Por Wallace Armani
A crítica burguesa ao Estado burguês, quando analisada a partir das lentes do liberalismo clássico e do neoliberalismo, surge como uma tentativa de conciliar uma liberdade econômica ampla com um mínimo de interferência estatal, mas revela profundas contradições. O Estado, neste contexto, é simultaneamente visto como necessário e como um empecilho para a plena realização das liberdades individuais. No entanto, quando essa crítica é conduzida ao extremo, culminando no ultra-liberalismo e no anarco-capitalismo, emergem falácias profundas que, paradoxalmente, corroboram a necessidade de uma crítica mais radical, que transcenda os limites da burguesia e conduza a uma análise marxista da estrutura social.
- Liberalismo e o Contrato Social
O liberalismo clássico, conforme delineado por John Locke, Adam Smith e Montesquieu, baseia-se na noção de que o Estado é uma construção necessária para proteger a propriedade privada e garantir as liberdades individuais. O contrato social surge como a justificativa moral para o Estado burguês, no qual os cidadãos, de forma voluntária, cedem parte de sua liberdade em troca de segurança e preservação de seus direitos naturais. No entanto, tal concepção embute uma contradição fundamental: ao mesmo tempo que se defende a limitação do poder estatal, reconhece-se que a existência de um Estado forte é imprescindível para manter a ordem social e a proteção das liberdades burguesas.
A crítica burguesa ao Estado burguês, dentro do liberalismo, identifica o poder estatal como uma ameaça à liberdade individual. À medida que o Estado se expande, invadindo esferas da vida social e econômica, ele restringe a liberdade que, paradoxalmente, deveria garantir. Thomas Paine, um dos principais teóricos do liberalismo revolucionário, argumentava que “o governo, mesmo em seu melhor estado, é um mal necessário; em seu pior estado, um mal intolerável.” A visão liberal, portanto, reconhece o papel do Estado, mas com desconforto, o que prepara o terreno para críticas mais severas.
- Neoliberalismo: O Estado como Gestor de Mercado
O neoliberalismo, tal como formulado por Friedrich Hayek e Milton Friedman, vai além da crítica liberal clássica ao papel do Estado. Ele propõe uma reorganização das funções estatais, onde o mercado é o principal regulador da vida social, e o Estado assume a função de facilitador das condições necessárias para o livre mercado, sem interferir diretamente nos mecanismos econômicos. No entanto, essa abordagem também contém uma contradição fundamental: ao mesmo tempo que reduz o papel do Estado na vida econômica, requer um Estado forte e coercitivo para proteger os direitos de propriedade, manter a ordem social e assegurar o funcionamento “adequado” dos mercados. A falácia da autorregulação do mercado, um dos pilares centrais do neoliberalismo, revela-se em momentos de crises, onde o Estado inevitavelmente é chamado a intervir para salvar o próprio sistema capitalista, como ocorreu na crise financeira de 2008.
Aqui, a crítica burguesa ao Estado burguês assume uma nova forma. O neoliberalismo vê o Estado não como o inimigo a ser combatido, mas como uma ferramenta que deve ser moldada de acordo com os interesses do capital. A redução das regulações econômicas, privatizações e desmantelamento dos serviços públicos são defendidos como mecanismos para aumentar a eficiência e a liberdade individual. Entretanto, a concentração de riqueza e poder nas mãos de poucos, resultado dessas políticas, acaba por deslegitimar a própria democracia liberal. O Estado neoliberal, longe de ser um defensor das liberdades, acaba por reforçar as hierarquias sociais e a desigualdade.
- Ultra-Liberalismo e a Ilusão da Liberdade Plena
A crítica ultra-liberal ao Estado burguês leva as ideias neoliberais a um novo extremo. Influenciados por pensadores como Ayn Rand e Robert Nozick, os ultra-liberais argumentam que qualquer forma de Estado é uma imposição coercitiva e uma violação dos direitos naturais. Para eles, a única função legítima do Estado é a proteção da propriedade privada e da liberdade individual, e mesmo essas funções devem ser minimizadas. A partir dessa perspectiva, qualquer forma de redistribuição de riqueza, regulação ou intervenção estatal é vista como uma violação dos direitos individuais e uma forma de escravidão moderna.
O ultra-liberalismo, entretanto, apresenta uma visão utópica e ingênua da sociedade. A crença de que indivíduos podem prosperar em um mercado completamente livre e não regulado desconsidera a realidade das desigualdades estruturais e das dinâmicas de poder dentro do capitalismo. Além disso, ignora a interdependência social e econômica que define a vida em sociedade. A ideia de que a plena liberdade econômica levará a uma sociedade justa e equitativa não apenas falha em reconhecer as limitações impostas pela acumulação de capital, mas também legitima a exploração dos mais vulneráveis. No final das contas, essa visão não oferece uma crítica substantiva ao Estado burguês, mas apenas propõe uma forma mais brutal de dominação capitalista.
- Anarco-Capitalismo: A Falácia da Ausência Estatal
O anarco-capitalismo, conforme articulado por Murray Rothbard, vai além do ultra-liberalismo ao propor a total abolição do Estado em favor de uma sociedade onde todas as relações sejam reguladas pelo mercado. Para os anarco-capitalistas, o Estado não é apenas um mal necessário, mas um mal absoluto que deve ser completamente desmantelado. Nesta utopia de mercado, todas as funções estatais seriam privatizadas, e as interações humanas seriam mediadas por contratos voluntários.
Contudo, o anarco-capitalismo revela-se como uma fantasia teórica. Ao propor a privatização de todas as funções do Estado, ele não elimina as hierarquias de poder, mas as intensifica. A privatização da justiça, da segurança e da infraestrutura pública resultaria em uma sociedade profundamente desigual, onde aqueles com maior poder econômico teriam o monopólio sobre os recursos essenciais à vida. O sonho anarco-capitalista de uma sociedade sem Estado acaba por reproduzir, de maneira ainda mais aguda, as desigualdades e injustiças do capitalismo contemporâneo.
- O Estado Burguês: Um Instrumento de Dominação de Classe
Ao analisarmos as críticas burguesas ao Estado burguês, é possível perceber que, longe de propor uma solução para os problemas da modernidade, elas acabam por reforçar as contradições centrais do capitalismo. O Estado burguês, na verdade, não é uma entidade neutra, mas um instrumento de dominação de classe, conforme argumentado por Karl Marx. Ele existe para proteger os interesses da classe capitalista, garantir a reprodução das relações de produção e manter a estabilidade do sistema econômico.
Tanto o liberalismo quanto o neoliberalismo, assim como suas variantes mais extremas no ultra-liberalismo e anarco-capitalismo, partem da premissa de que o mercado, se deixado a si mesmo, seria capaz de resolver as contradições sociais. No entanto, o mercado, como uma construção social, está intrinsecamente ligado à exploração da força de trabalho e à acumulação de capital. O Estado burguês, por sua vez, não é um árbitro imparcial, mas um facilitador dessas dinâmicas de exploração.
- A Superação do Estado Burguês: O Caminho Marxista
Diante das falácias embutidas nas críticas burguesas ao Estado, a única solução realista para as contradições do capitalismo é a superação do próprio Estado burguês e da economia de mercado. Conforme argumenta Marx, o Estado é uma forma de dominação de classe, e sua abolição só será possível através da emancipação da classe trabalhadora. Apenas com a construção de uma sociedade socialista, baseada na propriedade coletiva dos meios de produção e na organização democrática da vida social, será possível transcender as desigualdades e injustiças inerentes ao capitalismo.
A crítica burguesa ao Estado burguês, portanto, revela-se incapaz de oferecer uma solução verdadeira. Somente uma crítica marxista, que reconheça o papel central do Estado na reprodução das relações de classe, pode apontar para um caminho de emancipação. O Estado burguês é, em última análise, um obstáculo à verdadeira liberdade e igualdade, e sua superação exige uma revolução social que coloque o poder nas mãos da classe trabalhadora.
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