O livre mercado decidiu que os semáforos eram um desperdício de dinheiro. Agora, atravessar a rua era um esporte radical patrocinado por empresas de seguro de vida. Em Ancapistão, a utopia anarco-capitalista definitiva, tudo tinha um preço – até mesmo a liberdade.
No meio desse paraíso corporativo, vivia Noah, um garoto de 16 anos que sempre acreditou que a mão invisível do mercado era um massagista eficiente. Seu pai pagava pelo “pacote premium de cidadania”, que incluía direitos básicos como respirar ar não poluído e acesso a três tentativas de atendimento médico por ano. Sua mãe trabalhava como revisora de contratos de adesão, garantindo que ninguém tentasse, por engano, vender sua alma sem ao menos um pequeno lucro sobre isso.
A cidade brilhava com letreiros neon vendendo de tudo – desde assinaturas para água potável até planos de segurança contra roubo de órgãos. A polícia? Não existia. Mas por apenas 99,99 créditos mensais, você podia assinar um plano de proteção particular com a MilíciaCorp, que, dependendo do plano, responderia a uma chamada de emergência em no máximo 72 horas.
Noah não questionava nada. Até que um dia, sua melhor amiga, Liz, foi processada por respirar oxigênio sem pagar o imposto de carbono de sua zona residencial. Sua família não conseguiu pagar a multa, então ela foi leiloada como “trabalhadora voluntária” para quitar a dívida. O mercado, afinal, era soberano.
Isso fez Noah começar a se perguntar se a liberdade absoluta realmente significava liberdade para todos ou apenas para quem tinha saldo positivo na conta. Ele tentou acessar a biblioteca pública, mas percebeu que ela havia sido privatizada e agora exigia um plano de assinatura para acessar qualquer livro que não fosse patrocinado por empresas de apostas esportivas. Tentou discutir o assunto no Fórum de Livre Expressão, mas sua conta foi bloqueada por não possuir a verificação paga de “Cidadão Premium”.
Desiludido, Noah percebeu que algo estava errado. Mas lutar contra o sistema era difícil quando cada ato de revolta exigia um investimento inicial. Ele tentou organizar um protesto, mas os manifestantes foram dispersados por drones de segurança com anúncios flutuantes oferecendo “descontos imperdíveis em equipamentos anti-protesto”.
Sua última esperança era tentar o maior crime de todos: educação gratuita. Ele hackeou os servidores da Escola Megacorp para distribuir livros e artigos sobre história e filosofia. Mas sua tentativa foi frustrada quando os algoritmos da empresa perceberam um aumento suspeito de pensamento crítico entre os usuários e o denunciaram por “tentativa de redistribuição não autorizada de conhecimento”.
Antes de ser capturado e condenado a uma dívida impagável, Noah conseguiu enviar uma mensagem para Liz e outros dissidentes: a única saída de Ancapistão era através da falência completa do sistema. Ele criou uma nova moeda baseada em confiança mútua, sem patrocínio corporativo, e começou a minar a lógica do mercado. Aos poucos, pequenos enclaves de resistência surgiram, oferecendo trocas sem taxas, ajudando uns aos outros sem esperar pagamento. O sistema começou a falhar quando as pessoas perceberam que a verdadeira liberdade talvez não estivesse em contratos de adesão de 400 páginas, mas na simples ideia de ajudar o próximo sem pedir um recibo.
O governo corporativo tentou reagir, mas logo percebeu que o verdadeiro terror de qualquer sociedade anarco-capitalista havia sido despertado: a colaboração sem fins lucrativos.
Ancapistão nunca caiu completamente, mas algo mudou para sempre. E Noah, agora um fugitivo do mercado, tinha uma certeza: quando tudo tem preço, até a liberdade vira um produto – e o verdadeiro desafio é descobrir quando ela foi vendida sem que ninguém percebesse.
