Há 90 anos, em inícios de 1935, Aderbal Jurema, de 23 anos, apenas egresso da Faculdade de Direito de Recife, publicou um livro, para a sua época, excêntrico às leituras do passado escravista brasileiro. (JUREMA, 1935.) Em forma pioneira, seu texto desenvolveu a proposta da oposição, entre escravizados e escravizadores, como pura e lídima expressão da luta de classes sob a escravidão. Antes do jovem paraibano, apenas Astrojildo Pereira, líder do PCB, de 1922 até sua expulsão, em 1930, propusera, em forma telegráfica, aquela avaliação, ao criticar Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna, em 1° de maio de 1929, no jornal “A Classe Operária”, porta-voz do Partido Comunista Brasileiro. Ele jamais retomou aquela proposta.
O dirigente comunista afirmara, referindo-se ao passado do Brasil: “Os negros lutaram. Luta, aqui também, cruel, feroz, obstinada e secular. Variando de meios, de processos, de armas, ela durou desde a chegada às terras brasileiras da primeira leva de escravos até 1888. Autêntica luta de classes, que encheu séculos da nossa história (…)”. (PEREIRA, 1929.) O livrinho de Aderbal Jurema, que, em 1935, retomava e ampliava essa visão radical sobre o passado do país, foi praticamente desconhecido pela historiografia brasileira.
Tardio e frustrado
Entre as razões do tardio e frustrado reconhecimento da centralidade do trabalhador escravizado no devir da história do Brasil pré-1888, destacam-se a longa vigência da ordem escravista e de suas classes hegemônicas; a gênese tardia e atomizada da moderna classe trabalhadora na república federalizada de 1889 a 1930; a demorada chegada ao Brasil de um marxismo rapidamente abastardado; um partido comunista dirigido pelo colaboracionismo stalinista; o forte dinamismo do populismo burguês. (MAESTRI, 2020.) O resultado foi que, por um longo período, silenciou-se sobre um óbvio gritante: a contradição entre o escravizado e o escravizador como o nexo central durante 350 anos do passado brasileiro.
Na imediata pós-escravidão, sob a vigência e o prestígio do pretenso “racismo científico”, reinou soberana a visão do maranhense Nina Rodrigues e de seus seguidores abertos e envergonhados. A partir de 1933, com Casa-Grande & Senzala, por longos anos, Gilberto Freyre, o cabotino genial, governou, como senhor de baraço e cutelo, sobre as narrativas referentes ao passado escravista e às relações raciais do país. (RODRIGUES, 1935; FREYRE, 1969.) Sua influência se estendeu a muitos dos intelectuais, seus contemporâneos, que se definiam como marxistas, apesar de mais próximos do positivismo e do desenvolvimentismo burguês.
Não se deveu a um acidente da sorte, o longo silenciamento da centralidade da luta de classe na escravidão brasileira, a mais longeva, mais acabada e mais impiedosa ordem negreira, que massacrou, como nenhuma outra nas Américas, milhões de trabalhadores escravizados. (CURTIN, 1969.) As funções e os apoios dessa afonia seletiva foram poderosos. Ela abafou o despotismo brutal dos segmentos escravistas hegemônicos e de suas instituições, que se metamorfosearam, mutatis mutandis, nas igualmente hipócritas e celeradas classes dominantes atuais.
Silêncio e paisagens bucólicas
O silêncio sobre a essência da ordem escravista; a sua apresentação, ontem e hoje, adocicada; as negativas de sua materialidade e organicidade, e por aí vai, ensejaram a apresentação de facção das classes exploradoras como os segmentos sociais demiurgos responsáveis pelo fim da escravidão e pela emancipação capitalista do Brasil que a seguiu. Em verdade, as novas elites foram as construtoras de um novo Estado e nação, nos quais tudo fizeram para que o mundo do trabalho seguisse sendo o proposto “protagonista silencioso”, destinado a transitar, sem maiores crises, da “escravidão pessoal”, do passado, à “escravidão assalariada”, do presente, que segue terrivelmente viva nos dias de hoje.
Nessa reconstrução fantasmagórica do mundo escravista no Brasil, vozes, memórias, leituras, interpretações transgressoras, com raízes ou inspiradas nos oprimidos, foram silenciadas pela marginalização, cancelamento e, mesmo, pela violência. (GORENDER, 1990.) Em sentido oposto, foram legitimadas, consagradas e financiadas, por todos os meios e com recursos quase inimagináveis, as apologias que interpretavam, consolidavam e modernizavam as narrativas tranquilizadoras do passado, que desconheciam e minimizavam a luta dos trabalhadores escravizados, para melhor sufocar e combater a dos trabalhadores atuais. (CHAVES, 2019.)
Um movimento de ocultação no qual se destacou a marginalização do livro germinal de Clóvis Moura, Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas, torpedeado elegantemente, por Caio Prado Júnior e Édison Carneiro, então intelectuais reconhecidos e camaradas comunistas do jovem autor, que os consultou em procura de apoio para o desenvolvimento e para publicação de sua investigação. Quase concomitantemente, o salto epistemológico paralelo de Benjamin Péret, que apareceu em dois números de revista paulista de destaque, conheceu conspiração do silêncio que, neste caso, se arrasta até hoje. (MAESTRI, in PÉRET, 2002, p. 47-74.)
Limites históricos
Ambos, Clóvis Moura e Benjamin Péret, nos limites da informação histórica da época, apontaram para o caráter escravista dominante da sociedade e para o confronto entre o escravizador e o escravizado, como expressão central da luta de classes no Brasil da época. E não se tratou de mera empatia pelos explorados do passado. Um e outro, o jovem jornalista piauiense, pouco conhecido, militante de partido visceralmente stalinista, e o francês, consagrado intelectual e combatente trotskista, do mundo das ideias e das armas, lembraram que o avanço de formação social brasileira dependera da destruição da ordem negreira, pelos trabalhadores escravizados. O que era totalmente novo.
Benjamin Péret publicou, em 1956, o ensaio “Que foi o quilombo de Palmares?”, nos números de abril e maio da revista paulista Anhembi. Em seu escrito, ele se apoiou factualmente no livro O quilombo dos Palmares, de Édison Carneiro, apresentado em uma primeira edição espanhola dez anos antes. No ensaio, refutava as interpretações essenciais do intelectual comunista sobre a confederação dos quilombos de Palmares. Benjamin Péret morreu, no ano seguinte, em 18 de setembro de 1959, em Paris, na França. (MAESTRI, in: PERET, 2002, p. X )
A seguir, se fez silêncio, quase total, sobre a dessacralização do trotskista e surrealista francês das visões oficiais e oficiosas sobre a escravidão brasileira. No Brasil, seus dois artigos foram apresentados, sob forma de livros, contextualizados e comentados, por Mário Maestri e Robert Ponge, passados 45 anos, pela Editora da UFRGS. (PÉRET, 2002.) Apesar de esgotada, a edição foi raramente citada. Uma segunda edição, revista, prevista para o fim deste ano, será lançada, proximamente, por iniciativa do economista Nildo Ourique, diretor da Editora da Universidade de Santa Catarina, com amplo interesse pelo passado das lutas sociais sob a escravidão.
Inventando a história
Em 1952, por carta, Caio Prado Júnior negou-se a publicar, na Editora Brasiliense, de sua propriedade, o livro de Clovis Moura, sob desculpa pífia, em um verdadeiro veto político-historiográfico. Rebeliões da Senzala terminou sendo lançado, apenas em 1959, pela Edições Zumbi, uma pequena editora, de curta vida, fundada para divulgar livros rejeitados pela editora Vitória, segundo me confessou Clóvis Moura, bastante amargurado, em 30 de janeiro de 1999, ao me entregar cópia da correspondência com Caio Prado e Édison Carneiro, referente ao livro, quando preparava artigo sobre a importância daquele seu trabalho. (MAESTRI, 2022, p.280.)
Nos anos 1950, dominava no comunismo “marxista-leninista” a orientação de colocar a luta pelo socialismo no congelador e entregar a direção do movimento social à direção da espectral “burguesia anti-imperialista e anti-latifundiária”, aquela que deu o golpe em 1964. Reconstruindo a história segundo suas necessidades políticas, o PCB e seus intelectuais orgânicos propunham, como o conflito central do passado escravista no Brasil, o choque entre os latifundiários e um campesinato construído “ad hoc”, invisibilizando os cativos e suas lutas. (GUIMARÃES, 1963.)
Clóvis Moura pretendeu dar um passo à esquerda, rompendo com o PCB, que sabotara sua investigação, ao ingressar no PCdoB, em 1962, poucos anos após a publicação de Rebeliões da Senzala. Porém, se o homem põe, deus dispõe. O partido dos futuros maoístas brasileiros, onde Clóvis Moura militou por longos anos, seguiu, com uma retórica esquerdista, a mesma orientação política e interpretação colaboracionista da formação social brasileira do partido-mãe moscovita com o qual rompera. (PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL, 2000.)
O mesmo caminho
Também no PCdoB, não havia espaço para escravizados e escravizadores, apenas para latifundiários, camponeses, burguesia nacionalista e todo o pacote stalinista. Clóvis Moura viveu sob aquela cultura, sem poder aprofundar o salto epistemológico que dera, para o qual, lhe faltou, igualmente, recursos materiais para aprofundar sua investigação. Até sua morte, a Academia jamais abriu suas portas para ele, por falta de uma graduação acadêmica. Nos anos que seguiram à publicação de Rebeliões da Senzala, Clóvis Moura escreveu ensaios valiosos, mas, apenas em 1977, publicaria um livro de destaque, reunião de três ensaios. [MOURA, 1972.]
Em meados dos anos 1950, núcleo acadêmico iniciou investigação sobre a escravidão e as relações raciais no Brasil, destacando-se, na “Escola Paulista”, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni. Eles criticaram as teses de escravidão patriarcal e da democracia racial; enfatizaram o despotismo escravista e as suas sequelas pós-1888; apresentaram o cativo como um “figurante mudo”, objeto e jamais sujeito do devir histórico. A Abolição foi lida como um “negócio de branco”, nascido do anacronismo da escravidão. Sequer se detiveram na destruição final da instituição pelo abandono maciço das fazendas cafeicultoras pelos escravizados, a partir de fins de 1887. (CONRAD, 1985).
A retomada da visão sobre um Brasil escravista e da importância da oposição entre escravizados e escravizadores se daria, em forma plena, a partir dos anos 1960, por meio de uma plêiade de intelectuais, que publicou trabalhos de destaque, como, entre outros, J. Stanley Stein [1961], Emília Viotti da Costa [1966], Luiz Luna [1968], José Alípio Goulart, [1971], Décio Freitas [1973]. Movimento muito logo reprimido, em 1964, pelo Golpe Militar, que demitiu, prendeu, torturou, e assassinou intelectuais progressistas, esquerdistas e marxistas. (MAESTRI, 2022.)
O salto de qualidade, nessa leitura, ocorreria, a seguir, com a proposta da releitura do passado escravista a partir da categoria modo de produção escravista colonial. Em 1973, Ciro Flamarión Cardoso publicou, no exterior, onde residia, artigo exemplar sobre a escravidão colonial. (CARDOSO, 1973.) Anos mais tarde, ele retrocedeu nesse avanço epistemológico. (CARDOSO, 1987.) Finalmente, em 1978, Jacob Gorender apresentou sua obra generativa O escravismo colonial. (GORENDER, 2016.) Em fins dos anos 1970, a forte mobilização dos trabalhadores no Brasil impulsionou a leitura da pré-Abolição, tendo como eixo metodológico o escravismo colonial e a produção-resistência dos trabalhadores escravizados.
Essa refundação da historiografia da escravidão a partir do trabalhador feitorizado foi submetida, quase de imediato, a um esforço acadêmico de deslegitimação, através da proposta de cativos que comiam bem, trabalhavam pouco, apanhavam ainda menos; impunham suas vontades negociando com os escravizadores; libertavam-se aos borbotões, através de alforrias; constituíam habitualmente famílias estáveis; exploravam com enorme sucesso econômico pequenas parcelas agrícolas; defendiam a escravidão, em um espantoso mundo novo americano. (MAESTRI, 2015.) Esse esforço restauracionista se tornou hegemônico quando a noite caiu sobre o mundo social, com a vitória da contra-revolução liberal através do mundo, assinalada pela derrota da URSS, em 1991. Realidade que se mantém até hoje. Mas isto é uma outra história.
Há 90 Anos
Há 90 anos, em inícios de 1935, Aderbal Jurema publicava seu pioneiro livro Insurreições negras no Brasil. O jovem paraibano apresentara, no ano anterior, em 1934, quando do I Congresso Afro-Brasileiro, de Recife (11-15 de novembro), organizado por Gilberto Freyre, uma comunicação sobre “O potencial revolucionário do negro brasileiro”, que resumia as propostas desenvolvidas, a seguir, em Insurreições negras no Brasil. Sua comunicação não foi, logicamente, publicada nos anais do Congresso. Ela e seu livrinho iconoclasta foram objeto, nas décadas seguintes, de verdadeira “conspiração do silêncio”. (MOTTA, 2014, p.38; ZANIN, 2020.)
Ao escrever seu primeiro ensaio sócio-histórico, Aderbal Jurema era um jovem militante comunista, galvanizado pela reorientação esquerdista do comunismo internacional, quando dos chamados “Terceiro Período” e “social-fascismo”. Em 1928, sob a direção de J.Stalin, a Internacional Comunista propôs que o nazifascismo era um fenômeno transitório e o principal inimigo da revolução seria a social-democracia. Superado o primeiro e vencida a segunda, o mundo ingressaria em uma era de vitórias inexoráveis da revolução proletária. O barco revolucionário devia ser lançado ao mar, não importando o tempo que fizesse. (HOBSBAWN, 1985, p. 148 et passim.)
Em 1933, devido aos enormes desastres que produzira, o ultraesquerdismo do “Terceiro Período” seria abandonado pela III Internacional. Em agosto de 1935, ele seria substituído pela orientação direitista e colaboracionista das Frentes Populares, que defendiam o combate ao fascismo abraçado e em aliança com a burguesia proposta como democrática. Entre outros desastres, a nova orientação enterrou o impulso revolucionário francês, quando do Front Populaire (1936-1938), e a Revolução Espanhola (1936-1939). (BROUÉ / TEMINE, 1961)
Ao apagar das luzes do “Terceiro Período”, sua aplicação no Brasil resultou no irresponsável e desastroso putch vanguardista do PCB de novembro de 1935. Realizado à margem e sob o desconhecimento dos trabalhadores, até a sua eclosão, ele apoiou-se essencialmente nos oficiais e nos soldados comunistas e antifascistas da Aliança Nacional Libertadora. Denominado pela reação de Intentona Comunista, o movimento facilitou o golpe de Getúlio Vargas, de novembro de 1937, e o longo período ditatorial que se prolongou até 1945. (FREITAS, 1998) Como em 1964, pelas mesmas razões, a ditadura burguesa fez recuar e desorganizou o avanço de eventuais interpretações marxistas sobre o passado brasileiro.
Pouca ilustração
Pesou sobre o ensaio de Aderbal Jurema o seu limitado conhecimento da história do Brasil, comum a enorme parte da intelectualidade comunista de sua época. Ao contrário, diversas facções dos intelectuais contemporâneos das classes dominantes, apoiavam-se em décadas de investigação sobre o Brasil. Em geral fazendeiros, oficiais do exército, juízes, altos membros do Estado, todos, eram homens de posses ou financiados, direta ou indiretamente, pelas classes dominantes, com acesso aos jornais, editoras, arquivos etc. Nenhum intelectual de peso aderiu ao PCB, imediatamente após sua fundação.
Naqueles anos, os poucos comunistas letrados, em geral filhos de famílias pudentes ou das classes médias acomodadas, como Astrojildo Pereira, Caio Prado Júnior, Carlos de Lacerda, Nélson Werneck Sodré e o próprio Aderbal Jurema, iniciavam-se no estudo do passado do país, sem contar com um alicerce sólido em que se apoiar. E possuíam um conhecimento limitado do método marxista, que já lhes chegava corroído pela degeneração stalinista. A literatura marxista foi traduzida de forma demorada e limitada ao português. De 1937 a 1945, o pais viveu sob ditadura burguesa, o mesmo ocorrendo em Portugal, de 1933 a 1977.
Publicado em 1867, O Capital foi apresentado, no Brasil, pela primeira vez, um século mais tarde, em 1968, pela Civilização Brasileira. A magnífica História da Revolução Russa, de León Trotsky, foi lançada, um ano antes, em 1967, pela Saga, apesar de sua primeira edição ser de 1930. Publicado em sua totalidade em 1932, A ideologia alemã foi apresentada, completa, no Brasil, em 1968, pela editora Martins Fontes. Em 1937, o Estado Novo e o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) reprimiam a importação da literatura marxista em francês, alemão, inglês e espanhol. A fragilidade objetiva do proletariado brasileiro de então dificultava igualmente a consolidação de uma sólida corrente marxista revolucionária no Brasil.
Índio preguiçoso
Compreende-se que Aderbal Jurema se apoie em Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, de 1933, ao explicar a preferência, do africano ao nativo, como trabalhador escravizado, já que o americano pouco praticaria e pouco se adaptaria à cultura agrícola, segundo o sociólogo pernambucano. (JUREMA, 1935, p.18-19.) Uma falsa explicação culturalista, que se mantém ainda em vida, apesar do atual avanço do conhecimento das sociedades nativas do Brasil e, em forma algo mais limitada, das sociedades da África Negra Pré-Colonial.
O jovem comunista paraibano abraçou igualmente as propostas de reduções jesuítas nascidas sobretudo da cobiça clerical pela força de trabalho nativa – “Não era talvez menor a tirania do religioso, na missão, que a do lavrador, na fazenda.” (JUREMA, 1935, p.21) Uma interpretação retomada, por Gilberto Freyre, em seu trabalho referencial, de 1933, dos encomenderos e escravistas sul-americanos desejosos de um número crescente de nativos americanos feitorizados.
Aderbal Jurema propôs a fuga do cativo, não como um ato de covardia, mas como uma “afirmação vigorosa de coragem de lutar, de enfrentar até o desconhecido, conquanto que conquiste a liberdade”. A modernidade de Insurreições negras no Brasil, não se deve apenas à afirmação da proposta do confronto entre escravizados e escravizadores como luta de classes. Ato individual, que desembocaria, segundo ele, na formação dos quilombos, outra expressão, para o autor, da diuturna oposição do cativo à sua exploração e à construção do país tendo como “argamassa” o seu “suor”, “segue” e “carne”. (JUREMA, 1935, p.19-25.)
Dupla dominação
Aderbal Jurema vai mais longe, ao definir que, nas Américas, a ordem escravista ensejara uma dupla dominação e um duplo “ódio”, de “classe” e de “raça”. (JUREMA, 1935, p.23.) Apoiado nessa visão, em breve capítulo dedicado ao “Negro nos Estados Unidos”, em que se apoiando em uma restrita bibliografia sobre o tema, avança reflexões comparativas, não despidas de interesse, sobretudo para a época em que foram apresentadas.
O autor dedica um capítulo ao “Estado Negro dos Palmares” e outro às “Principais insurreições negras”. Quanto à confederação de Palmares, repete algumas visões gerais então em curso, definindo-a como um “verdadeiro Estado africano”, “uma transposição da cultura africana para as terras das Alagoas”. Enfatiza, porém, com argúcia, que Palmares não fora “não isenta da influência das senzalas”.
Em sua leitura sobre a confederação dos quilombos de Palmares, apoiou-se em Nina Rodrigues, na expedição de João Blaer, em documentação editada e em autores nacionais, ou que escreveram sobre o Brasil colonial, como Oliveira Lima, Jaime Altavila, o inglês Robert Southey, o alemão H. Handelmann. Sobre a África Negra Pré-Colonial, sabia quase nada, comungando não raro com as fantasmagorias de origem colonial ou imperialista. (JUREMA, 1935, p.25)
As principais insurreições negras
O jovem advogado dedicou um capítulo, também breve, às “Principais insurreições negras”, nas quais destaca os movimentos baianos. “De 1807 a 1835, as classes dominantes da Baía viveram em constantes sobressaltos por causa das periódicas insurreições de escravos”. (JUREMA, 1935, p.43-49.) Para o marxismo revolucionário, a insurreição das classes trabalhadoras modernas é o principal caminho do assalto ao poder. Em 1928, para orientar as insurreições que se esperava fossem abertas pelo “Terceiro Período”, a III Internacional publicara, em alemão, sob o pseudônimo de A. Neuberg, o manual A Insurreição armada. Em 1939, durante a Revolução Espanhola, publicou-se um longo resumo mimeografado do livro, sob o título “Técnica da insurreição armada”. (Técnica, 1939.)
O quinto capítulo é dedicado aos “Negros nos movimentos populares”. Nele, Aderbal Jurema avança que os “escravos negros” “deram o seu forte contingente de rebeldia aos grandes movimentos populares que agitaram o governo colonial, imperial e republicano no Brasil”. (JUREMA, 1935, p. 51.) Refere-se à forte adesão de cativos ao levante em Recife, em fevereiro de 1823; a escravizados que reivindicaram a liberdade, em Campo Grande, na Paraíba, quando do movimento dos Quebra-quilos, de 1872-77; à revolta marinhagem negra da armada, em 1910, sob a direção do marinheiro João Cândido, que “encarnou as energias revolucionárias do negro brasileiro”. (JUREMA, 1935, p.36; MAESTRI, 2014.)
Em 1929, Benjamin Péret desembarcara no Rio de Janeiro, pela primeira vez, acompanhado por sua esposa, Elsie Houston, cantora lírica brasileira, ajudando a formação da pequena seção local da Oposição de Esquerda Internacional. Ele escreveu um livro sobre a Revolta da Chibata, intitulado “O Almirante Negro”, apenas dezenove anos após a eclosão da revolta, que teria sido empastelado na gráfica pela polícia, quando de sua expulsão do país, em 1931. Temos apenas quatro páginas datilografadas do seu escrito que, eventualmente, se apoiara em depoimentos de contemporâneos da revolta. Outra perda irrecuperável para nossa historiografia, devido à truculência da polícia getulista.
Saltos lógicos, tropeços históricos
No capítulo “Maus tratos na senzala e na roça” (JUREMA, 1935, p. 57-61), a menos de cinquenta anos do fim da escravidão, com ex-cativos ainda vivos, Aderbal Jurema descreveu cenários do trabalho escravizado onde “negros fugidos trabalhavam com gargaleiras ao pescoço e peias de ferro com manoplas bem pesadas, trancadas a cadeado”. Fala de cativos labutando com apenas “tanga de baeta encarnada amarrada à cintura com cipó caruru”. Realidades registradas em forma abundante por anúncios de fuga de cativos dos jornais do século 19. (KARASCH, 2000.) Refere-se a “senzalas” de engenhos nordestinos que eram “verdadeiros chiqueiros” e enfatiza torturas singulares aplicadas a cativas e cativos rebelados.
Ao comparar o “Negro escravizado e o negro assalariado” (JUREMA, 1935, p. 52-61), em contradição com o que propusera, retoma defesa de Gilberto Freyre da escravidão. Segundo ela, o primeiro viveria melhor do que o segundo, já que o escravizador devia —em teoria— cuidar de seu investimento, o seja, o cativo, e o capitalista, ao contrário, contratava e despedia seus trabalhadores ao seu bel-prazer. Sua explicação — que abstraía um tráfico negreiro despejando infelizes, aos borbotões e baixo preço, nos portos do Brasil — nascia, entretanto, da vontade de enfatizar a situação e a exploração do trabalhador negro contemporâneo. Sobre ele, coberto de razões, afirma que vivia sob a “escravidão dos salários miseráveis”. Realidade que se mantém, em forma substancial, em nosso país, neste fim de 2025.
Em breve conclusão, “O problema da liberdade”, refere-se a um cenário futuro que acreditava em gestação no Brasil e nas Américas: a elevação da consciência e da união entre os novos escravizados negros, pardos e brancos, em direção a um mundo de autonomia, sem preconceitos e desigualdade. (JUREMA, 1935, p.67-69.) Registre-se que não define este mundo futuro como socialista ou comunista, certamente, para não espantar os propostos “capitalistas democratas e anti-imperialista” de revolução perseguida, de braços dados com a burguesia progressista.
Burguesia revolucionária
Projetando essa visão para o passado, Aderbal Jurema afirmou que, quando da escravidão, fora uma “jovem burguesia brasileira”, “anti-escravocrata”, sobre a qual não apresenta qualquer precisão, que golpeara o “feudalismo luso-brasileiro” , procurando, na Abolição, “enfraquecer o sistema feudal de exploração e fortalecer a economia liberal do salário”. Tudo, segundo mandava o abecedário moscovita, que definia o Brasil como formação social semi-feudal e, obrigado, assim, a realizar sua revolução burguesa, antes de partir para aventuras socialistas.
Em uma latente tensão interna à sua narrativa, Aderbal Jurema apresentou a contradição, entre escravizados e escravizadores, como luta de classes, por um lado, e sugeriu a superação da escravidão impulsionada pela ação de facção burguesa progressista fantasmagórica, por outro. Em explicitação dessa tensão analítica, reclama que Caio Prado Júnior, em Evolução política do Brasil, de 1933, livro ao qual ele se refere como “interpretação materialista da história” brasileira, “tenha subestimado os movimentos dos negros, silenciando por completo sobre Palmares”. (JUREMA, 1935, p.45.)
Em Evolução política do Brasil, Caio Prado fizera pior do que ignorar, olimpicamente, a luta de classes na escravidão, o que era coerente com seu estranhamento ao método marxista. Ele desqualificou, como grosseira e ironizou a liderança de dom Cosme Bento das Chagas, o Negro Cosme, “defensor e protetor das liberdades Bem-Te-Vis” (liberais), o principal líder quilombola da Balaiada, no Maranhão. (PRADO, 2012, p.80.)
Desconhecendo a luta de classes na escravidão como elemento impulsionador da história no passado do país, Caio Prado Júnior podia apresentar, com maior coerência interna, ainda que, em contradição com a realidade histórica objetiva, sua leitura da superação da ordem negreira como obra das pressões externas e das impulsões pela modernização da economia e da sociedade do Brasil. Uma formação social que o historiador paulista via com uma natureza capitalista, desde suas origens, em interpretação de forte inspiração weberiana, em tudo estranha ao marxismo.
Dupla opressão
Ainda que em forma sumária, destaca-se, em Insurreições negras no Brasil, a assinalada compreensão do autor de que o negro, quando da escravidão e após ela, sofrera uma dupla opressão, de “classe e de raça”, como proposto. E, lembra, com acuidade, a dominância e determinação da opressão de classe sobre a de raça. Rejeita os “muitos dos nossos historiadores que querem dar ao sentido revolucionário do negro um caráter profundamente religioso”. Avança que esse impulso nasceria, comumente, de tensões da luta contra a exploração, pela terra, pela liberdade.
Corretamente, em uma forma um tanto quanto mecanicista, lembra que a “cultura maometana e cultura católica agiam como super-estruturas de sub-estruturas econômicas em antagonismos irreconciliáveis”. Exemplificando sua proposta, recorda que as cruzadas contra o mundo árabe não “foram motivadas unicamente” pela vontade de reconquistar o “santo sepulcro”. (JUREMA, 1935, p. 28-29.) Cinco anos mais tarde, o historiador marxista Christopher Hill, no seu clássico A revolução inglesa de 1640, descreveu a luta de classes, que abrira o caminho na grande ilha para a ordem capitalista, galvanizada por interpretações opostas sobre a Bíblia. (HILL, 1977.)
Mudando de Trincheira
O germinal livrinho, de 1935, foi praticamente esquecido. Poucos meses após a sua publicação, os militantes comunistas, socialistas, anti-fascistas começaram a ser perseguidos, presos, torturados, mortos, quando da repressão ao movimento de novembro daquele ano. E, sobretudo, após o golpe getulista de 1937, conheceram uma longa repressão, da qual saíram, apenas, após a “redemocratização”, em 1945. (NASSER, 1947.) Sobreveram raros exemplares da edição original do ensaio, publicada, em inícios de 1935, pelas Edições da Casa Mozart, que funcionou nos anos 1930-40, em Recife.
Apesar do avanço de paradigmas analíticos, Insurreições negras no Brasil teve apenas uma reedição, com “feição fac-similar”, na administração do governador pernambucano Gustavo Kruse [1986-87], do PDS, para homenagear o autor, havia anos, convertido ao conservadorismo. [JUREMA, 1935, p.7-8.] Nesse momento, Aderbal Jurema mudara de trincheira, uma outra razão para o olvido-rejeição do trabalho, pela esquerda e, possivelmente, pelo próprio autor.
Quando da “redemocratização” de 1945, Aderbal Jurema, em uma pirueta política, abandonara as veleidades comunistas e empreendera a sua marcha em direção à reação política e social, mais confortável, segura e remuneradora, que o tornou, quando do Golpe de 1964, em apoiador da Arena, senador biônico e, a seguir, membro do PDS e do PFL. Morreu de câncer, em 1986, aos 74 anos.
Insurreições negras no Brasil teria inspirado certamente Clóvis Moura, que o citou , retomando e ampliando, significativamente, qualitativa e quantitativamente, as teses de 1935, em seu livro referencial, publicado vinte anos mais tarde, como vimos. Eugene Genovese, o destacado historiador estadunidense da escravidão, ao abordar a historiografia dos levantes dos escravizados nas Américas, citou o trabalho de Aderbal Jurema, assim como o de Luiz Luna, de 1968, O negro na luta contra a escravidão, em Front Rebellion to Revolution, de 1979. (GENOVES, 1992, p. 150.)
* Agradecemos a leitura da linguista Florence Carboni
Mário Maestri, 77, sul-rio-grandense, historiador, é autor de, entre outros livros, Filhos de Cã, Filhos do Cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira. Porto Alegre: FCM Editora, 2022.
Bibliografia citada
BROUÉ, P. & TÉMINE, E. Revolución y la guerra de España. https://www.marxists.org/espanol/broue/1961/revolucion-y-guerra-de-espana.pdf
CARDOSO, Ciro Flamarion. El modo de producción esclavista colonial en América. Assadourian et al. C.S. et al. Modos de producción en América Latina. Buenos Aires: Siglo XXI, 1973.
CARDOSO, Ciro Flamariam S. Escravo ou camponês. O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987.
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