Contra a Neutralidade Fabricada: Notas sobre Guerra, Colonialismo e o Cálculo da Dor (Por Leonardo Lima Ribeiro)

Trata-se aqui de afirmar algo que se impõe como dado histórico: o ruir de uma ordem mundial pretensamente intocável. A expressão “mundo novo” não deve ser confundida com “amanhãs floridos”, como se a guerra fosse uma promessa de paz — essa interpretação, sim, é deslocada. Trata-se, antes, de uma fratura histórica real, visível no colapso das estruturas simbólicas que sustentam o sionismo e o imperialismo ocidental, tal como a inviolabilidade outrora atribuída ao estado colonial israelense.

A leitura moralista e abstrata da guerra, com apelos à paz e à dor universal, ignora o peso da história concreta. Sugiro, portanto, uma releitura mais acurada, que leve em conta os conflitos tal como estão dados — de forma brutal, assimétrica, material. O apelo a uma suposta neutralidade ou a uma ética da equidistância escamoteia aquilo que é central: há sim sujeitos históricos esmagados por décadas de colonialismo, apartheid, genocídio e apagamento simbólico. Não reconhecer isso é cair na armadilha ideológica da conciliação — típica do liberalismo ocidental, que se disfarça de pacifismo quando o fogo não atinge seu próprio quintal.

E é nesse ponto que a neutralidade revela sua verdadeira face: uma posição ideológica travestida de sensatez, que serve para manter as estruturas de poder onde sempre estiveram. A neutralidade — esse “ideal” do pensamento moderno burguês — é uma ficção funcional ao capital. Lamentar genericamente os mortos, sem calcular os agentes, os instrumentos, os pactos e os interesses que fabricam a morte, é uma forma polida de cumplicidade.

Não há como sustentar a simetria entre as dores quando um dos lados é sistematicamente despojado até mesmo da possibilidade de ser reconhecido como plenamente humano. O povo palestino, historicamente, foi construído para ser visto como sub-humano, como ruído no campo de visão hegemônico. E a imprensa brasileira, como se sabe, adora fazer um seccionamento entre as dores legítimas e as ilegítimas. É essa distinção racializada da dor que estrutura o olhar seletivo de boa parte do Ocidente.

Insistir na simetria da dor (“a dor israelense é igual à palestina”) é, portanto, falso em seu fundamento histórico e perigoso em sua consequência política. A pergunta é: quem, após décadas de morticínio e apartheid, aceitaria um discurso de paz se estivesse vivendo sob ocupação? De que lado esse tipo de proposta simbólica colocaria o sujeito que a profere? Há momentos em que o pacifismo universalista — este profundamente atravessado por elementos cristãos — não passa de uma forma sofisticada de apagar o conflito real, material, de classes, de territórios e de corpos.

Outro aspecto central da análise é a origem das informações e a forma como elas são disseminadas. É preciso perguntar: por quais canais você soube das baixas? A Reuters? A Associated Press? O G1? Isso importa, e muito. A designação simbólica dos alvos — como “um prédio” do Mossad — encobre a história de uma das instituições mais letais de espionagem e repressão do planeta. Não se trata de celebrar a destruição, mas de nomear corretamente o que está em jogo: não era “só um prédio”, era o centro de uma estrutura responsável por intervenções e execuções clandestinas no mundo inteiro — inclusive no Brasil.

E é aqui que a análise se conecta diretamente com nosso cotidiano periférico. O Brasil é um dos principais compradores de tecnologia e treinamento militar de Israel. O que isso significa? Significa que parte do que mata nossos alunos, nossos jovens negros e pobres nas periferias urbanas, vem de lá. É com essa tecnologia, com esse know-how de controle e eliminação do “inimigo interno”, que se estruturam nossas forças policiais. Portanto, se somos professores, educadores e militantes, não podemos nos limitar ao diagnóstico econômico. É preciso enxergar o conjunto articulado de dominação — a fome, sim, mas também o fuzil, o drone, o caveirão. Se não matam pelo estômago, matam pelo calibre .40. Não basta chorar pela vítima abstrata da guerra em Gaza e esquecer o menino morto em Manguinhos com armamento de origem israelense.

Se a paz proposta não coloca o sionismo no cálculo, se ignora a história concreta das ocupações, dos cercos, das prisões massivas, dos bombardeios e do apartheid, então ela é apenas uma estética ideológica da rendição. A paz, nesse caso, é apenas a nova linguagem do velho colonialismo.

É importante também problematizar a maneira como alguns discursos tentam isentar-se de responsabilidade crítica, em nome de um humanismo generalizante — como se a denúncia das estruturas e dos agentes históricos da violência fosse uma “tara ideológica” por parte dos que se posicionam a favor do lado oprimido. Isso não apenas é falso, como é perverso. O que está em jogo não é um fetiche pelo sofrimento, mas a recusa em apagar os elementos concretos que tornam um povo inteiro alvo sistemático de um projeto de extermínio.

E não, não se trata de querer ser paladino da verdade. Como professores e militantes, é justamente o contrário: somos obrigados a reconhecer os limites do nosso campo de atuação. Mas a recusa em assumir que há uma arquitetura política por trás de cada lamento é, sim, uma forma de participação no jogo ideológico. Os pretensos universais no capitalismo são sempre instrumentos de parcialidade. Nada mais enganoso que um discurso “humano” que esquece o nome dos responsáveis.

Estar preso na jaula de aço do capital é uma condição quase universal. Mas estar nela com consciência disso — e mais ainda: consciência de si e para si — é outra coisa. Como bem sabemos, muitos licenciados sequer alcançam esse segundo estágio. Ter consciência de que a denúncia é possível já nos tira do puro enclausuramento. E isso nos obriga a agir.

Por fim, a crítica ao Mossad, ao armamento israelense nas periferias brasileiras, à seletividade das dores e ao discurso pacifista despolitizado não é vaidade intelectual. É responsabilidade histórica. É saber que nossos alunos estão dentro dessa engrenagem. É lembrar que a guerra não está tão distante assim — ela se reflete no corpo negro alvejado, no estudante com fome, no silenciamento político que cala as denúncias nas escolas.

Quem lamenta a destruição de um prédio da inteligência israelense, sem entender o que ele representa, não está lamentando uma perda. Está, mesmo sem querer, sustentando uma estrutura.

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