Por Mário Maestri
Em visita a Asunción, o historiador Mário Maestri concedeu entrevista ao Diário La Nación, realizada pelo historiador Jorge Coronel Prosman, referente à Guerra da Tríplice Alianza, sobre a qual publicou história geral em quatro tomos publicados pela editora Intercontinental de Asunción. [Tradução ao português da primeira das duas partes da entrevista.]




Jorge Coronel – Quais eram as principais características da sociedade brasileira ao iniciar-se a Guerra da Tríplice Aliança?
Mário Maestri – Não compreenderemos a Guerra Grande à margem do conhecimento do caráter das formações sociais dos países envolvidos. Em 1865, o Império do Brasil possuía dez milhões de habitantes em um imenso território. Ao contrário da dispersão nacional das ex-colônias hispano-americanas, a totalidade das antigas possessões luso-brasileiras formou um estado unitário, monarquista, centralista, autoritário e, sobretudo, escravista.
Com a derrota do Sul negreiro na Guerra da Secessão americana, em 9 de abril de 1865, o Império do Brasil se transformou na única nação independente do mundo a manter a escravidão colonial. Naquele então, o Brasil teria mais de 1.500.000 trabalhadores escravizados, africanos e afro-descendentes, em torno de quatro vezes toda a população paraguaia, em 1865.
Jorge Coronel – Qual a situação da distribuição da Terra?
Mário Maestri – O Brasil colonial e imperial desconheceu população camponesa significativa. Desde a dita descoberta das regiões da América do Sul, em 1500, a Coroa portuguesa se propôs como proprietária de todos os territórios das suas desde então possessões americanas, conhecidas e desconhecidas, que foram repartidas em grandes propriedades latifundiárias, a serem explorados com o braço escravizado.
O Estado português, luso-brasileiro e imperial jamais distribuíram pequenas parcelas de terra entre a população livre, que vivia miseravelmente nos interstícios da organização social e da produção escravistas. Ao contrário dos USA, nenhuma região do futuro Brasil jamais, conheceu o status de “território livre”.
Mesmo com a população escravizada em regressão, após a abolição do tráfico transatlântico, em 1850, o trabalhador feitorizado se manteve como a força de trabalho essencial da produção cafeicultora, esteio do Estado imperial e da economia exportadora do Brasil. Ao faltar braços para a cafeicultura, cativos foram comprados de todo o Brasil, a alto preço, concentrando-se no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Apesar da centralização política imperial, as províncias do Brasil viviam quase-isoladas, em semi-autonomia econômica e social. Uma grande parte da população -escravizados, livres pobres, caboclos, índios- não integrava, de direito ou de fato, a comunidade nacional, restrita aos escravistas e homens livres com algumas posses.
Com seus interesses cravados nas províncias, os membros das classes dominantes regionais se consideravam paulistas, mineiros, pernambucanos, rio-grandenses e escassamente brasileiros. As únicas instituições supra-provinciais eram o Estado imperial, o clero e as forças armadas. Desconhecia-se mercado nacional. O Brasil era um Estado sem nação, na acepção moderna do termo.
Mário Maestri – *
Jorge Coronel – E a Argentina?
Mário Maestri – Desde a crise colonial e a Independência, em 1810, a futura Argentina viveu dilacerada pelo esforço das classes dominantes portenhas de manterem, por um lado, o import-export como monopólio do porto de Buenos Aires e, por outro, a submissão das províncias do Litoral e do Interior. Programa no que tinha o apoio do capital comercial britânico. E se esforçavam para recuperar as províncias desgarradas, o Uruguai e o Paraguai.
Como no Brasil, no vice-reinado do Prata, as terras tidas como possessões espanholas eram propriedade real, que, também ali, a Coroa as distribuiu entre os apaniguados do reino. A região se desenvolveu com dificuldade, já que pouco adaptada à grande plantação de exportação, com escassa população nativa a ser subjugada e explorada, pagando muito caro pela importação de africanos cativos.
Mesmo desconhecendo também população camponesa, vicejou no Prata uma população subalternizada livre, relativamente rarefeita, com destaque para os gauchos, que sobreviviam nos pampas, sem acesso à propriedade legal da terra. Apenas após o fim, em 1870, da chamada pelos paraguaios de Guerra Grande, empreenderam-se as ditas “Campanhas do Deserto”, com a conquista militar dos territórios meridionais argentinos às populações nativa.
Jorge Coronel – Como foi evoluindo esse quadro geral?
Mário Maestri – Nas províncias argentinas, dominava a grande propriedade pastoril, com alguma incidência, sobretudo no Litoral e Interior, de pequenos criadores e plantadores arrendatário, detentores, proprietários. No interior, subsistia uma produção artesanal e pequeno-manufatureira, que produzia tecidos, barcos, aguardente, vinho, carretas, etc., vendendo seus produtos nas demais regiões.
A abertura sem travas das fronteiras aos produtos ingleses ameaçava mortalmente aquela produção. Essa iniciativa afundaria na pobreza as províncias do Interior, como realmente ocorreu. A grande produção exportadora das províncias argentinas era o couro e, secundariamente, outros sub-produtos vacuns. Ela era dominada pelos grandes criadores, que avançavam sobre as terras públicas e pressionavam a pequena produção pastoril e agrícola.
Em 1865, o Estado nacional unitário argentino esforçava-se para consolidar a unificação recente e instável de território que não almejava constituir como nação unitária, integrando segmentos das classes populares, mesmo em forma subordinada.
A oligarquia comercial portenha via a população do interior, com destaque para gauchos e indígenas, como seres bípedes sub-humanos, a serem aniquilados e substituídos por imigrantes europeus. Projeto até certo ponto realizado. A consolidação do Estado argentino unitário, oligárquico, anti-popular, deu-se após o fim da Guerra da Tríplice Aliança, em 1870. A Argentina deveria esperar, ainda, longas décadas, para iniciar a se construir como nação.
Jorge Coronel – Qual era a situação no Uruguai?
Mário Maestri – Independente apenas em 1828-1830, o Uruguai, possuía rarefeita população, em grande parte estrangeira, concentrada em Montevideo. O governo blanco, autonomista, esforçava-se com dificuldade para manter-se fora da órbita de Buenos Aires e do Império do Brasil, e afirmar a independência nacional periclitante. Ele não buscou, para esse projeto, o apoio das classes subalternizadas, como fizera José Artigas, anos antes.
Os territórios uruguaios, a norte da fronteira com o Rio Grande do Sul, até o rio Negro, eram dominados por criadores rio-grandense escravistas, mesmo tendo sido a escravidão abolida no país. Eles negavam-se a pagar impostos sobre a terra e a produção e se serviam do português mesmo nos documentos oficiais uruguaios. A República Oriental do Uruguai sequer se constituíra como um Estado consolidado. Essa realidade tem sido estudada e revelada pelo historiador oriental Eduardo Palermo.
Jorge Coronel – Qual é a particularidade que notas no Paraguai?
Mário Maestri – A província do Paraguai foi a grande exceção, não apenas em relação aos estados vizinhos. A distância do Prata inviabilizava agricultura latifundiária de exportação, mantendo a província em situação de pobreza relativa que atraiu poucos colonizadores, que tiveram que transigir, relativamente, na forma de exploração de uma população nativa, no geral abundante e homogênea.
Sobretudo o cuñadasgo e a encomienda mitaya permitiram, sobretudo, a manutenção do aldeamento da população nativa explorada, do seu núcleo familiar e de sua reprodução natural; da língua guarani nativa, ensejando, assim, importante simbiose técnico-cultural hispano-guarani. Nas palavras do político e historiador paraguaio Oscar Creydt, uma “chacra guaraní europeizada”. A coroa espanhola determinou, em 31 de dezembro de 1662, que o filho mestiço de espanhol e de mulher guarani fosse assimilado ao criollo livre, ao menos em teoria.
Quando da independência, em 1811, havia no Paraguai uma importante comunidade de pequenos camponeses de cultura hispano-guarani, que crescera com a abolição crescente das encomiendas, explorando pequenas chacras, falando guarani paraguaio, praticando economia voltada para a subsistência. Os chacareros foram o alicerce do movimento que transformou o Paraguai independente em um Estado-nação, ainda que de economia rural rústica. Ou seja, que elevou o país a um status nacional, fenômeno então talvez único nas Américas.
Analisei sinteticamente as singularidades da formação social dos países envolvidos na Guerra Grande em meu livro El Mar del Plata: dominación y autonomía en el sur de América: Argentina, Brasil, Uruguay (1810-1864). Asunción: Intercontinental, 2017. Dediquei à análise do Paraguai um livro especial – Paraguay: la república campesina. [Asunción: Intercontinental, 2016.] Esses livros foram também publicados no Brasil, pela FCM Editora, de Porto Alegre.
Jorge Coronel – O tema básico do libro del Dr. Alan White, sobre el governo do Dr. Francia, a denominada Francista, é a importância dessa população camponesa, não? Qual a sua opinião sobre esse trabalho?
Mário Maestri – Alan White, publicou, em inglês, em 1978, sua tese de doutoramento sobre a Era Francista [1813-1840], lançada em espanhol em 1989 – La Primera revoluciona popular en América: Paraguay.1810-1840.
Apoiado em portentosa e aguçada investigação documental, o historiador marxista estadunidense produziu contribuição germinal para a compreensão da história paraguaia e a discussão de questão geral ainda em aberto: a pertinência da proposta de “revolução burguesa” pós-colonial, quando a América Latina desconhecia produção industrial e, portanto, burguesia na acepção estrita da categoria.
Alan White centrou sua compreensão da antiga formação social paraguaia na forte sociedade camponesa chacarera, apenas referida, que deu o tom singular e avançado ao movimento de independência nacional paraguaio, desde sua origem, em 1811. Chacareros que determinaram e condicionaram a ação demiúrgica do dr. José Gaspar Rodríguez de Francia (1766-1840).
Os chacareros apoiaram Francia em sua luta contra os realistas, os portenhistas e, finalmente, contra a oligarquia paraguaia, apoio registrado nos magníficos congressos multitudinários, de 30 de setembro de 1813 e de 30 de outubro de 1814, talvez os mais democráticos de nosso continente. E, após eles, no congresso de 30 de maio de 1816, os chacareros votaram a “ditadura perpétua”, ditadura, no sentido romano clássico, e entregaram-lhe, confiantes, o governo, para dedicarem-se aos seus afazeres rurais. Francia segue personagem enigmático para muitos, horrorizando ainda o conservadorismo contemporâneo e causando desconformo a esquerdistas desavisados.
Jorge Coronel – Qual a principal característica do governo de Francia?
Mário Maestri – Francia dirigiu a revolução democrático-popular vitoriosa no Paraguai, na qual José Artigas fracassara. Revolução democrático-popular que se frustrara, abortara ou fora também derrotada no resto da América Latina. O movimento francista materializou a democratização da posse da terra, arrendando a preços ínfimos terras públicas e confiscadas aos conspiradores; a nacionalização do clero e dos bens das ordens religiosas; a imposição da liberdade religiosa de fato; o controle do comércio exterior; a tributação regressiva das classes populares; a formação de pequeno exército nacional, uma antiga reivindicação dos chacareros; o estabelecimento de rede de ensino público; uma administração econômica; o combate intransigente à corrupção.
Movimento democrático revolucionário, o francismo cumpriu e sustentou, por longos anos, no Paraguai, tarefas impostas pela revolução democrático-burguesa na Europa, através de aliança, transitória, entre uma burguesia então revolucionária e as classes populares da cidade e do campo. Um movimento determinado pelas condições históricas de então conhecidas pelo país, pela região, pelo mundo, que elevou o Paraguai, como proposto, ao status de Estado-Nação, caso único, nessas regiões do mundo. E essa foi, sempre, a grande força do Paraguai.
Lamentavelmente, Alan White não alcançou a se debruçar sobre as contradições postas pela sustentação, da revolução democrático-popular francista, por sociedade de pequenos camponeses, capaz de empreender e vencer importantes embates sociais, mas materialmente incapaz de produzir estruturas institucionais para consolidar sua vitória, realidade muito clara quando da Revolução Mexicana, em 1910 e em outras regiões do mundo.
Jorge Coronel – E a Era dos López?
Mário Maestri – A Era Lopista [1842-1870] se consolidaria como movimento oligárquico de dissolução tendencial do Francismo, na esfera política, econômica e social. A base de sustentação do Lopizmo foram comerciantes, ervateiros, criadores voltados à exportação. O Lopizmo apontava para avanço sobre as terras camponesas, o que jamais fez, à excepção da extinção dos pueblos de índios, em 7 de outubro de 1848, por falta de força e devido à defesa do país depender dos chacareros. Houve porém amplo assalto dos bens públicos. A expropriação camponesa foi feita, apenas após a derrota de 1870, fortemente em favor de proprietários não-paraguaios.
O germinal estudo La Primera revoluciona popular en América: Paraguay. 1810-1840, de Alan White, me reforçou a consciência da necessidade de iniciar minha investigação pelo estudo da sociedade paraguaia, colonial e independente, com ênfase nos anos 1810 a 1865, que apresentei em Paraguay, la República Campesina (1810-1865) [Asunción: Intercontinental, 2016.]
Sigo lamentando a morte súbita de Richard Alan White, em 9 de julho de 2016, aos 72 anos, quando começara a me contar, entre outras peripécias de sua vida, seu também envolvimento na Revolução Chilena, e sua presença em Santiago, no golpe de 11 de setembro de 1973, quando assistiu, desde o Hotel Continental, Allende encerrando-se no palácio da Moneda. “[…] Salvador Allende apareceu na varanda e, iluminado pelos holofotes super-brilhantes que pareciam brilhar apenas sobre ele, fez um breve discurso aos milhares de pessoas que aplaudiram e ergueram os punhos em saudação, e Allende levantou a mão direita segurando a metralhadora que Fidel lhe dera, e então rapidamente se virou e voltou pela porta e entrou na história.” [e-mail recebido em 20.06.2016. Traduzi do inglês.]
La Nación, 21 de abril de 2024. https://www.lanacion.com.py/gran-diario-domingo/2024/04/21/las-formaciones-sociales-y-la-guerra-contra-la-triple-alianza-parte-i/
3- Después de tantos años de estudio e investigación sobre la Guerra de la Triple Alianza, que opinión le merecen las dos vertientes historiográficas más actuales, la Corriente Restauradora Patriótica del discurso decimonónico y el Neo revisionismo que trata de introducir la visión de los pueblos, es decir una nuevas lecturas de dicho conflicto?
Meus dez anos de investigação ininterrupta sobre a Guerra Grande foram singularmente prazeirosos, devido à importância do tema; por conhecer o povo paraguaio, que me surpreendeu pela educação, cultura e gentileza; por ter cruzado de fio a pavio o Paraguai -mas não fui ainda a Cerro Corá e a Humaitá -; pelos magníficos colegas paraguaios que se transformaram em amigos queridos, entre eles, Jorge Coronel e sua esposa, a doutora Filomena Bejarano, companheiros de excursões pelo interior do país. E meus queridos e gentis editores, de Alejandro Gatti, da Intercontinental Editora, e Cayetano Quattrocchi, da Arandurã Editorial, que viabilizaram, solidários, belas publicações de meus livros e de alguns de meus orientando brasileiros companheiros dessa aventura. Lamento ter tido apenas um orientando paraguaio, o hoje senador Eduardo Nakaiama, autor de importante trabalho sobre Humaitá.
Acredito que questionamos mitos historiográficos consolidados, oferecemos novas explicações estruturais para o conflito, levantamos questões candentes a serem desenvolvidas. E, sobretudo, empreendemos superação das narrativas nacionais-patrióticas, em perspectiva de uma leitura supra-nacional, desde a ótica das classes populares envolvidas na Guerra Grande. Entretanto, essa leitura foi, no geral, até hoje, pouco discutida pelo mundo acadêmico. Mais comumente, ele seguiu apresentando releituras nem sempre atualizadas e ampliadas da historiografia patriótica com raízes no século 19, avançadas sobretudo pelos Estados vencedores, na Argentina e no Brasil.
O melhor exemplo dessa realidade é o livro de Francisco Doratiotto, que escreveu sobre a Guerra Grande, praticamente sem jamais ter estudado em forma aprofundada o Paraguai, o que lhe levou a utilizar, comumente, “guarani” como “sinônimo” de paraguaio! Naquele trabalho hoje praticamente sacralizado realizou uma simples restauração modernizada da historiografia nacional-patriótica brasileira, produzida no passado à sombra do Itamaraty e, sobretudo, do Exército brasileiro, primeiro imperial, a seguir, republicano.
O mesmo poderíamos dizer de uma historiografia paraguaia que se aprofunda no pântano atual neo-legionário a tal ponte de propor que as nações envolvidas no conflito, Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, todas, mas todas mesmo, em variadas formas, teriam conhecido conquistas e avanços com a hecatombe de 1864-70. Sobretudo, devemos compreender as razões profundas dessas sandices historiográficas, conscientes, semi-conscientes e inconscientes.
A historiografia é uma das ciências sociais mais politizadas. Ela fala, sempre, donpassado, com os pés no presente, pensando no futuro, sob a influência das classes sociais em luta. A legitimação historiográfica de interpretações que desvelem o passado, desorganizando as mistificações dominantes, tende a depender fortemente das classes subordinadas que procura interpretar. Quando estas últimas avançam, elas abrem espaço também para as suas representações historiográficas, culturais e outras. E, hoje, é lastimável a sorte das classes populares, com destaque para os países envolvidos na Guerra Grande.
Um exemplo para mim paradigmático. Talvez proporcionalmente o nazismo alemão matou mais ciganos que judeus. Entretanto, trata-se de genocídio praticamente esquecido, simplesmente por não ter o povo rom produzido Estado ou núcleo social sólido que apoie e sustente a produção de sua memória. Em verdade, há um quase esforço para deixá-la na sombra.
No Paraguai, na Argentina, no Uruguai, volta e meia, governos mais progressistas tem permitido momentos de maior abertura para leituras críticas, de corte popular, sobre a Guerra Grande, foram o caso do governo de Fernando Lugo, no Paraguai, e de Cristina Kirchner, na Argentina. No Brasil, não houve essas aberturas. A dita Guerra da Tríplice Aliança contra a República do Paraguai é o mito fundador das visões mais conservadoras do Estado e sobretudo do Exército do Brasil.
Desde a vitória, até hoje, o conflito segue sendo uma questão de Estado, ou melhor, do Estado conservador brasileiro, que, através de múltiplos governos, jamais apeou realmente do poder. O Arquivo Histórico do Paraguai, lavado para o Rio de Janeiro, após a guerra, foi devolvido apenas em inícios da década de 1980, mais de cem anos após o fim do conflito! Certamente também para dificultar uma historiografia paraguaia revisionista, no sentido positivo do termo.
A Guerra Grande segue sendo vigiada pelo Itamaraty e, sobretudo, pelo Exército de terra. Se não fosse assim, o pobre do Cristiano, expatriado a tanto tempo, poderia ter retornado, há muito, o caminho de volta para casa!
3. Entre los hechos históricos, que la historiografía tradicional sobre la guerra, dejó en el olvido, están la relación entre uruguayo Venancio Flores y el Imperio del Brasil que favoreció la masacre de la heroica Paysandú, o la verdadera dimensión de las fuerzas mercenarias en los ejércitos de la Alianza, que podría decirnos de esto?
Exatamente. A Guerra Grande teve seu início com o apoio do governo paraguaio ao uruguaio, devido a Bartolomé Mitre, no governo da Argentina, estar financiando a invasão do Uruguai, iniciada em 19 de abril de 1863, por Venancio Flores, para depor o governo Oriental. O governo paraguaio declarara que a independência de fato da República do Uruguai era essencial aos interesses paraguaios. No que tinha razão, quanto aos interesses mercantis. Buenos Aires estava nas mãos do unitarismo argentino e, se o mesmo ocorresse com Montevideo, a Argentina voltaria a poder bloquear o comércio internacional paraguaio, como nos tempos de Juan Manuel de Rosas.
A exteriorização comercial internacional sustentara o advento da Era Lopizta, apoiada nos interesses comerciais exportadores. Seu fim, dissolveria a base social da nova ordem, permitindo o renascimento das tendências pró-portenhas paraguaias, dependente do comercio com o Prata, silenciadas e reprimidas pelo dr. Francia e privilegiadas pelos governos de López pai e filho.
Em janeiros de 1863, Solano López e o governo paraguaio começaram a prepararar-se para uma guerra com a Argentina, na qual tinham toda a possibilidade de vencer, em aliança com os federalistas argentinos e o governo oriental. E terminou se defrontando com uma invasão da República do Uruguai pelas tropas imperiais, em 10 de agosto de 1864, sem qualquer declaração de guerra. Sem saída, Solano López e o governo paraguaio partiram para a guerra contra o Império do Brasil e a Argentina mitrista, na qual podiam alcançar, no melhor dos casos, um empate.
Não conhecemos o plano de guerra do Mariscal, sobre o qual podemos apenas conjeturar. As tropas paraguaias empreenderam o assalto ao sul do Mato Grosso, a Corrientes e invadiram a fronteira leste do Rio Grande do Sul. E não foram enviadas, oportunamente, em apoio às tropas orientais, que foram massacradas em Payusandú, em 2 de janeiro de 1865, pelas tropas de Venancio Flores em aliança com as milícias dos fazendeiros escravistas sulinos e as tropas imperiais, com o vergonhoso fuzilamento de chefes e oficiais orientais após a rendição.
6- El multifacético historiador argentino Estanislao Zeballos, que visito el Paraguay después de la GTA, dejo en sus escritos algún dato significativo para la historiografía sobre la guerra? (la pregunta va dirigida por el hecho que usted había escrito que fue el primero en insinuar el Lopizmo Positivo, ya al terminar la guerra y no después con lo escritos de O´Leary.
Questionamos a mitologia historiográfica que o Lopizmo, isto é, a valorização da ação de Solano López durante a Guerra Grande, fosse uma invenção interessada, sobretudo por Juan Emilio O’Leary (1879-1969). Ao se concluir a campanha ofensiva, com um enorme fracasso paraguaio, possivelmente o prestígio do Mariscal estivesse baixa. Nesse período, que abordo em La guerra sin fin: la Triple Alianza contra el Paraguay : la campaña ofensiva, 1864-1865 [Asunción: Intercontinental, 2017], as tropas paraguaias tiveram péssimo desempenho, com um inteiro exército se rendendo em Uruguaiana, sem resistência, 18 de setembro de 1865. Rendição que nasceu da erros militares graves de comando e, sobretudo, da falta de disposição para a luta nas tropas paraguaias. Os soldados, as classes populares não compreendiam e não se interessavam por aquele conflito, desinteressadas nas exportações.
Quando as tropas paraguaias recuaram para os territórios nacionais, na iminência da grande invasão aliancista, as classes populares passaram a compreender que se tratava, então, de defender o Estado nacional nascido do Revolução Francista, com tudo o que tinham conquistado e possuíam: chácaras, animais, autonomia, etc. Passaram, então, a lutar como leoas defendendo suas crias. Acredito que, a partir desse momento, a guerra assumiu um novo caráter, camponês, chacarero, com a indiscutível defecção das classes dominantes paraguaias quando a derrota se anunciou provável, inclusive de toda a família do Mariscal. É aí, creio, que nasce uma confusão que se mantém até hoje, muito forte. Discuto essa questão em La guerra sin fin: la Triple Alianza contra el Paraguay : la campaña defensiva, 1866-1870 [Asunción: Intercontinental, 2018]
O Mariscal manteve-se no comando geral da resistência, irredutível, sem o abandonar, em forma não muito hábil, até seu dramático e covarde assassinato, já ferido, em Cerro Corá, em 1º de março de 1870. O que não o transformou, jamais, em um general de pés descalços, como José Artigas, Emiliano Zapata e Pancho Vila. Solano López lutou pela defesa da ordem lopizta oligárquica inaugurada por seu pai, mercantil-exportadora, de orientação anti-popular. Preparava seu filho, Juan Francisco López, Panchito, para ser seu sucessor. Tentou legar territórios imensos para sua companheira e herdeiros, mas não legalizou a posse da terra sequer dos chacareros em armas. Acredito que Solano López e os camponeses paraguaios lutaram a mesma guerra, com objetivos diversos.
As classes populares paraguaias resistiram, até o último suspiro, opondo-se à destruição, pela raiz, do fundamental do Estado surgido da Revolução Francista, com a apropriação e privatização das terras públicas, em grande parte exploradas pelos chacareros. Com a derrota militar, organizou-se um novo Estado de sentido anti-popular, anti-nacional, oligárquico, corrupto até a medula dos ossos, praticamente sem apoio entre uma população aplastada pela hecatombe nacional e popular e pela privatização das terras públicas. Dissolvia-se, assim, o que restava do caráter nacional-popular do Estado paraguaio.
Após a derrota, ex-oficias lopistas, ao serem integrados à política e a gestão do Estado, aceitaram reivindicar, no máximo, a heroicidade das tropas paraguaias e abraçar a anatematização do Mariscal, as narrativas alienistas sobre o conflito e o novo Estado anti-popular e anti-naciona. O Paraguai conheceu um período político extremamente instável, com a venda das propriedades estatais, corrupção pública desenfreada, miséria popular, expatriação de camponeses à procura de trabalho etc.
Desde sempre, as classes populares se antagonizavam com as narrativas legionárias, imperiais e argentinas sobre a pretensa justiça e necessidade da guerra de agressão e de destruição nacional, visões sustentadas, retocadas ou não, até hoje, pela historiografia de viés aliancista. Nos tempos derradeiros da resistência e após Cerro Corá, era materialmente impossível a produção de narrativas estruturadas, nacionais e populares, sobre a guerra.
Os governos de ocupação militar, legionários, colaboracionistas reprimiam impugnações das narrativas apologéticas aliancistas. A resistência a essas leituras dos fatos, pelas classes populares que haviam sofrido e sustentado a resistência, coagulou-se em torno da canonização de um Mariscal demonizado. Paradoxalmente, elas interpretaram e sintetizaram a heroicidade da resistência popular como uma criação sobretudo de condução militar magnífica de Solano López. Essas narrativas, sobretudo orais, foram registradas igualmente em uma produção popular de cartas, de canções, de poesia, de desenhos e de pinturas e quadros rústicos de Solano López, etc.
O bem-definido multifacético Estanislao Zeballos, em visita ao Paraguai, após o conflito, se deparou, surpreso, com registros dessa defesa nacional-popular das razões da defesa do Paraguai, diante dos Estados invasores e do colaboracionismo nacional, através de verdadeira idolatria do Mariscal.. Salvo engano, não existe ainda procura, coleta e estudos detalhados sobre o registro dessa primeira leitura popular dos acontecimentos históricos.
Escutei e gravei alguns magníficos e saborosos relatos de dona Ana Maria Rivarola Matto, em sua residência, em 2015, que escutara de sua mãe e avó, sobre o conflito. Ela lembrava, rindo, que, na avaliação de sua avozinha, a guerra terminara, quando muito, em um empate e jamais com uma derrota paraguaia!
4- Cuales fueron las principales consecuencias de la GTA, en los países de la Alianza y sobre todo para el Paraguay?
Temos que diferenciar as principais consequências da Guerra Grande para as classes dominantes e subalternizadas do Império do Brasil, da Argentina, do Uruguai e do Paraguai. No Império do Brasil, ao contrário que propõe uma multidão de historiadores, a vitória militar sobre o Paraguai e sobre Uruguai reforçou a Casa e o Estado imperial. Dom Pedro, proposto como fragilizado pelo conflito, partiu em vigem de lazer, deixando, tranquilo, a regência nas mãos da princesa Isabel, educada como uma mentecapta, com as novelas que lia censurados pelo pai e pelo marido. Consolidaram-se, assim, por alguns anos, a ordem autoritária, centralista, monarquista e, sobretudo, escravista. O que atrasou a república e a industrialização no Brasil.
A guerra aliviara, momentaneamente, a pressão emancipacionista e abolicionista. Após o fim do conflito, em 1871, o Estado imperial promoveu reforma na escravidão do tipo “engana-bobos” e a instituição prosseguiu por dezoito anos! As classes populares morreram aos magotes no Paraguai e o Estado jamais pagou realmente o que prometera para os veteranos e estropiados. Jamais houve adesão popular ao conflito. Os desavisados, caçados para irem morrer no Paraguai, eram chamados de “voluntários de pau e corda”. Através do Brasil, escutou-se o grito “Deus é grande, o mato é maior!”, e as matas e os quilombos de negros fugidos encheram-se de escapados dos recrutadores e de desertores. O soldado imperial lutou pessimamente pois preocupava-se sobretudo em voltar para casa vivo. A guerra contra o Paraguai certamente consolidou o caráter anti-popular e oligárquico do Estado imperial, do qual o Estado republicano seria, no essencial, sua continuação, ao menos até a chamada Revolução de 1930.
Na Argentina, consolidaram-se o unitarismo autoritário e elitista e os interesses rural-exportadores ingleses e portenhos, enquanto as províncias do Litoral e do Interior afundavam no atraso relativo, heranças não superadas totalmente até hoje. Sobretudo as classes populares federalistas foram reprimidas, física, econômica e politicamente – gauchos, pequenos criadores, comerciantes, manufatureiros, etc. Morreram mais federalistas provinciais nas mãos do mitrismo do que soldados argentinos na guerra contra o Paraguai, como lembra o historiador argentino León Pomer. Enorme parte das tropas da Argentina mitrista era formada por estrangeiros. A temida cavalaria gaucha da província de Entre-Ríos, desbandou, por duas vezes, no arroio Basualdo, em 4 de julho, e no arroio de Toledo, em 8 de novembro de 1865, exigindo, aos grupos de “Viva Urquiza, Muerte a Mitre”, “ir pa ́ bajo, non pá riba”, isto é, combater Buenos Aires e não Asunción! A vitória da Argentina unitarista consolidou, como no Império do Brasil, o domínio oligárquico sobre a população.
Com a derrota do governo constitucional blanco, e a imposição sobre o país da ditadura de Venancio Flores, a República do Uruguai se consolidou, por longas décadas, como um Estado tributário do Império, e a seguir, da República do Brasil, sob a também sempre presente pressão de Buenos Aires. Consolidou-se no país o domínio do latifúndio oligárquico, com uma capital de população hipertrofiada, e um interior semi-deserto, situação que se mantém, forte, até hoje. A população do país apenas se aproxima, atualmente, dos três milhões e meio de habitantes.
A República do Paraguai sofreu, de longe, mais duramente, as sequelas do conflito, devido, sobretudo, a verdadeira reformatação patológica de suas estruturas sociais, com destruição material e humana, na guerra, e desorganização sócio-econômica, após o conflito, da então sua maior riqueza: a forte e coesa classe camponesa. Destruição que perdurou, por décadas, e, de certo modo, segue até hoje.
Após 1870, as classes dominantes legionárias sonharam com uma fantasiosa reconstrução do país, com a substituição da população de origem hispano-guarani, de por uma imigração europeia, chegando ao extremo de proibir a língua guarani nos atos públicos, na escola, no exército, na polícia. Dizimada no conflito fratricida, o campesinato não teve condições de resistir às privatizações das terras públicas que comumente as obrigaram a irem buscar trabalho através da expatriação, com destaque, nos primeiros tempos, para o Brasil e na Argentina.
O Paraguai não conheceu, na acepção estrita do tema, uma reconstrução, ou reedificação do que fora construído. O país conheceu, ao contrário, a construção de estruturas políticas, sociais, econômicas, institucionais, ideológicas, etc. anti-nacionais, o que certamente ajuda a compreender que um país que se destacara no Prata pela estabilidade de suas instituições, nas Eras Francista e Lopizta, mergulhou, a seguir, em uma instabilidade quase sistêmica.
Em uma análise supra-nacional, podemos dizer que as classes populares dos países envolvidos na guerra, como uma totalidade, e o próprio destino nacional da Argentina, do Brasil, do Paraguai e do Uruguai sofreram durante os combates fratricidas de 1864-70, em grau e formas diversas e desiguais, sequelas que ainda não foram superadas.
Confira aqui o audiotexto da matéria publicada.

Belíssimo Mario, assertividade brilhante. Inspira-nos desde sempre e pra frente!
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