arqueológica da existência do povo palestino. Dessa forma, a expansão foi a primeira função evidenciada. Você vivenciou na pele essas incursões que fabricaram assassinatos, chacinas, tristezas e refugiados. Visi- velmente, Ghassan, outro papel é o uso de armas e técnicas novas nesses momentos de alta intensidade contra a Faixa de Gaza, como serve também à repressão e à tentativa de controle das forças de resistência e libertação nacional palestinas. Dessa maneira, inovação tecnológica de guerra, controle, evidenciamento da real força de resistência e libertação do povo palestino foram a segunda e terceira funções evidenciadas. Esses ataques, em alta intensidade, também servem para coesionar, internamente, os israelenses pelo ódio aos palestinos, além de servir como forma de recrutamento e treinamento militar de combate, visto que o exército israelense aplica, fundamentalmente, uma ação de polícia colonial. Desse jeito, a coesão do tecido social heterogêneo interno israelense pelo ódio ao colonizado, associado ao treinamento militar maciço constituem a quarta e quinta funções evidenciadas. A sexta função é manter a tensão interna e o clima belicoso para ob- ter consensos dos mais variados. Não é à toa que em épocas eleitorais e diante de crises internas os ataques contra Gaza funcionam como uma antessala de novo acordo interno ou uma cortina de fumaça. A sétima função é um dos propósitos da existência desse enclave colonialista no Oriente próximo: sabotar, desestabilizar, assassinar lideranças políticas, vigiar, infiltrar agentes, atos de terrorismo etc. em toda a região, ser- vindo aos interesses do imperialismo.

Além do mais suponho, Ghassan, que a data de 2008 foi noticiada, equivocadamente, como sendo aquela em que Fadi Hassan Abu Salah teria sido gravemente ferido, pois foi uma das ações mais genocidas de Israel. Por isso, lhe conto mais sobre ela. De dezembro de 2008 a janeiro de 2009, Israel perpetuou mais um gigantesco crime contra Gaza, se valendo desta vez, até mesmo de armas químicas. Dá para acreditar, Ghassan? Usaram fósforo branco e as imagens das queima- duras químicas sobre os corpos de civis são atrozes. Acho, inclusive, impróprio mostrá-las nessa carta além, é claro, de ser repugnante. Espero que você me entenda. Deixaram mais de 1400 mortos e milhares de feridos, entre esses últimos se noticiou, erroneamente, Fadi Hassan Abu Salah. É comum, você bem sabe, aos bombardeios desse tipo multiplicarem feridos com sequelas permanentes e a nossa velha Gaza é um reduto desses. São milhares e milhares de amputações e deforma- ções em mãos, braços, pés, pernas, olhos, surdos, queimados, etc. Mais uma criação nefasta de Israel!

Voltemos a história que lhe contava. Esse último rapaz, Fadi, era filho de refugiados, assim como você, Ghassan.

Tinha perdido a perna como Nádia, fato mencionado em sua poderosa e magnífica “Visão de Gaza”, que sintetiza muito bem você e aqueles da sua geração que optaram em ficar e lutar pela Palestina.

Você deve estar se perguntando: o quê dois homens, em cadeiras de rodas, com ambas as pernas amputadas, localizados na Faixa de Gaza, próximo à linha de fronteira, em maio de 2018… estavam fazendo ali?

Para isso, meu querido Ghassan, tenho que lhe revelar que eles não estavam sozinhos, e mais, tenho que lhe explicar a Grande Marcha do Retorno. Após tanto tempo inventando e reinventando formas de resistir e de lutar, o povo palestino criou um movimento lindo para lembrar os 70 anos da Nakba, protestar contra a mudança da embaixada dos EUA para Jerusalém e reafirmar o seu direito inalienável de retornar a seu território original. Essa linda Marcha se iniciou em 30 de março, o Dia da Terra Palestina, que recorda o ano de 1976, quando no norte da Palestina camponeses reagiram ao roubo contínuo de suas terras por parte de Israel. A Grande Marcha do Retorno, já lhe explico prontamente, não era com- posta apenas por amputados fisicamente como Saber al Ashqar ou Fadi Hassan Abu Salah, mas por centenas e milhares de palestinos na Faixa de Gaza, acompanhados na Cisjordânia e nos campos de refugiados dos países árabes circunvizinhos. Apesar da afirmação acima, Ghassan, já foi dito que o

exílio é uma sensação permanente de falta, de um vazio de algo que lhe é fundamental, é uma incompletude… uma “amputação”, metaforicamente, falando. Nesse sentido, a Grande Marcha do Retorno congregou milhares de palestinos que são também amputados, física e/ou metaforicamente.

A resposta sionista foi a mesma de sempre: violência e mais violência, morte e mais morte. O nosso Fadi Hassan Abu Salah foi assassinado, em 14 de maio de 2018, uma segunda-feira, o dia mais sangrento de ataques à Grande Marcha do Retorno, totalizando 61 mortos em um único dia. Atiraram em uma pessoa de cadeira de rodas! Dá para acre- ditar nisso? Como sempre invocaram a carta preferida para esconder os crimes, a tal “segurança de Israel”, atribuíram a Fadi e aos outros 60 assassinados a pecha de terroristas perigosos. Um cadeirante com ambas as pernas amputadas carregando uma bandeira da Palestina era uma ameaça iminente a segurança de Israel – segundo eles. Ghassan, ele foi morto em Abasan al-Jadida, perto de Khan Yunis, ao sul da Faixa de Gaza, com o disparo efetuado por um atirador de elite em seu peito, enquanto rezava embaixo de uma árvore! Fadi deixou a mulher, Amina Abu Salah e cinco filhos, sendo três meninos e duas meninas.

Atiraram em uma pessoa de cadeira de rodas enquanto rezava! Dá para acreditar nisso, Ghassan?

Foto do funeral de Fadi Hassan Abu Salah, incorretamente, associado à famosa foto de Saber al Ashqar

Foto de Fadi Hassan Abu Salah

Foto de Fadi Hassan Abu Salah com seus cinco filhos e esposa

Ele não foi o único. Naqueles dias as cenas de assassinatos à céu aberto eram aterrorizantes. Os números de mortos e feridos aumentavam de hora em hora, pessoas desarmadas, em um protesto pacífico sendo abatidos como “insetos”. Naquela segunda-feira, de 14 de maio, já se somavam um total de 118 mortos e mais de 1800 feridos. As cifras, nesses casos, sempre escondem mais do que revelam e deixam ocultos nomes, idades, parentescos, laços de amizade, relações amorosas, enfim histórias de vida e as sequelas que ficarão para sempre.

Bestialmente, os sionistas continuaram perpetrando crimes até mesmo contra um bebê… Sim, Ghassan! Dá para acreditar nisso? Um bebê foi envenenado com gás lacrimogêneo. As reportagens escondiam essa história entre as cifras ou raramente, citavam “um bebê”. Mais um palestino sem nome e sem história que a mídia cúmplice desinforma, em oposição às dramáticas e longas reportagens das “vítimas israelenses”. Esse é um papel teatral que conhecemos muito bem dos sionistas, sempre se apresentando como eternas vítimas, quando na verdade são somente carrascos sádicos e cínicos.

A criança se chamava Laila Anwar al-Ghandour, uma menina de apenas oito meses de idade, cuja a família era do campo de refugiados de Al-Shati, na Faixa de Gaza. Laila… é também o nome de sua filha, Ghassan. A mãe da criança a havia deixado adormecida junto a parentes a mais de um quilômetro da fronteira, no que considerou ser uma distância “segura” das manifestações. Não existe essa certeza para nenhum palestino sob colonização. Segurança é uma palavra sempre relativa para os palestinos sob limpeza étnica israelense. A quantidade imensa de gás lacrimogênio lançado naquele dia terrível, segunda-feira 14 de maio de 2018, transformou toda a região em uma espécie de enorme câmara de gás aberta. Foi assim que executaram a pequena Laila. Ghassan… não lhe parece que as crianças palestinas, antes mesmo de saber quem são, já carregam o fardo de onde nascem? São tratadas pelo colonizador como potenciais adultos palestinos e assim, corriqueiramente, torturadas, presas e assassinadas.

Diante daquele festival diabólico e indigno conduzido pelos israelenses, esses não escondiam a satisfação por cada morte, comemoraram como cães sedentos por sangue. Isso porque durante os dias da gloriosa Grande Marcha do Retorno, os militares israelenses testaram novos dispositivos e armas, entre elas a chamada “chuva de gás lacrimogêneo”, que intoxicou a pequena Laila.

Início da chuva de gás lacrimogêneo- Foto de Mahmud Hams

Foto da pequena Laila Anwar al-Ghandour já assassinada

Você deve estar se perguntando: Como aqueles que se classificam na condição de “ocidente político”, de maneira geral, reagiram a tudo isso? Da maneira de sempre Ghassan, diante do trágico se retira da vítima sua humanidade e, assim se torna aceitável, o horror como algo trivial.

Foto de Laila Anwar al-Ghandour

Você sabe mais do que ninguém que essa foi a forma deles de “resolução” do trágico na modernidade, não reconhecendo a tragédia, pela desumanização do outro. Os palestinos foram vítimas dessa ação. Como no livro de Franz Kafha em que a personagem Greta Samsa não reconhece, em determinado momento, humanidade em seu irmão “metamorfizado” e, assim, pode pedir para varrê-lo para fora como a um “inseto” qualquer. A “metamorfose” que os palestinos sofreram é o orientalismo que os apresenta como seres incapazes, menores, agressivos, violentos, terroristas, irracionais, etc. Com essa falsa imagem construída fica fácil aceitar seus assassinatos e varrê-los em uma limpeza étnica à céu aberto, à luz do dia e a olhos vistos.

Isso, obviamente, nada tem em comum para eles com o horror do assassinato de milhares de europeus que professavam o judaísmo cometido por outros europeus, durante a Segunda Guerra. Tanto que registraram protestos em livros, filmes, palestras, museus, memoriais, etc. sobre tal tema. É um horror que tem nome (holocausto), as vítimas têm suas histórias humanas contadas e se nega a “metamorfose” produzida pelo nazismo. Aquela que dizia que o europeu judeu é portador de todas as maldades. Contudo, meu caro Ghassan, para os palestinos que, notoriamente, não são europeus, o destino é o apagamento dos horrores por eles sofridos. Nada diferente do destino comum dos demais povos originários vítimas do colonialismo desses mesmos europeus nas Américas, África e Ásia. Não lhe parece ironia da história, Ghassan, que as falsas e caluniosas acusações nazistas em parte tenham se transformado em verdades pelas mãos dos judeus sionistas na Palestina? Sabemos quantas e quantas maldades esses colonizadores fizeram e fazem na terra santa.

Não existe o trágico, não existe limpeza étnica, nem genocídios, os eventos históricos não possuem nomes, tam- pouco as vítimas têm nomes e histórias de vida. A vítima no fundo não é uma igual, sempre inferior, quase uma semi-humana por assim dizer.

Se é possível produzir tal forma de “metamorfose” sobre aparência de um povo inteiro, é também possível fazê-lo em outro com sinal trocado. Assim, Ghassan, o monstro colonial sionista produtor de bestialidades é maquiado, transformado na imagem e recriado na aparência: como uma invenção divina para fanáticos religiosos ou ainda como a única “dádiva” democrática do oriente próximo, que faz Apartheid, limpeza étnica e agressão militar aos vizinhos permanente e impune- mente. De bastião das forças reacionárias do mundo, o que Israel o é, querem até mesmo transfigurá-lo em progressista. Dá para acreditar nisso? A lista poderia seguir, longamente, mas o ponto que queria lhe chamar a atenção já foi cumprido. A violência dos sionistas não é algo novo para você, Ghassan. Você foi vítima dela. Desde sua infância até a sua morte. E a foto que lhe dei agora adquire contornos mais nítidos e dela surge uma questão que gostaria de conversar com você e não consegui no sonho, sendo essa a razão de ter lhe dado essa foto em particular:

Será que Saber al Ashqar é uma espécie de Dom Qui- xote palestino?

Não estranhe a minha pergunta.

Porque ao que se sabe, al Ashqar continuou vivo. Mais ainda, prosseguiu indo as manifestações da Grande Marcha do Retorno, e mesmo depois dela, apesar dos assassinatos, prisões e torturas que se sucederam naqueles dias.

Não lhe parece brotar similaridades entre ambos, Ghassan?

Digo isso, pois como o cavaleiro da novela medieval, montado em seu débil “Rocinante”, Saber al Ashqar tinha sua velha e débil cadeira de rodas. Também queria, como o primeiro, transformar profundamente o mundo que o cercava, só que no caso de Saber al Ashqar, libertar a sua amada Palestina da colonização sionista. Em ambos existe uma incongruência entre meios e fins, o que me faz questionar: será que al Ashqar achou que um cadeirante com ambas as pernas amputadas munido de um estilingue caseiro em mãos conseguiria derrotar o exército israelense? Com todo o apoio bélico que esse recebe do império?

Dizendo de outra forma: Será que Saber al Ashqar não compreendia realisticamente a correlação de forças?

Ao que tudo indica, Ghassan, o nosso Saber al Ashqar não sofria de nenhuma falta de princípio de realidade, que é uma característica marcante do personagem de Cervantes. Distintamente de Dom Quixote de La Mancha que via em simples moinhos de vento terríveis gigantes, o nosso Saber al Ashqar vê, a seu modo, a entidade sionista como ela é: uma monstruosidade à serviço da lógica do Capital.

Quanto ao terreno da utopia, a de Dom Quixote, não se liga ao real, paira no alto das ideias e não sofre nenhum tensionamento da práxis, ou seja, não se autoavalia, não é reflexiva, não aglutina outros para se tornar mais forte, não conscientiza outros para disputar hegemonia, não se multiplica para mudar a correlação de forças, não muda o seu próprio projeto utópico (no sentido de porvir) dadas as possibilidades que o real abre ao longo da história, enfim é uma utopia estática. Parece que Saber al Ashqar compreende esses elementos a seu modo, não sofre dessa mesma caraterísticas do cavaleiro espanhol.

Apesar disso a questão permanece: se ele não nutria tolas ilusões e nem se auto enganava na correlação de forças desproporcionais que tinha à frente; se tinha clareza na incongruência dos seus instrumentos, uma velha e débil cadeira de rodas e um estilingue caseiro, para a tarefa de libertar a Palestina inteira e se compreendia, minimamente, a seu modo as exigências de uma práxis revolucionária… por que ele continuava a arremessar pedras, Ghassan?

Dito de outra forma: Por que não abdicou da luta diante da falta de instrumentais apropriados e eficientes? Ou dada a correlação de forças estar momentaneamente desfavorável? Por que não reduziu a sua luta a um pretenso realismo político? Por que não optou pela prudência como conselheira?

Imagino que todas as lutas de libertação colonial que triunfaram, e mais ainda as revoluções sociais vencedoras, tenham em algum momento se apresentado como tarefas impossíveis ou improváveis para a prudência de um tipo de realismo político covarde, que se multiplica na esquerda em todo o planeta. Sob o pretexto de um realismo que sempre restringe as possibilidades, o que se faz é se acomodar e se adequar as demandas do Capital em uma esquerda da ordem ou da regra do jogo. Esse nunca foi nosso caminho, Ghassan. Arrisco a dizer que nenhum revolucionário foi chamado de prudente na história.

Quanto ao nosso Saber al Ashqar, não sei ao certo a res- posta meu amigo, nunca cheguei a conversar com ele, mas gosto de pensar que compreendeu a sua literatura. Digo isso, pois que ele descobriu, a seu próprio modo, que poderia sobreviver sobre uma velha e débil cadeira de rodas em uma vida desfeita pela colonização sionista ou optar por lutar contra ela. O que inclui a possibilidade real da morte, assassinato, tortura e o que nos remete ao seu personagem Abdul-Jabbar, na peça teatral “Breve conclusão”, em que o mesmo clarividenciou:

“Mais importante (…) É achar um nobre ideal, an- tes da morte.”

Além de ter um nobre ideal para se viver, existem momentos na história de um indivíduo e mesmo de um povo, em que a morte não é antagonizada pela vida, mas pela luta. É como se só está vivo realmente quem luta, como o pássaro do seu conto “Muros de Ferro”.

Além do mais é preciso ter clareza que as configurações políticas, que sustentam Israel regional e mundialmente, mudarão e que a história está aberta. Há momentos em que um povo deve resistir para que no passo seguinte possa derrotar o inimigo. Nesse quesito nenhum povo, no século XX, foi mais bravo do que os palestinos, que enfrentaram uma colonização de substituição apoiada por vários impérios. Apesar de todo o esforço empregado por esses para apagarem da existência o povo palestino, não conseguiram e nem conseguirão. O povo palestino me lembra o velho, sábio e sereno Ho Chi Minh que compreendia que venceria todos os impérios e a colonização, somente com um povo unido na luta. Sem luta não há existência e nem tampouco libertação.

Para a história de um povo é fundamental também que a geração presente saiba que os seus do passado lutaram esse é o legado precioso a ela repassado. É a ligação necessária para contar a história a contrapelo, para salvar a memória dos que lutaram e lutam pela libertação. A geração presente precisa dessa certeza do passado, que a dignifica e orgulha no presente, pois são, fundamentalmente, os que não se resignaram que servem de exemplo para o presente, os outros são esquecidos. Quando examinamos o conteúdo de todos esses legados existem aqueles que se sobressaem. Por sua capacidade de projetar não uma Palestina do passado que se perdeu, mas uma de um futuro solidário, fraterno, amoroso, com equidade, sem exploração e sem opressões de todos os tipos. Uma Palestina que é sinteticamente antítese de Israel. Capaz de radiar valores generosos para os demais árabes, outros povos da região como os persas, turcos entre outros… para o mundo todo. Essa poderosa visão de uma Palestina socialista é um legado precioso que você ajudou a nos deixar, meu querido Ghassan.

É isso que imagino que Saber al Ashqar compreendeu: ter na digna e linda Causa Palestina o seu nobre ideal, lutar para antagonizar a morte como produto do vil colonizador e como condição necessária para vencê-lo, por fim, se impregnar do legado precioso do passado de luta do nosso povo como fonte inspiradora do presente. É exatamente essa con- junção que sinteticamente melhor lhe representa para mim, Ghassan Kanafani. Nesses 50 anos de seu martírio, lanço luzes no seu legado precioso, que é exemplo vivo na memória e no coração dos que lutam no presente por um nobre ideal onde quer que estejam.

Do seu camarada e irmão – Yasser Jamil Fayad

Bibliografia

AMIN, Samir. O eurocentrismo: crítica de uma ideologia. São Paulo: Lavra Palavra, 2021.

BARGHOUTI, Mourid. Eu vi Ramallah: memórias. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006.

FAYAD, Yasser (org.). Ghassan Kanafani anticolonialismo e alternativa socialista na Palestina. Florianópolis: Fedayin, 2022.

KHALIDI, Rashid. The Iron Cage: The Story of the Palestinian Struggle for Statehood. Oxford: Oneworld Publication, 2006.

KOSIK, Karel. O século de Grete Samsa: sobre a possibilidade ou a impossibilidade do trágico no nosso tempo. Traducción de Leandro Konder. Matraga, v. 8, p. 9-17, 1996.

MASALHA, Nur. Palestine: A four thousand year history. London: Bloomsbury Publishing, 2018.

VÁSQUEZ, Adolfo Sanchez. Entre a realidade e a utopia. Trad. Gilson B. Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

Yasser Jamil Fayad – Nasceu em Campos Novos-SC (25-02-1982). Graduado em Medicina pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Residência médica em Pediatria HU-UFSC, Residência médica em Infectologia Pediátrica na USP-Ribeirão Preto, pós-graduação em Filosofia Política (IFIBE) e mestrando em Geografia pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Militante de esquerda e coordenador do Movimento pela Libertação da Palestina – Ghassan Kanafani. Autor dos livros publicados pela Fedayin Editora:
“Socialismo ou mais Barbárie”, “Nosso verbo é lutar: somos todos palestinos” e “Amálgama de luta e beleza: somos todos palestinos”

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