Wallace Rocha Armani
A complexidade da existência humana em sociedade é um tema que tem despertado a curiosidade e o debate em diversas áreas do conhecimento. Ao longo da história, filósofos, cientistas sociais e pensadores de diferentes campos têm tentado entender o que define o ser humano e como ele se relaciona com o mundo ao seu redor. No entanto, a ideia de uma natureza humana fixa e imutável tem sido cada vez mais questionada, à medida que novas descobertas e teorias sugerem que o ser humano é, na verdade, um produto de influências dinâmicas e em constante transformação.
Neste texto, propomos uma reflexão profunda sobre a ausência de uma essência humana permanente, explorando como essa perspectiva impacta nossa compreensão da identidade, da ética, e da organização social. A partir da intersecção entre biologia, cultura e história, buscamos compreender o ser humano como um ser moldado por um conjunto de fatores que, longe de estarem predeterminados, são flexíveis e suscetíveis a mudanças. Assim, desafiamos a visão tradicional de uma natureza humana unificada, propondo uma abordagem que reconhece a pluralidade e a plasticidade inerentes à condição humana.
A discussão que se segue visa não apenas a desconstrução de conceitos arraigados sobre o que significa ser humano, mas também a celebração da capacidade única de adaptação e reinvenção que caracteriza nossa espécie. Ao afastar a ideia de uma essência fixa, abrimos caminho para uma compreensão mais rica e diversificada da experiência humana, onde a identidade e a sociedade são vistas como construções complexas, moldadas por um processo contínuo de interação e evolução.
- A Não-Existência de uma Natureza Humana: Um Ensaio Sobre a Complexidade do Homo Sapiens
A ideia de uma “natureza humana” tem sido um ponto de discussão central na filosofia, psicologia e antropologia ao longo da história. Filósofos como Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau apresentaram visões opostas sobre o que constitui essa natureza, mas ambos compartilharam a suposição de que ela existe de forma essencial e imutável. Neste ensaio, porém, proponho a hipótese de que a própria ideia de uma natureza humana fixa é uma ilusão. Ao invés de nos ancorarmos em uma essência universal, deveríamos considerar o ser humano como um produto dinâmico e multifacetado de influências biológicas, socioculturais e históricas, sem uma essência unificadora e invariável.
Desde o advento da ciência moderna, especialmente após as descobertas em biologia evolutiva e neurociência, ficou claro que os seres humanos compartilham certas características com outros animais. No entanto, a complexidade do comportamento humano e a diversidade cultural nos impedem de reduzir a “natureza humana” a um conjunto de instintos ou predisposições biológicas. Embora os genes influenciem aspectos da nossa fisiologia e algumas tendências comportamentais, o impacto das experiências individuais e das construções sociais molda profundamente quem somos.
Um dos principais argumentos contra a ideia de uma natureza humana fixa é a observação da variabilidade cultural. Culturas ao redor do mundo exibem uma vasta gama de valores, crenças, práticas e normas sociais, muitas vezes em contradição umas com as outras. Se houvesse uma natureza humana universal, esperaríamos encontrar mais uniformidade nas práticas culturais, mas isso não é o que observamos. Essa diversidade sugere que a “natureza” do ser humano é altamente maleável e depende, em grande medida, do contexto cultural em que um indivíduo está inserido.
Além disso, a história humana revela mudanças significativas nas formas como os seres humanos se organizam socialmente, se relacionam com o meio ambiente e expressam sua criatividade. A ideia de progresso, em si, implica que os seres humanos têm a capacidade de transcender suas condições passadas, reinventando-se constantemente. A Revolução Industrial, o Iluminismo, a era digital—todos esses períodos representam momentos em que a humanidade redefiniu sua existência, mostrando que não somos constrangidos por uma natureza fixa.
A capacidade humana de adaptação e transformação é outro argumento forte contra a ideia de uma natureza humana imutável. Em situações extremas, como desastres naturais, guerras ou mudanças climáticas, os seres humanos demonstram uma incrível capacidade de ajuste, que vai desde mudanças comportamentais até inovações tecnológicas e organizacionais. Essa plasticidade adaptativa contrasta com a ideia de uma natureza humana rígida, sugerindo que, em vez de sermos guiados por uma essência interna fixa, somos moldados por circunstâncias externas em constante mudança.
A própria noção de individualidade é uma construção social que desafia a ideia de uma natureza humana unificada. Se cada ser humano é único, com sua própria identidade, história e conjunto de experiências, como podemos falar de uma natureza humana que abrange todos? Essa singularidade se estende não apenas aos indivíduos, mas também às comunidades, nações e culturas. O que é considerado “natural” em uma sociedade pode ser visto como estranho ou antinatural em outra, reforçando a ideia de que a natureza humana é um conceito fluido, não uma realidade objetiva.
No campo da psicologia, teorias contemporâneas também questionam a noção de uma natureza humana universal. A psicologia evolutiva, por exemplo, sugere que muitos dos nossos comportamentos são respostas adaptativas a condições ambientais específicas, o que implica que, se as condições mudarem, nossos comportamentos e, por extensão, nossa “natureza” também mudam. A psicologia cultural, por outro lado, enfatiza a influência das normas e valores sociais na formação da mente humana, argumentando que o que consideramos “natural” é, na verdade, uma construção cultural.
A biologia moderna também contribui para essa visão ao destacar a complexidade do genoma humano. A expressão gênica, que determina como nossos genes se manifestam, é influenciada por uma miríade de fatores ambientais, o que significa que o mesmo conjunto de genes pode produzir diferentes resultados dependendo do contexto. Isso desafia a noção de que os genes, por si só, determinam uma natureza humana fixa. Em vez disso, somos resultado de uma interação complexa entre nossos genes e o ambiente, uma dança contínua entre o biológico e o cultural.
A filosofia da mente, especialmente as teorias do construtivismo, oferece outra perspectiva interessante. Segundo essa linha de pensamento, nossa compreensão do mundo e de nós mesmos é mediada por construções mentais que desenvolvemos ao longo da vida. Essas construções são influenciadas por fatores como linguagem, cultura e experiências pessoais. Portanto, o que consideramos como “natureza humana” é, em grande parte, um produto dessas construções, e não uma realidade objetiva e imutável.
No campo da ética, a rejeição de uma natureza humana fixa tem implicações profundas. Se não há uma natureza humana essencial, então as normas e valores que guiamos nossas ações também não são absolutas, mas contextuais e mutáveis. Isso nos leva a uma visão relativista da moralidade, onde o que é considerado “bom” ou “mau” depende das circunstâncias e das culturas, e não de uma natureza humana universal que ditaria o comportamento moral adequado.
A noção de liberdade também é impactada pela rejeição de uma natureza humana fixa. Se nossa natureza não é predeterminada, então somos mais livres para criar nossas próprias identidades e destinos. Isso reforça a ideia existencialista de que “a existência precede a essência”, ou seja, somos responsáveis por criar nosso próprio sentido de vida em um mundo que não nos dá um sentido pré-determinado. A liberdade, então, não é apenas uma condição, mas uma responsabilidade de cada indivíduo.
A ciência social contemporânea, ao investigar fenômenos como globalização e hibridização cultural, também apoia a ideia de que a natureza humana é moldável e adaptável. À medida que as culturas interagem e se transformam, os seres humanos demonstram uma capacidade impressionante de adotar novas práticas, valores e identidades, sem se perderem em uma essência fixa. Isso sugere que, em vez de sermos guiados por uma natureza interna, somos constantemente recriados através de nossas interações com o mundo ao nosso redor.
Um exemplo contemporâneo dessa capacidade de adaptação é a forma como os seres humanos estão lidando com as mudanças climáticas. Em vez de seguir um comportamento determinado por uma suposta natureza fixa, estamos inventando novas formas de coexistir com o planeta, desenvolvendo tecnologias sustentáveis, repensando nossos modos de vida e até mesmo reavaliando nossos sistemas econômicos. Essa resposta à crise ambiental mostra que nossa “natureza” é, na verdade, uma habilidade de transformação constante.
A teoria da complexidade, que tem sido aplicada a tudo, desde a biologia até a economia, oferece outra maneira de entender o ser humano. Em vez de ver os seres humanos como dotados de uma natureza fixa, podemos vê-los como sistemas complexos, caracterizados por emergências e comportamentos imprevisíveis. Nesse sentido, o que consideramos “natureza humana” é apenas uma das muitas manifestações possíveis de um sistema dinâmico e em constante evolução.
A história das ideias filosóficas, que registra uma sucessão de paradigmas em constante mudança, também corrobora essa visão. As concepções de humanidade e natureza humana variaram amplamente ao longo dos séculos, refletindo as condições históricas, sociais e intelectuais de cada época. Isso sugere que a “natureza humana” não é um dado imutável, mas uma construção histórica que evolui com o tempo.
Além disso, o surgimento de tecnologias que desafiam as fronteiras entre o biológico e o artificial, como a inteligência artificial e a biotecnologia, coloca em questão a própria ideia de “humano”. À medida que as fronteiras entre o natural e o artificial se tornam mais borradas, a noção de uma natureza humana fixa se torna cada vez mais obsoleta. Em vez de sermos definidos por uma natureza imutável, somos agentes ativos na criação de novas formas de existência.
A neurociência também desafia a ideia de uma natureza humana fixa ao mostrar que o cérebro humano é altamente plástico e capaz de mudar ao longo da vida. Nossas redes neurais são constantemente remodeladas por nossas experiências, sugerindo que, mesmo em um nível fundamental, não há uma “natureza” fixa que determine quem somos. Em vez disso, somos moldados por uma interação contínua entre o cérebro e o ambiente.
Por fim, a arte e a literatura têm desempenhado um papel crucial na exploração da condição humana, frequentemente desafiando as noções fixas de natureza humana. Obras de ficção, poesia e drama têm explorado as muitas facetas da experiência humana, desde a tragédia até a comédia, revelando a profundidade e a diversidade da condição humana. Essas representações artísticas sugerem que, em vez de sermos definidos por uma essência única, somos uma tapeçaria de experiências, emoções e pensamentos.
Em resumo, a ideia de uma natureza humana fixa é uma construção que não resiste à complexidade e variabilidade da experiência humana. O ser humano é um produto dinâmico de influências biológicas, socioculturais e históricas, sem uma essência imutável que possa ser identificada como “natureza humana”. Em vez disso, devemos aceitar a plasticidade e a capacidade de transformação constante que caracterizam a nossa espécie, reconhecendo que a verdadeira essência do ser humano é a ausência de uma essência fixa. Essa visão não nos diminui; ao contrário, ela celebra a nossa capacidade infinita de nos recriarmos e nos adaptarmos às novas circunstâncias que surgem ao longo do tempo.
- O Humano em Sociedade: Uma Reflexão Sobre a Ausência de Essência e a Construção Social do Ser
A compreensão do humano em sociedade exige uma abordagem complexa e multifacetada, especialmente se considerarmos a premissa de que não existe uma natureza humana fixa. Partindo da tese apresentada anteriormente, de que a noção de uma essência humana é uma construção histórica e cultural, podemos explorar como essa construção molda as relações sociais, as estruturas de poder e as formas de organização política. A ausência de uma natureza humana imutável não implica o caos ou a anarquia, mas sim a possibilidade de uma reorganização contínua da sociedade com base nas condições materiais e nas dinâmicas históricas que afetam a existência humana.
No campo da Ciência Política, a ausência de uma natureza humana fixa implica que as formas de governo e as estruturas políticas não são predeterminadas por uma essência humana inalterável. Em vez disso, são resultados históricos de lutas de poder, conflitos de classe e disputas ideológicas. Essa perspectiva nos leva a questionar as teorias clássicas de contratualismo, que presumem um estado natural do ser humano, como nas obras de Hobbes, Locke e Rousseau. Se não há uma essência humana universal, então o “contrato social” não é uma realização de uma natureza humana preexistente, mas uma construção social que responde às necessidades e interesses de grupos específicos em momentos históricos particulares.
A Sociologia Política apoia essa visão ao analisar como as sociedades são estruturadas não em torno de uma essência humana, mas sim em torno de relações de poder e dominação. Max Weber, por exemplo, descreveu a dominação legítima como um fenômeno que depende de crenças compartilhadas e da aceitação social de certas normas e valores, e não de uma natureza humana essencial. Isso sugere que a autoridade e a obediência não são naturais, mas construídas socialmente através de processos de legitimação que variam entre culturas e períodos históricos.
No âmbito da Antropologia Política, a ausência de uma natureza humana fixa nos convida a examinar a diversidade de formas de organização social encontradas em diferentes culturas. Claude Lévi-Strauss e outros antropólogos estruturalistas argumentam que as estruturas sociais são baseadas em códigos culturais e simbólicos específicos, que não refletem uma essência humana, mas sim as particularidades das interações humanas em contextos específicos. Essas estruturas são, portanto, maleáveis e suscetíveis a mudanças em resposta a novas condições materiais e simbólicas.
A Filosofia Política, especialmente através do materialismo dialético, fornece uma base teórica robusta para entender o ser humano em sociedade sem recorrer à ideia de uma natureza fixa. Karl Marx argumentou que a “essência humana” não é algo dado, mas algo que emerge das relações sociais e econômicas em que os indivíduos estão inseridos. Segundo Marx, “o ser social determina a consciência”, o que implica que o que consideramos “humano” é moldado pelas condições materiais de produção e pelas relações de classe que dominam uma determinada época. Assim, a sociedade é um reflexo das relações de produção, e as mudanças nessas relações podem transformar profundamente o que significa ser humano.
A perspectiva marxista nos leva a ver a sociedade como um campo de luta constante, onde as classes sociais tentam impor suas visões de mundo e suas concepções de humanidade. As ideologias dominantes, que muitas vezes se apresentam como reflexões da “natureza humana”, são na verdade ferramentas de dominação utilizadas para perpetuar o status quo. A crítica à ideologia, como elaborada por pensadores da Teoria Crítica como Adorno, Horkheimer e Marcuse, revela como essas ideologias mascaram as verdadeiras relações de poder e ocultam a natureza histórica e mutável das relações sociais.
O materialismo dialético nos ensina que a história humana é uma história de lutas de classes, onde as condições materiais e as forças produtivas moldam as relações sociais e, por extensão, as concepções de humanidade. A dialética marxista vê a sociedade como um processo em constante transformação, onde as contradições internas das formas de produção levam a crises e, eventualmente, à mudança revolucionária. Dessa forma, o humano em sociedade não é um ser passivo, mas um agente histórico que participa ativamente na construção e reconstrução das formas sociais.
No campo do Direito Crítico, a ausência de uma natureza humana essencial implica que as leis e os sistemas jurídicos não são reflexos de uma moralidade universal, mas sim construções sociais que servem aos interesses das classes dominantes. Os críticos do direito, como os teóricos da Critical Legal Studies (CLS), argumentam que o direito é uma forma de poder que institucionaliza as desigualdades sociais e legitima a dominação de classe. Nesse sentido, as leis não são neutras ou objetivas, mas sim expressões das relações de poder que prevalecem em uma sociedade específica.
As Relações Internacionais, quando vistas sob uma perspectiva marxista, também refletem a ausência de uma natureza humana fixa. As relações entre Estados e nações são moldadas não por uma suposta essência humana de competição ou cooperação, mas pelas condições materiais e pela luta pelo controle dos recursos e dos meios de produção. O imperialismo, como analisado por Lenin e outros marxistas, não é uma consequência inevitável da natureza humana, mas uma fase histórica do capitalismo, onde as potências econômicas buscam expandir seu domínio através da exploração dos povos e das nações menos desenvolvidas.
Essa perspectiva materialista e histórica desafia as concepções tradicionais de soberania e legitimidade nas Relações Internacionais. Ao invés de ver os Estados como entidades naturais com direitos inalienáveis, o marxismo os analisa como produtos de processos históricos específicos, marcados por conflitos de classe e dominação econômica. A soberania, portanto, não é uma expressão da natureza humana, mas uma construção política que serve aos interesses das classes dominantes, tanto a nível nacional quanto internacional.
O Direito Internacional, sob essa ótica crítica, não é uma expressão da justiça universal, mas uma ferramenta utilizada pelas potências hegemônicas para consolidar seu domínio global. As normas e instituições internacionais são moldadas pelos interesses das grandes potências e refletem as desigualdades do sistema capitalista global. Assim, o Direito Internacional, longe de ser uma expressão da “natureza humana”, é uma arena de luta onde os diferentes interesses de classe e poder são negociados e impostos.
A rejeição da ideia de uma natureza humana fixa também tem implicações profundas para a ética e a moralidade. Se não há uma essência humana universal que determine o que é certo ou errado, então as normas morais são construções sociais que refletem as relações de poder e as condições materiais de uma sociedade. A moralidade, portanto, não é uma expressão de uma natureza humana intrínseca, mas uma ferramenta ideológica utilizada para justificar e perpetuar as desigualdades sociais e as relações de dominação.
As teorias marxistas da moralidade argumentam que as normas éticas devem ser analisadas em termos de suas funções sociais e de classe. O que é considerado moral em uma sociedade pode ser imoral em outra, dependendo das condições materiais e das relações de poder. Por exemplo, a acumulação de riqueza pode ser vista como uma virtude em uma sociedade capitalista, mas como um vício em uma sociedade comunista. Isso mostra que a moralidade é, em última análise, uma construção histórica que muda com as condições materiais e as relações de produção.
No contexto das Relações Internacionais, essa perspectiva crítica nos leva a questionar as normas e valores que regem o sistema internacional. Termos como “democracia”, “direitos humanos” e “liberdade” são frequentemente utilizados como justificativas para intervenções e políticas de dominação, mas na verdade refletem os interesses das potências hegemônicas. Assim, as normas internacionais não são expressões de uma moralidade universal, mas construções ideológicas que servem para legitimar a ordem global existente.
A rejeição de uma natureza humana fixa também implica uma visão mais dinâmica e dialética da sociedade. Em vez de ver as sociedades como entidades estáticas ou como reflexos de uma essência humana, devemos entendê-las como processos históricos em constante transformação. As mudanças nas relações de produção, nas forças produtivas e nas condições materiais levam a mudanças nas formas sociais, nas ideologias e nas concepções de humanidade. A sociedade, portanto, não é uma entidade fixa, mas um campo de luta onde diferentes forças sociais competem para moldar o futuro.
Em conclusão, a ideia de uma natureza humana fixa é uma construção ideológica que serve para justificar e perpetuar as relações de poder existentes. Ao rejeitar essa noção, podemos adotar uma perspectiva mais crítica e histórica sobre o ser humano em sociedade. Isso nos permite ver as estruturas sociais, as normas morais e as instituições políticas como produtos históricos e dinâmicos, moldados por lutas de classe e conflitos de poder. A ausência de uma natureza humana imutável não é uma deficiência, mas uma oportunidade de entender a sociedade como um processo em constante evolução, onde os seres humanos têm a capacidade de transformar e ser transformados por suas condições materiais e sociais.
- A Democracia Popular Irrestrita: Conclusões Sobre a Não Natureza Humana e o Humano em Sociedade
A noção de democracia popular irrestrita emerge como uma resposta revolucionária às discussões sobre a não existência de uma natureza humana fixa e sobre a construção social do ser humano. A partir dos argumentos estabelecidos anteriormente, onde o ser humano não é visto como portador de uma essência imutável e a sociedade como um campo dinâmico de relações de poder, a democracia popular irrestrita representa a culminação da luta pela emancipação humana. Esta forma de organização social rejeita a propriedade privada dos meios de produção, a divisão de classes e a perpetuação do Estado burguês, propondo uma sociedade conduzida diretamente pelos trabalhadores, onde a verdadeira democracia, como expressão da vontade popular, se realiza plenamente.
Na tradição marxista, a crítica à propriedade privada é central para a compreensão das desigualdades estruturais e das relações de dominação. A propriedade dos meios de produção, nas mãos de uma minoria burguesa, é a base material que sustenta a divisão de classes e, consequentemente, a exploração dos trabalhadores. A democracia liberal-burguesa, frequentemente exaltada como o ápice da realização democrática, é, na realidade, uma forma de dominação disfarçada, onde o poder permanece nas mãos da classe dominante. Essa forma de democracia não é apenas limitada, mas estruturalmente incapaz de atender aos interesses da maioria trabalhadora.
A democracia popular irrestrita, por outro lado, visa a abolição dessas condições de exploração e alienação. Ao eliminar a propriedade privada dos meios de produção, ela destrói a base material que sustenta a divisão de classes. Sem classes, não há necessidade de um Estado burguês que perpetue as relações de dominação; em vez disso, o Estado é substituído por uma organização política que emana diretamente dos trabalhadores. Essa transição não é apenas um rearranjo institucional, mas uma transformação radical das relações sociais e de poder, onde a democracia deixa de ser uma forma de governo para se tornar um modo de vida.
A ausência de uma natureza humana fixa, como argumentado nos ensaios anteriores, abre caminho para essa transformação revolucionária. Se não há uma essência humana que determine a inevitabilidade da competição, da hierarquia ou da desigualdade, então a organização social é, em última análise, uma construção histórica. Isso significa que as sociedades podem ser organizadas de maneiras que promovam a igualdade, a solidariedade e a cooperação, ao invés da exploração e da opressão. A democracia popular irrestrita é a expressão máxima dessa possibilidade, onde as relações sociais são redefinidas de forma a permitir a realização plena do potencial humano.
O papel do Estado na democracia liberal-burguesa é, essencialmente, o de um instrumento de dominação de classe. Mesmo nas formas mais avançadas de democracia liberal, o Estado serve para proteger os interesses da classe dominante, garantindo a continuidade da exploração capitalista. A suposta neutralidade do Estado é uma ilusão, pois suas instituições são projetadas para perpetuar a desigualdade e a injustiça. A democracia popular irrestrita, ao contrário, exige a destruição do Estado burguês e a criação de novas formas de organização política, onde o poder é exercido diretamente pelos trabalhadores, sem mediação ou representação que dilua sua vontade.
A abolição da propriedade privada dos meios de produção é, portanto, um passo necessário para a realização da democracia popular irrestrita. Sem a propriedade privada, as bases materiais da divisão de classes são eliminadas, permitindo a construção de uma sociedade sem exploração. O trabalho, em vez de ser uma mercadoria a ser vendida no mercado, se torna uma atividade coletiva e livremente associada, onde a produção é direcionada para o bem comum, e não para o lucro de uma minoria. Essa reorganização da produção cria as condições para uma verdadeira igualdade social, onde todos têm acesso aos recursos e aos frutos do trabalho coletivo.
A transição para a democracia popular irrestrita requer uma revolução, não apenas política, mas também social e cultural. A ideologia dominante, que naturaliza a exploração e a desigualdade, deve ser combatida e substituída por uma consciência de classe que reconheça a possibilidade de uma sociedade sem classes. A educação, a cultura e os meios de comunicação devem ser democratizados e orientados para a construção dessa nova consciência. A luta pela democracia popular irrestrita é, assim, também uma luta ideológica, onde as ideias revolucionárias devem se afirmar contra a hegemonia burguesa.
Nesse processo, o papel dos trabalhadores organizados é fundamental. A classe trabalhadora, como o sujeito revolucionário, tem o poder de derrubar o Estado burguês e de construir uma nova sociedade. A organização dos trabalhadores em sindicatos, conselhos e outras formas de poder popular é a base sobre a qual a democracia popular irrestrita pode ser construída. Essas organizações devem ser autônomas e democráticas, permitindo a participação ativa de todos os trabalhadores na tomada de decisões e na gestão da produção e da sociedade como um todo.
A democracia popular irrestrita não é uma utopia distante, mas uma possibilidade concreta que emerge das contradições do capitalismo. À medida que o sistema capitalista entra em crise, com a crescente concentração de riqueza, a precarização do trabalho e a destruição do meio ambiente, as condições para a revolução se tornam mais evidentes. A insustentabilidade do capitalismo gera as condições materiais para sua superação, e a democracia popular irrestrita se apresenta como a alternativa viável para evitar o colapso social e ecológico.
A realização da democracia popular irrestrita também implica uma redefinição das relações internacionais. O sistema global capitalista, com suas desigualdades e assimetrias, deve ser substituído por uma ordem internacional baseada na cooperação, na solidariedade e na igualdade entre os povos. A eliminação do imperialismo e das relações de dominação entre nações é um pré-requisito para a construção de uma verdadeira democracia global, onde as decisões que afetam a humanidade sejam tomadas coletivamente, de forma democrática e justa.
No campo do Direito Crítico, a democracia popular irrestrita representa a superação das leis burguesas que protegem a propriedade privada e a exploração. Em uma sociedade sem classes, o direito não é mais um instrumento de dominação, mas uma ferramenta para garantir a igualdade e a justiça social. As normas jurídicas na democracia popular irrestrita são elaboradas e aplicadas pelos próprios trabalhadores, de forma transparente e participativa, assegurando que o direito reflita os interesses da maioria e não de uma elite privilegiada.
A construção da democracia popular irrestrita exige também uma transformação nas práticas econômicas e na distribuição da riqueza. O planejamento econômico, realizado de forma democrática pelos trabalhadores, deve substituir o mercado capitalista, garantindo que os recursos sejam utilizados de forma racional e sustentável, em benefício de toda a sociedade. A economia planejada permite a erradicação da pobreza e da desigualdade, assegurando que todos tenham acesso aos bens e serviços necessários para uma vida digna.
A democracia popular irrestrita também promove uma nova relação entre o ser humano e a natureza. O capitalismo, com sua lógica de acumulação e exploração, tem devastado o meio ambiente, colocando em risco a própria sobrevivência da humanidade. Em uma sociedade sem classes, onde a produção é orientada para o bem comum e não para o lucro, é possível estabelecer uma relação harmoniosa com a natureza, baseada na sustentabilidade e no respeito aos ecossistemas.
A democracia popular irrestrita, portanto, não é apenas uma forma de organização política, mas uma transformação total da sociedade, das relações sociais e da relação do ser humano com a natureza. Ela representa a possibilidade de realizar plenamente o potencial humano, em uma sociedade onde a liberdade, a igualdade e a solidariedade são os princípios fundamentais. A ausência de uma natureza humana fixa, longe de ser um obstáculo, é a base sobre a qual essa nova sociedade pode ser construída, permitindo a contínua adaptação e transformação em direção a uma vida melhor para todos.
Em conclusão, a democracia popular irrestrita é a resposta revolucionária às discussões sobre a não natureza humana e o ser humano em sociedade. Ela rejeita a exploração e a opressão como inevitáveis e propõe uma sociedade onde o poder é exercido diretamente pelos trabalhadores, sem mediação ou representação que dilua sua vontade. Essa forma de organização social é a realização máxima do potencial humano, permitindo a construção de uma sociedade verdadeiramente livre e igualitária. A luta pela democracia popular irrestrita é, portanto, a luta pela emancipação humana, onde o ser humano deixa de ser objeto de exploração para se tornar sujeito de sua própria história.
Considerações Finais
Ao longo deste estudo, exploramos de maneira aprofundada a complexa relação entre a ausência de uma essência humana fixa, a construção social do ser humano e a proposta de uma democracia popular irrestrita como forma de emancipação social. Na introdução, estabelecemos a premissa de que o ser humano não possui uma natureza imutável, mas é sim um produto dinâmico influenciado por fatores biológicos, culturais e históricos. Essa visão desafiou as concepções tradicionais e nos conduziu a uma análise multifacetada dos aspectos que definem a humanidade em sua diversidade e plasticidade.
Na primeira parte, “A Não-Existência de uma Natureza Humana: Um Ensaio Sobre a Complexidade do Homo Sapiens”, demonstramos que a noção de uma essência humana fixa é uma ilusão sustentada por uma visão reducionista. Argumentamos que a diversidade cultural, a adaptabilidade histórica e as descobertas das ciências contemporâneas revelam que o ser humano é um ser em constante transformação, moldado por interações complexas entre genética e ambiente. Essa perspectiva destaca a individualidade e a singularidade de cada ser humano, reforçando a ideia de que não há uma natureza universal que nos define.
Na segunda parte, “O Humano em Sociedade: Uma Reflexão Sobre a Ausência de Essência e a Construção Social do Ser”, aprofundamos a compreensão de como a ausência de uma natureza humana fixa influencia a organização social e as relações de poder. Através de uma análise marxista, evidenciamos que as estruturas sociais, políticas e jurídicas são construções históricas e ideológicas que refletem as dinâmicas de poder e as lutas de classes. Essa abordagem revela que as normas e instituições não são expressões de uma essência humana universal, mas sim ferramentas de dominação e controle social, moldadas por interesses específicos das classes dominantes.
Na terceira parte, “A Democracia Popular Irrestrita: Conclusões Sobre a Não Natureza Humana e o Humano em Sociedade”, apresentamos a democracia popular irrestrita como a resposta revolucionária à ausência de uma natureza humana fixa. Propusemos que, ao rejeitar as estruturas de propriedade privada e as divisões de classes, essa forma de democracia permite a construção de uma sociedade verdadeiramente igualitária e sustentável, onde o poder é exercido diretamente pelos trabalhadores. A democracia popular irrestrita não apenas elimina as bases materiais da exploração, mas também promove uma relação harmoniosa com a natureza e uma economia planejada democraticamente, orientada para o bem comum.
Integrando essas três partes, constatamos que a rejeição de uma essência humana fixa abre espaço para uma visão mais flexível e dinâmica da humanidade, permitindo a transformação contínua das estruturas sociais e a realização plena do potencial humano. A nossa análise mostrou que a adaptação e a reinvenção são características intrínsecas à condição humana, e que a construção de uma sociedade baseada na democracia popular irrestrita representa uma oportunidade concreta para superar as desigualdades e as injustiças impostas pelas estruturas capitalistas.
As implicações dessa perspectiva são vastas e profundas. Primeiramente, nos leva a repensar as concepções tradicionais sobre a natureza humana e a reconhecer a importância das condições materiais e das relações sociais na formação da identidade e das ações humanas. Em segundo lugar, enfatiza a necessidade de lutar por formas de organização social que promovam a igualdade, a solidariedade e a sustentabilidade, rejeitando as estruturas de dominação que perpetuam a exploração e a desigualdade. Por fim, sugere que a emancipação humana depende da construção coletiva de novas formas de democracia, onde a participação ativa e direta dos trabalhadores é fundamental para a transformação social.
Concluímos, portanto, que a verdadeira essência do ser humano reside na sua capacidade de adaptação e transformação, e não em uma natureza fixa e imutável. A democracia popular irrestrita emerge como a realização máxima dessa potencialidade humana, oferecendo um caminho para uma sociedade mais justa, igualitária e sustentável. Essa visão não apenas desafia as noções tradicionais de poder e organização social, mas também celebra a diversidade e a criatividade que caracterizam a nossa espécie. Assim, o futuro da humanidade se apresenta como uma tela em branco, pronta para ser moldada pelas nossas escolhas e ações coletivas, refletindo a pluralidade e a resiliência que nos definem.
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Wallace Armani é doutorando em Sociologia Política (IUPERJ); Mestre em Sociologia Política (IUPERJ) com a dissertação Impeachment: Sinal de Crise da Democracia; Cursou o primeiro ano de mestrado em Linguística Aplicada (UNITAU).

Todo ser humano é um cipoal de contradições… um projeto de si mesmo, eternamente inacabado… um desafio à Natureza… um sistema em permanente desequilíbrio. E porque não, pode-se dizer o mesmo da sociedade como um todo? Mas, diferente das pessoas, que terão todas um fim inevitável, uma sociedade pode prosperar indefinidamente, desde que continue sempre evoluindo, seguindo em frente.
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