É possível que a crise econômica mundial venha a acirrar as contradições sociais no país e retirar os trabalhadores da situação apática em que se encontram no momento. Será necessário, então, concentrar todos os esforços para retomar a organização independente dos trabalhadores, fortalecendo sindicatos livres organizados pela base, e todas as iniciativas políticas e organizatórias que contribuam nessa direção. (Notas Sobre o Momento Histórico Atual – 2019)
- A economia capitalista mundial em depressão
1.1. É impossível se analisar a sociedade capitalista e mais ainda suas crises sem que se parta de sua base material, o que equivale a discutir sua cada dia mais complexa economia, com base na teoria que Marx desenvolveu na sua obra máxima, O Capital. Esse princípio teórico-metodológico já estava expresso anteriormente a escrita de O Capital. Assim:
Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades, condições estas que Hegel […] compreendia sob o nome de “sociedade civil”. (Marx, 2008, p. 45)[1]
1.2. O período de turbulências que vai de 1998 até a crise de 2001, conhecida como crise “pontocom” por ter sido gestada no setor de alta tecnologia de informática dos Estados Unidos preparou o terreno para uma nova crise de proporções semelhantes a de 1929. No período em questão até 2007, o capitalismo faz um movimento completo de um ciclo de negócios (7-10 anos). Quando a crise de 2007-2008 surge, traz a aparência de outro ciclo de Juglar[2], contudo a recuperação e expansão completa não teve início, como esperado. Aparentemente a economia mundial (isto é o Grupo dos 20[3]) parecia estar se recuperando da crise de 2008-2009 por volta de 2016. Contudo, já no final de 2018 e início de 2019, o Fundo Monetário Internacional, em seus relatórios intitulados World Economics Outlook (Perspectivas econômicas mundiais), previa o desencadeamento de uma recessão seguida de uma breve recuperação no ano seguinte, para entrar, como entrou em uma nova recessão.
1.3. O panorama foi representado em estudo de António Mendonça [4] que usou como fonte pesquisa do FMI sobre a evolução da produção industrial, comércio e encomendas ao setor manufatureiro. Desse modo, entre 2019 e 2022, o mundo passou por uma mudança dramática, decorrente das medidas de controle da pandemia do novo coronavírus: deste modo, a recessão prevista pelo Fundo foi precipitada com as exigências abruptas, no começo de 2020, de isolamento social e fechamento generalizado das atividades no setor de serviços, acarretando também retração das cadeias de fornecimento e suspensão de novos investimentos.
Para Mendonça, trata-se de entender, teórica e historicamente, as razões das dificuldades de as economias capitalistas encontrarem “um padrão sustentado de recuperação econômica” [5] ou seja, de superarem um padrão de acumulação de capital caracterizada por baixas taxas de crescimento. Para tanto impõe-se situar o problema nos marcos da crise de 2008-2009.
Seria possível, segundo ele, estabelecer uma comparação entre esta última crise mundial e a Grande Depressão de 1930. Porém a referência histórica adequada (com a qual estamos de acordo) consiste em situar o “reaparecimento da dinâmica cíclica de funcionamento da economia mundial”, notável a partir da recessão econômica de 1973-1974, que interrompeu a longa fase (quase três décadas) de crescimento da economia capitalista desde o pós-guerra.
No artigo citado, Mendonça observa a manifestação regular do ciclo econômico nas crises periódicas de dimensão internacional no início dos anos 1980, 1990, 2000 e no final da primeira década do corrente século. Até a crise de 2008-2009, o que permitiu as elevadas taxas de crescimento da economia mundial (como se observar na indicação da curva no gráfico abaixo), deve-se ao papel desempenhado pelas chamadas “economias emergentes”, destacando-se nestas a China.
Porém o autor atribui este dinamismo a um tipo de articulação do capital financeiro entre Estados Unidos e China (e sua correspondente na relação da Alemanha com os países da União Europeia), expresso nas balanças comerciais e de pagamento, ou seja, de superavit e déficit nas “balanças correntes”. Para ele, o enorme aumento das reservas cambiais da China permitiu a transformação dos EUA em “principal criador de liquidez internacional” mediante a injeção contínua e maciça de dólares para além “de todos os limites compatíveis com as dimensões nacionais das políticas econômicas”. Quer dizer, conduziu a uma “globalização financeira” que ganhou uma dinâmica própria, sustentada na alavancagem de capital sobre capital, ou seja, “capital fictício”. Os dados comprovam a importância da China e países asiáticos no aumento do PIB mundial entre o final dos anos 1990 e a primeira década dos anos 2000.
Essa aproximação ao entendimento da crise e de sua superação mediante o recurso ao que denomina de “modelo de funcionamento da economia global”, permite, por um lado, situar as crises no contexto da organização do mercado mundial e da divisão internacional do trabalho. O que significa dizer que a análise de uma crise específica precisa considerar as particularidades deste processo no âmbito das formações econômico-sociais e de suas relações em nível mundial – que, sob o ângulo das relações interestatais, podem ser compreendidas sob o conceito, elaborado por August Thalheimer, da cooperação antagônica entre os países imperialistas.
Por outro lado, contudo, a visão de Mendonça e a de outros autores situados nos marcos do keynesianismo pressupõe a autonomização do capital financeiro em relação ao produtivo, pressuposta numa dinâmica tal que conduz ao travamento da acumulação de capital. Para nós, esta suposta autonomia deve ser novamente posta em questão, como anteriormente apresentado em estudo desenvolvido em 2010. [6]
Como iremos discutir adiante, este tipo de pensamento não ressalta a diferença da produtividade do trabalho – e, numa abordagem marxista, da exploração da mais-valia – crescente entre EUA e China como elemento fundamental para a sustentação do crescimento – e inclusive por uma situação de quase deflação mundial entre meados de 1990 e a primeira década de 2000 – da economia capitalista no nível mundial. Uma crise de mais de meio século
O Gráfico 01, abaixo, apresenta a curva de Formação privada de Capital para o G-20 de 1980-2019, lembrando que depois de 2019 a economia mundial voltou a cair. Traduzindo a curva como de acumulação de capital, nota-se que a mesma obedece a ciclo de curta duração e uma longa curva de tendência linear decrescente. Como arriscar uma explicação para essa realidade que o politicismo ou outro motivo incognoscível da maioria dos marxistas, marxianos e marxólogos[7] não enxergam? Voltemos ao criador do marxismo: Os limites do capital é o próprio capital
A contradição, expressa de maneira bem genérica, consiste no fato de que o modo de produção capitalista implica uma tendência ao desenvolvimento absoluto das forças produtivas, com abstração do valor – e do mais valor nele incorporado (…); por outro lado, esse modo de produção tem como objetivo a conservação do valor de capital existente e sua valorização na máxima medida possível (…). Os métodos pelos quais ela atinge esse objetivo incluem: o decréscimo da taxa de lucro, a desvalorização do capital existente e o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho à custa das forças produtivas já produzidas. […] A produção capitalista tende constantemente a superar esses limites que lhes são imanentes, porém consegue isso apenas em virtude de meios que voltam a elevar diante dela esses mesmos limites, em escala ainda mais formidável (Marx, 2017, p. 289).
O limite do capital pode ser externo, como a ação da classe trabalhadora ou a exaustão do planeta Terra
GRÁFICO 01
ECONOMIA MUNDIAL
ACUMULAÇÃO DE CAPITAL (1980-2019)?

É preciso esclarecer algumas questões quanto ao gráfico 01:
- a fonte é a UNCTAD, (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) que é um órgão das Nações Unidas que trabalha para promover a integração dos países em desenvolvimento na economia mundial;
- ele trata da Formação privada de capital, que se pode ler como Acumulação de Capital, sem grandes prejuízos;
- os dados são do G-205e mostram claramente vários ciclos de acumulação de curto Assim, o primeiro vai de 1980 a 1989 tem sua inflexão em 1984, o que apresenta o vale em 1993 vai de 1989 até 2000. Pode-se observar o ciclo de 2000 a 2007 e outro que vai de 2007-2008 a 2019, enquanto o último que não aparece no gráfico desenvolve-se de 2019 até 2024 como ramo decrescente. Todos são ciclos de Juglar que duram de 7 a 10-12 anos;
- o ajustamento das diversas curvas gera uma reta com declividade negativa, isto é, decrescente.
GRÁFICO 02
ECONOMIA DO G-07
TAXA INTERNA DE RETORNO SOBRE O CAPITAL
(PONDERADA PELO PIB)
(1950-2019)

5 G-20 é um grupo formado pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das maiores economias do mundo mais a União Africana e a União Europeia. Visa favorecer a negociação internacional, integrando o princípio de um diálogo ampliado, levando em conta o peso econômico crescente de alguns países, que, juntos, representam 90% do PIB mundial, 80% do comércio internacional (incluindo o comércio intra-UniãoEuropeia) e dois terços da população mundial. O peso econômico e a representatividade do G-20 conferem-lhe significativa influência sobre a gestão da economia mundial.
O Gráfico 02 acima apresenta dados indiscutíveis. Por nossa conta iremos fazer alguns ajustes nos anos de referência. A curva total é decomposta em quatro segmentos e por consequência o mesmo número de fases: (a) a primeira de 1948 a 1973-1974, retrata a chamada Era Dourada do capitalismo, onde o Estado de Bem-Estar Social baseado em um modelo de capitalismo keynesiano- fordista gerou altos lucros nos países desenvolvidos e bons salários com a promessa de evitação de greves, ocorreu uma clara tentativa de harmonização das relações entre capital e trabalho; (b) a segunda está denominada de crise de lucratividade vai 1973-1974 até 1982-1983, a queda na Taxa de Lucro é imensa, ou seja, de um coeficiente de ponderação de 0,103 para 0,060 ou de 103 para 60; (c) a recuperação neoliberal de 1983 até 1997 é bastante fraca apesar de arrochar os ganhos do trabalho, reduzir ou acabar direitos sociais, destruir instrumentos de regulação do capitalismo ou melhor, de seus excessos, e de incorporar todo o ativo social produzido pelo mundo soviético, a saber, o coeficiente de ponderação sobe de 0,060 para 0,080 ou de 60 para 80, voltando portanto ao valor do ano de crise de 1975; (e) o ajustamento a partir da crise de lucratividade até o presente gera uma reta com declividade negativa (- β), monotonamente decrescente.
Gráfico 03
Investimento em ativos fixos (Como fração do PIB)
Países desenvolvidos
(1970-2015)

Ao analisar qualquer dos indicadores da atividade econômica global, se observará que os níveis permanecem severamente deprimido. É caso do Gráfico 03, que é a cereja desse bolo simples, mostra o Investimento (Acumulação) de Capital Fixo. O capital total é dividido em Capital Variável e Capital Constante, este último é formado por Capital Fixo e Capital Circulante. O Capital Fixo, Máquinas e Equipamentos. Grosso modo, o Capital fixo é a quase totalidade do Capital Constante, por este motivo, o comportamento da curva do Gráfico 01 é muito semelhante ao comportamento da curva do Gráfico 03.
Este último mostra as conhecidas oscilações de curto prazo, contudo a reta ajustada de longo prazo decresce sempre, caindo de uma taxa de 25% para 20% na média. Quando se constrói uma curva com a média móvel de cinco anos para corrigir distorções do curto prazo, há uma alteração entre as curvas, que no final coincidem.
Conclusão: a economia mundial capitalista encontra-se em crise séria desde os anos setenta.
- 2. Apontamentos sobre a crise depois de 2019
Segundo Cardoso (2020), no momento adverso do final de 2019-2020 com a emergência da crise do coronavírus as preocupações se voltaram para os entraves no comércio exterior. O FMI no Relatório Anual de 2020, do FMI, intitulado “uma crise como nenhuma outra”[8], apontava-se uma previsão de queda do comércio de bens e serviços de 11,0%, com queda mais acentuada nos países desenvolvidos (cerca de -12,0%) que nos países emergentes e em desenvolvimento (-8,5%). O update previa quedas ligeiramente maiores: -11,9% no mundo, -13,4% nos países desenvolvidos e -9,4% nos emergentes.
O FMI mostra o próprio esfoiço, juntamente com o esforço de muitos governos para reduzir os efeitos negativos da crise sanitária na vida das pessoas e na economia. Cabe lembrar que isso não ocorreu no Brasil, com a presidência de Jair Bolsonaro.
A magnitude e a velocidade do colapso econômico foram sem precedentes. A crise minou a estabilidade financeira global, e grandes segmentos da economia global paralisaram, incluindo a economia informal, que continua grande na América Latina e na África Subsaariana. Para salvar vidas, os governos financiaram serviços adicionais de saúde e emergência. Onde as condições e o espaço no orçamento permitiram, os governos também interromperam a queda livre do crescimento global com extraordinário apoio monetário e fiscal — este último no valor de US$ 11,5 trilhões globalmente em setembro de 2020 — para estender linhas de vida a empresas e pessoas. (FMI, 2020)
A previsão do FMI é que o grupo das economias avançadas seria o principal responsável pela contração da economia global neste ano. Possivelmente em função de que a crise sanitária teve seu epicentro sucessivo nas economias mais ricas do planeta, atingindo primeiramente a China, posteriormente a Europa e, em abril os Estados Unidos. Esse conjunto de países ricos deverá ter queda do PIB de 6,1%, ou seja, deverá cair em percentual dobrado em relação à média mundial. O maior declínio do PIB deverá ser registrado na Área do Euro (-7,5%), devido à gravidade da epidemia na Itália e na Espanha e, em menor medida, na França e na Alemanha. Recuos intensos nos desempenhos econômicos também são esperados para o Reino Unido (6,5%), Estados Unidos (-5,9%) e Japão ( 5,2%), países que compõem o centro imperialista mundial. Numa situação não tão adversa estão os países que tiveram maior êxito na contenção do covid-19, como China, Singapura, Hong Kong, Coreia do Sul, Vietnã.
Não resta dúvidas de que a pandemia cumpriu um papel importante em empurrar mais fundo a cambaleante economia capitalista mundial. Uma breve análise dos anos 2020-2021 mostra toda a dinâmica negativa do produto. Esse foi um período inédito na história. O PIB de 2020 sofreu uma queda de -4,28%, para registrar uma elevação de 5,61% sobre a base deprimida de 2020
Essa violenta oscilação criou diversos problemas, principalmente gargalhos nas cadeias produtivas internacionais e na logística comercial e financeira, provocando um caótico quadro de preços com desabastecimento e elevação de preços. Uma das principais consequências foi a queda no nível do emprego.
A reversão da taxa negativa de -4,28 % em 2020 para a taxa positiva de 5,61% em 2021, deixou um resultado positivo líquido pífio e o otimismo dos economistas da burguesia não se realizou, pois o crescimento de 2022 foi de 3,2%, a média incluindo as projeções de 2025 e 2026 é um valor de semiestagnação, isto é, 2,7%.
Sobre esse quadro de queda deve-se acrescentar as consequências advindas da guerra entre Rússia e Ucrânia. Nota-se que aquele conflito teve papel preponderante no afundamento da União Europeia.
Em 2024, um estudo estimou em 486 bilhões de dólares o custo de reconstrução e recuperação na Ucrânia ao longo da próxima década. Há indícios de que 10% da estrutura habitacional do país, que corresponde a dois milhões de casas, tenha sido danificado ou destruído. Pelo menos 2.000 quilômetros de rodovias e estradas vão precisar de reconstrução ou reparações, entre outras infraestruturas críticas atingidas.
Apesar de todas as medidas tomadas pelos Estados Unidos e seus satélites contra a Rússia, sua economia não entrou em colapso. Ao contrário disso a economia tem mostrado muitos sinais de resiliência e cresceu mais que a Inglaterra e a Zona do Euro.
De acordo com Perspectivas Econômicas Globais (2024) do Banco Mundial, a expectativa é que o crescimento global se mantenha estável em 2,7% em 2025–2026. No entanto, a economia global parece estar se acomodando num patamar de baixos índices de crescimento, que será insuficiente para promover um desenvolvimento econômico sustentado. Neste início do segundo quarto do século 21, a trajetória da renda per capita das economias de mercado emergentes e em desenvolvimento indica uma recuperação pífia em comparação com as economias avançadas. A maioria dos países de renda baixa não está no caminho certo para alcançar o status de renda média até 2050. São necessárias políticas globais e nacionais para promover um ambiente externo mais favorável, aumentar a estabilidade macroeconômica, reduzir restrições estruturais, enfrentar os efeitos das mudanças climáticas e, assim, acelerar o crescimento e o desenvolvimento no longo prazo.
O crescimento global está se estabilizando à medida que a inflação se aproxima das metas e a flexibilização monetária apoia a atividade econômica. Isso deve dar origem a uma expansão global moderada de 2,7% em 2025–26. Mas as perspectivas de crescimento parecem insuficientes para compensar os danos causados por vários anos de choques negativos. O aumento das incertezas relacionadas às políticas públicas e as mudanças adversas nas políticas comerciais representam os principais riscos negativos. Outros riscos incluem tensões geopolíticas crescentes, inflação mais alta e eventos climáticos mais extremos. Exatamente o que ocorre em maior escala em 2025 com a eleição de Trump e sua política de terra arrasada para todos. A questão da guerra comercial merece um estudo a parte, pois uma coisa é o projeto trumpista, outra são as respostas dos movimentos do capital e da geopolítica mundial.
TABELA 01
EVOLUÇÃO DA ECONOMIA MUNDIAL
2022-2026

- Estagflação, destruição ambiental e fome: o capitalismo ameaça a vida planetária
3.1. Em 2021 a situação econômica internacional parecia ter sido superada com a retomada do nível das atividades de investimento, produção e consumo anteriores à pandemia do novo coronavirus, propiciada pela vacinação em massa das populações e, no caso da China, pela imposição de lockdown em cidades nas quais se verificava persistente número de novos casos.
Entretanto, neste mesmo ano, a inflação surgiu como um problema novo. Interpretada pelos governos e autoridades monetárias dos bancos centrais, da OCDE e do FMI como expressão da própria retomada econômica e, portanto, resultado do aumento da demanda anteriormente reprimida, passou a exigir políticas “contracionistas” por meio do clássico aumento da taxa de juros. Apesar das evidências contrárias de que o problema não era de demanda e sim de oferta[9], precipita uma nova recessão global foi vista como a única saída.[10]
A inflação passou a ser vista como “persistente”, discutindo-se, porém, a dosagem da política contracionista. De acordo com que Nouriel Roubini, reduzir a inflação, admitindo recessão e desemprego, justificar-se-ia para se evitar o risco de uma “armadilha da dívida” – decorrente do acumulo excessivo de passivos privados e públicos ou de empresas “zumbis”. Tais passivos subiram, em proporção do PIB, de 200% em 1999, para 350%, em 2022. [11]
Em outros termos, reduzir o crescimento, provocando falências e desemprego, passou a ser vista como a única forma de evitar o denominou de “crise de dívida estagflacionária”.
2.2. Quanto à fome, Michael Roberts[12] sinaliza no aumento dos preços dos cereais, principalmente do trigo que atingiram o nível de 2008 em 2021, as causas do aumento da desnutrição em várias partes do mundo, sobretudo na África. Os desnutridos aumentaram em 118 milhões de pessoas desde 2020, com a estimativa de que se acresceu 100 milhões em 2021. A fome aguda que afetava 115 milhões de pessoas, teve um incremento de 40 milhões no mesmo período.
Estamos aqui diante do papel das empresas multinacionais de alimentos que direcionam a demanda, geram a oferta de fertilizantes e controlam grande parte das terras cultiváveis. A guerra na Ucrânia somente dramatizou esse quadro, uma vez que Rússia e Ucrânia respondem por mais de 30% das exportações mundiais de grãos.
Em decorrência, a “crise alimentar” traz o sobre-endividamento dos países “de baixa renda”. Ao invés de aumentar a oferta e acabar com a guerra, os governos e bancos centrais, conclui o autor, “estão aumentando a taxa de juros, o que aumentará o peso da dívida dos países pobres e famintos por alimentos.”
- Algumas conclusões possíveis
4.1. As fontes e o que revelam
Com a discussão feita acima é possível uma síntese da análise da situação e tendências da economia mundial. Utilizaremos os dados do FMI em abril de 2022 e o resumo apresentado no WEO de julho do mesmo ano.
No World Economic Outlook (Perspectivas Econômicas Mundiais) publicação do FMI é possível ter uma visão global da economia mundial mais os dados desagregadosComo se pode constatar, a situação mundial poder ser caracterizada como atravessando uma longa depressão com recuperações fracas (2018) e retrações mais severas (2020), sustentadas ainda pelo grupo denominado “países emergentes e em desenvolvimento”. Entretanto nada parece assegurar um futuro promissor. Pelo contrário, nos próprios termos do relatório citado acima.
Ao considerar o principal país imperialista, ainda a economia mais potente (os Estados Unidos), a variação do PIB cai de 5,7% em 2021 para 1,0% em 2023. Por outro lado, nos países componentes da União Europeia desaba em todos, sendo a queda da Alemanha de 2,9% para 0,8%, a locomotiva da Europa “patina” e quase não sai do lugar. Se o contraponto é a China, a situação é grave, pois a segunda potência tem o produto caindo de 8,1$ para 4,6%. No geral, o Produto Mundial se reduz de 6,1% par 2,9%.
4.2. O crescimento econômico mundial desacelera em meio a perspectivas sombrias e de graves incertezas.
No Boletim “Atualização das Perspectivas Econômicas Mundiais” (julho de 2022), o FMI confirma a fraca recuperação de 2021 que foi acompanhada por acontecimentos cada vez mais sombrios em 2022, à medida que os riscos começaram a se materializar. Vale registrar que o Produto mundial sofreu significativa contração no segundo trimestre deste ano, em boa medida como resultado do encolhimento das economias da China e na Rússia, enquanto os as despesas com consumo nos Estados Unidos ficaram muto abaixo das expectativas. Diversos choques atingiram uma economia mundial já claudicante pela pandemia: inflação mundial acima do esperado – especialmente nos Estados Unidos e nas principais economias da Zona do Euro.
A economia mundial, ainda às voltas com a pandemia e a invasão da Ucrânia pela Rússia, enfrenta um panorama cada vez mais sombrio e incerto. Muitos dos riscos negativos apontados na edição de abril do World Economic Outlook começaram a se concretizar. Uma inflação mais alta do que o previsto, sobretudo nos Estados Unidos e nas principais economias europeias, está provocando um aperto das condições financeiras mundiais. A desaceleração da economia chinesa tem sido pior do que o previsto, em meio a surtos de Covid-19 e lockdowns, e a guerra na Ucrânia gerou novas repercussões negativas. Como resultado, o produto mundial contraiu-se no segundo trimestre deste ano[13].
As crises econômicas, por fazerem parte intrínseca da dinâmica do capitalismo, acentuam as contradições deste sistema. Sua análise precisa necessariamente considerar o momento histórico em certo contexto de luta, de modo a permitir a tomada de posição política considerando o nível de consciência e de organização alcançada pela classe operária. Para tanto se impõe o exame das teorias vigentes no campo do marxismo sobre a crise atual.
O entendimento da crise mundial do capitalismo – comumente caracterizada por intelectuais ou círculos à esquerda como estrutural, crônica, estagnação secular – persiste na compreensão desde a crise de 2008-2009 e continua a desafiar a análise “crítica e revolucionária”, para recuperar os termos de Marx escritos no Posfácio à segunda edição de O Capital. De certo modo, boa parte das interpretações das crises do capitalismo desde os anos 1970 que aceitam as premissas marxistas assume ou tangencia a ideia de que o capitalismo atingiu um limite absoluto que, sem gerar uma nova e consistente fase de expansão, tende a solapar as “virtudes distributivas” (aliás, postas em questão desde os anos 1980 para cá) e suas próprias bases materiais, econômicas, políticas e ideológicas.
Esta é a perspectiva de François Chesnais no texto em que o título traz a pergunta: O capitalismo encontrou limites intransponíveis? A exposição do autor está orientada para uma resposta afirmativa. A “escassez” de mais-valia com o avanço da automação e a redução do trabalho vivo representa uma das principais alegações de Chesnais para sustentar a tese de que o capitalismo encontrou um limite absoluto: “à medida que a penúria de mais-valia se enraíza, se torna estrutural, o que apareceu inicialmente como um ‘limite interno (imanente) do capital’, suscetível de ser superado temporariamente, acabará por se tornar intransponível”. A barreira temporária ao capital – diga-se erguida pelo próprio capital como desenvolvida por Marx em O Capital – é transformada em limite absoluto e intransponível. No entanto, a afirmação de que a mais-valia “bateu no teto” parece redutível a uma racionalidade conceitual deslocada da história ou, como sugere Anwar Shaikh (A primeira grande depressão do século XXI), da identificação da “dinâmica da acumulação capitalista” e de “suas expressões históricas particulares”.
Segundo Chesnais existe outro limite (“externo”) que também “bateu no teto”, que é a capacidade da biosfera, do ecossistema e do planeta para suportar a vida, pois com o processo de acumulação de capital marcado pela “exploração sem limites, até ao esgotamento, dos recursos naturais.” Neste caso, o autor insere a ressalva de que esse limite não significa o fim da dominação política da burguesia ou sua morte, mas o caminho para a barbárie.[14]
4.3. No centro das questões está a luta de classes
Quanto à dimensão política notável agora, deve-se chamar atenção para o fato de que o agravamento dos conflitos interimperialistas, expressando a prevalência do antagonismo sobre a cooperação vigente até a grande crise de 2008-2009, tem acarretado um crescimento do nacionalismo de direita em todo o mundo, o qual encontrou apoio entre parcelas significativas dos trabalhadores. Uma de suas manifestações é a defesa dos empregos no âmbito de cada país, arrastando o movimento sindical e subjugando os operários a um inaudito aumento da exploração acompanhado da perda de conquistas sociais. Suposta defesa, pois o capital continua transnacionalizado e a competição intercapitalista na verdade é fundamental para a exploração da força de trabalho e maiores ganhos em termos de lucro. Como assinala Harry Cleaver, a competição “deve ser interpretada em termos da luta de classe, reconhecendo que o determinante mais fundamental de quem ganha a batalha competitiva está determinado por quem tem maior controle sobre o setor relevante da classe trabalhadora.” [15]
Muitas outras ponderações podem ser realizadas a partir da problematização dos dados e abordagens dos autores. No entanto, essas observações tópicas são apenas para ressaltar a importância da dinâmica histórica (desigual ou mais precisamente contraditória) para o entendimento da acumulação de capital e, neste processo, das transformações produzidas pela luta de classes na situação econômica mundial, sem minimizar nem simplificar, e sim precisar a caracterização – e avançar mais além – acerca da intensidade da (crise) situação econômica.
Sem dúvida, um dos problemas da tese de que o capitalismo encontrou limites absolutos (ou centrada na dimensão da intensidade da crise econômica) é o de sugerir um aprofundamento uniforme do capitalismo e de suas contradições de classe. E, por sua vez, ocultar o fato de que seu desenvolvimento (e crise) continua desigual e contraditório, tanto mais no imperialismo, sobretudo, a partir da crise dos anos 1970, com a intensificação da exploração da classe operária e o deslocamento do predomínio do antagonismo sobre a cooperação.
Pode deduzir dos desdobramentos políticos e ideológicos da tese do limite absoluto do capitalismo a conclusão de que o antagonismo com o proletariado é uniforme. Assim todos os “elos” são fracos e amadurecem por igual no mesmo momento.
Referenciais
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ROBERTS, Michael. A fome global que se alastra – e como detê-la. (20/06/2022). OUTRAS PALAVRAS. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/afome-global-quese-alastra-e-como-dete-la/ Acesso em: 05 de maio de 2023.
ROUBINI, Nouriel. “Uma crise de dívida estagflacionária se aproxima”. In Project Syndicate (29 de junho de 2022). Disponível em https://www.project-syndicate.org/commentary/stagflationary-debt-crisis-by-nouriel-roubini-2022-06/portuguese. Acesso em: 10 de maio de 2023.
STOTZ, Eduardo e PONTES, Ivaldo. A crise econômica mundial e a teoria marxista sobre a crise. (2010). Centro de Estudos Victor Meyer. Disponível em: https://centrovictormeyer.org.br/category/crise-economica-capitalista/ Acesso em: 02 de abril de 2024
VALOR ECONÕMICO. juros globais fortalecem temores de recessão. (05 de agosto de 2022). Disponível em: https://valor.globo.com/financas/noticia/2022/08/05/juros-globais-fortalecem-temores-de-recessao.ghtml Acesso em: 12 de agosto de 2024.
Notas
[1] MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução Florestan Fernandes. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008
[2] Atribuído ao trabalho de Clément Juglar, que estudou ciclos de longo prazo, que levam de 7 a 11 anos, em média, no Reino Unido no século XIX. Este ciclo relaciona as altas e baixas do Produto Interno Bruto (PIB) com os gastos de investimentos, inflação e flutuações no mercado de trabalho.
[3] O G dos 20 é formado pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia, representando 80% da economia global, estando na liderança os Estados Unidos, a Alemanha e a China.
[4] “A caminho de uma recaída da economia mundial?: Ainda algumas notas sobre a natureza da crise económica e financeira de 2008-2009 e os seus impactos na economia europeia”. Lusíada. Economia & Empresa, n. 26 (2019) Disponível em http://revistas.lis.ulusiada.pt/index.php/lee/article/view/2683/2898
[5] Ver nota 2.
[6] Ver as notas de pesquisa 1 e 2 do documento “A crise econômica mundial e a teoria marxista sobre a crise”, de Eduardo Stotz e Ivaldo Pontes, disponível no portal do Centro de Estudos Victor Meyer em 2010.
[7] Marxistas são intelectuais orgânicos que militam pela emancipação do Proletariado; marxianos são intelectuais acadêmicos que estudam seriamente o marxismo sem filiação política; marxólogos são estudiosos do marxismo que algumas vezes se colocam contra a essência daquele pensador e militante comunista
[8] FMI. Relatório Anual 2020.
[9] Blog Economia e Complexidade: Jayah Ghosh. A inciência e a inflação, em 25 de julho de 2022. Disponível em https://eleuterioprado.blog/2022/07/31/a-inciencia-e-a-inflacao/#:~:text=Do%20segundo%20trimestre%20de%202020,anteriores%20(1979%2D2019) .
[10] Valor econômico, 05 de agosto de 2022, C1: “juros globais fortalecem temores de recessão”.
[11] Nouriel Roubini. In Project Syndicate, 29 de junho de 2022: “Uma crise de dívida estagflacionáreia se aproxima”. Disponível em https://www.project-syndicate.org/commentary/stagflationary-debt-crisis-by-nouriel-roubini-2022-06/portuguese
[12] Michael Roberts. A fome global que se alastra.
[13] Fonte: (https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2022/07/26/world-economic-outlook-update-july-2022
[14] Uma resenha crítica deste texto de Chesnais é apresentada por Eleutério Prado em A questão dos limites do capitalismo, disponível em https://eleuterioprado.blog/2017/12/11/limites-do-capitalismo/a-questao-dos-limites-do-capitalismo/
[15] Harry Cleaver. Tesis sobre la crisis secular em el capitalismo: la insuperabilidad de los antagonismos de classe. (1992). Cuadernos de Economía Crítica, v. 6., n. 12, 2020. Disponível em https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=7484867
