Uma coisa que ninguém diz. Provavelmente não se tenha percebido. É preciso denunciar a ideia de lugar de fala, não apenas porque ela é uma costura mal feita do pós-estruturalismo e de outros movimentos interseccionais que emergem na segunda metade do século XX. Deve ser denunciada também como um deslocamento do conceito de lugar, tal como Marx e Engels exprimiram como elemento geográfico na economia política.
É impressionante como o baixo nível de conhecimento acerca dos dois autores cria uma adesão irrefletida a todos os tipos de modismos que a indústria cultural empurra para as pessoas que se autointitulam de esquerda.
Vou demonstrar e provar abaixo como o famigerado lugar de fala é um deslocamento geográfico, ao mesmo tempo que trata de uma distorção teórica que substitui a ideia de lugar como parte de uma geografia material e económico política pela noção torpe de que o “lugar” deve ser visto apenas como âmbito subjetivo. A premissa é a de que a geografia e a economia política são escamoteados para criar uma espécie de “campo subjetivo autoimune”, que é o estrito foco pelo qual os seus enunciados são proferidos, subentendendo apenas relações de poder que pautam querelas subjetivas. É isso o que chamam de “lugar”, ocultando conscientemente a economia política como local pelo qual o campo de batalha e da exploração da vida realmente se dá.
Mesmo lá onde subentendem a ideia de espacialidade implicada de fora para dentro das subjetividades, são assertivos na ideia de que é um espaço condicionado à dinâmica relativa das subjetividades (algo que remonta ao pensamento kantiano, na relação entre espaço, tempo do entendimento e racionalidade). Nas palavras de uma das representantes do movimento (Patricia Hill Collins):
“Políticas de identidade e a epistemologia do ponto de vista constituem duas dimensões importantes da resistência epistêmica para grupos subordinados (…) Ao reivindicar a autoridade da experiência, a epistemologia do ponto de vista defende a integridade de indivíduos e grupos na interpretação de suas próprias experiências.”
Como se percebe, trata-se de um espaço artificial, ficcionado idealmente, por meio de que aquilo que é visto como estando fora de si é necessariamente uma projeção apriori de uma interioridade como campo de enunciação, um ponto de vista, um perspectivismo. No mesmo sentido, arremata outra representante: “Há uma distinção clara entre aquela marginalidade que é imposta por estruturas opressivas e aquela marginalidade que se escolhe como um local de resistência, como um lugar de abertura radical e possibilidade.” (Bell Hooks). O “local de resistência” é um espaço antecipadamente imaginado, ficcionado, “um local de abertura radical” que se “escolhe”, levando em consideração apriorística “sujeitos políticos [autores e donos] de suas próprias narrativas.” (Djamila Ribeiro, O Que É Lugar de Fala?).
É nesse sentido que, conforme foi dito, tal local escolhido como campo de enunciação é encobridor das dinâmicas complexas e objetivas da economia política como campo de indexação da espécie à civilização do capital. Ora, como Marx diria em contrapartida a esse perspectivismo protoniezschiano do conceito de “lugar de fala”:
“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, mas sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” (Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte). De acordo com Marx, e diferentemente do que acima é mencionado, a escolha como campo de autonomia de atuação num espaço previamente ficcionado é uma abstração que desconsidera a materialidade histórica, ou melhor, “as circunstâncias da escolha”.
No limite, surge uma ironia. Quando os adeptos do “lugar de fala” desconsideram a economia política (as circunstâncias da escolha), comprometem toda a gênese do processo subjetivo (seu campo principal de abordagem). Ao errarem propositalmente na gênese da subjetividade por velar os processos econômico políticos, manufaturam o equívoco sobre os mecanismos de constituição da subjetividade. O que compromete a maior parte de suas abordagens.
Assim, não se trata aqui de subvalorizar a subjetividade ou retornar a um marxismo purista como esfera de compreensão da vida dos explorados e oprimidos. Trata-se de estabelecer uma crítica concreta sob o horizonte de denunciar o problema do sequestro do capital em torno de pautas antiopressão e antiexploração absolutamente legítimas, o que se dá através do deslocamento da ideia de lugar a partir de uma distorção epistemológica. Tal distorção é um erro proposital acerca da genética da subjetividade, o que gera o equívoco da incompreensão de como a própria opressão subjetiva obetivamente ocorre.
Pois bem, aqui se trata de denunciar o que foi expresso como uma espécie de distorção epistemológica e fundamentalmente retórica, a que infelizmente muitas pessoas ditas de esquerda aderem. Com isso, promovem um caldo de cultura que mistura um Marx kantianizado com ideologias do imperialismo, tal como o pós-estruturalismo.
O aspecto da distorção está assim esclarecido. Agora falemos acerca de como ocorre mais detalhadamente o deslocamento da ideia de lugar. Retomemos Engels e Marx a partir da lembrança de um exemplo musical: a música Another Break In The Wall. Composição criada pela banda Pink Floyd para realizar uma crítica ao sistema de ensino britânico.
Sem dúvida, a música é um hino, um libelo de revolta. Muito boa. Mas ela se coloca como um produto cultural local, que fala, que é anunciada de um “lugar”. Mas o que Engels e Marx falariam a respeito desse lugar não pós-estrutural, quando tomado como chave de leitura universal para o fenômeno da educação institucionalizada em todos os países do globo, incluindo o Brasil?
Eles diriam o seguint: o contexto de produção inicial e circulação musical é inglês. Os discentes que se rebelam são do tipo social de classe média inglesa. Se fossem transpostos ao Brasil, seria como se a música tratasse especificamente de alunos de empresas da educação, como o Ari de Sá, o Fárias Brito, Christus, 7 de setembro etc. Empresas que absorvem os filhos das burguesias e classe média alta. Para este lugar, a crítica interna à música do Pink Floyd é valida, apenas considerando a particularidade dos filhos das burguesias e pequeno burguesias locais.
O ensino privado é de fato um rolo compressor autoritário, com professores cumprido (embora assalariados) bem a tarefa de educar elites para que a burguesia se mantenha acreditando em si mesma. A ideologia burguesa deve circular e ser fomentada em seus próprios quadros, em sua prole. Caso tenha a moral rebaixada, perdem o combate contra os oprimidos e explorados.
Quando Pink Floyd lançou a música, mostrava ali também que havia uma ambiguidade, pela qual os filhos da classe média e pequeno burguesa poderiam ser também traidores de classe, voltando-se contra o modelo sufocante da escola em que estavam inseridos à época de Margareth Tatcher. A ideologia burguesa de fundo dos conteúdos escolares silenciosamente dizia: não existe sociedade, apenas indivíduos e famílias. Esse bunker ideológico burguês deveria ser enfrentado, ter seus muros destruídos, dizia Pink Floyd. A mensagem era: seja um traidor de classe, você é muito mais do que sua família. De fato, trata-se de uma ótima música.
Contudo, no ensino público brasileiro parece que as coisas se invertem. A forma de crítica muda internamente. As vítimas também são os professores, reféns de humilhações das mais diversas, enquanto são figuras de proa no apoio aos alunos que advêm de condições de vida extremamente difíceis. Os próprios alunos chegam às escolas públicas sob a batuta da ideologia tatcherista e das igrejas, as quais repetem em alto e bom som: não existe sociedade, apenas indivíduos e famílias (isso para os casos de quando há de fato família, e não apenas indivíduos no limbo, colonizados pelas perfumarias sistema). Ora, Another Break In The Wall não cabe neste lugar distinto da economia política brasileira: a escola pública. Essa seria a conclusão dos autores de Manifesto Comunista.
Engels e Marx têm uma dica analítica a respeito da posição que uma determinada ideia surge para ver se está ou não adequadamente colocada no local em que o país está localizado na economia política mundial. A crítica deve ser uma categoria científica inserida como razão precisa do lugar a partir do qual ela provém. Precisamos assim antecipar também se está ou não deslocada do âmbito em que foi produzida.
A análise comparativa dos países é antes de tudo a análise do lugar em que cada um ocupa na cadeia produtiva mundial de geração de riqueza e mais-valor, à custa do sangue de inocentes.
Levando este aspecto em consideração, Marx e Engels abordaram as ideias de “fora do lugar”, que eram produzidas na Alemanha, por exemplo. Tratavam desse tema quando queriam denunciar pautas que só conseguiriam efetivamente ser realizadas na Inglaterra, em função das disparidades econômicas dos dois países. Ali tratavam de possibilidades e impossibilidades revolucionárias nos devidos locais, mas também denunciavam aquilo que era estúpido nos modos de enunciação que eram proferidos no tocante ao ocultamento da materialidade histórica de cada país.
Diferentemente do identitarismo, sua abordagem da ideia de lugar estava intimamente relacionada ao desvelamento de interesses ideológicos das falas e interpretações que usavam da filosofia para representar os interesses da burguesia, cujo objetivo também seria o de construir discursos que justificasse sua manutenção no poder, bem como ocultar qualquer vestígio de denúncia totalizante do capitalismo a partir de seus modos de acumulação.
Esse é um dos aspectos mais poderosos de Engels e Marx. E lá onde está o que há de mais poderoso nos autores existe, nos adeptos do atual lugar de fala, a tentativa de plagiar os autores. Mas não se trata de qualquer plágio. Sob mediação do foucaultianismo mais rasteiro, tais adeptos produzem o ardil da distorção pela qual a economia política burguesa jamais pode entrar em cena. Ou seja, ao tratar de lugar de fala sob esse ângulo criam exatamente um conjunto epistemológico através de que todas a suas ideias e disputas aparentemente legítimas são literalmente ideias fora do lugar. Quem mais fala de lugar está nele ausente do ponto de vista filosófico. Deslocando a ideia de lugar para o campo parcial estritamente intersubjetivo, não fazem mais do que replicar as formulações filosóficas neohegelianas. Algo que Engels e Marx denunciavam como um ardil burguês disfarçado de perfumarias da rebeldia.
Ora, se contra Marx e Engels a premissa do lugar de fala também emerge, nada mais é do que um léxico que configura um conjunto de falsas críticas, um conjunto de ideias fora do lugar, inclusive por ser ideologia importada dos EUA, a qual cai como uma luva para as instituições do capital dependente brasileiro, cujo Estado está sempre de joelhos, inclusive no modo de reprodução das cartilhas imperialistas de monopólio de cultura (Soft Power).
No limite, os adeptos do lugar de fala produzem exatamente o oposto do que aparentemente defendem. São a própria expressão do não lugar, o que para a burguesia atlanticista é extremamente conveniente. E mais, no limite, tais representantes da ideia de lugar de fala estão como que situados historicamente no século XIX. Do ponto de vista da construção das ideias são pré-marxistas.
Pensando-se inovadores, depositários de um pensamento de vanguarda, do ponto de vista da crítica da economia política se colocam não apenas como grupos que representam ideias fora do lugar, em nome de um pretenso lugar recodificado. São grupos que emergem alienada e diretamente com uma estrutura de pensamento atávica. Nada melhor para representar reacionariamente a posição que o Brasil ocupa na cadeia produtiva mundial, ou seja, um lugar de economia dependente em todos os níveis, inclusive do ponto de vista cultural e filosófico.
Tendo em vista que a economia brasileira é uma mímese de baixa intensidade do capitalismo mundial (ou melhor, o seu fazendão), as ideias que dele emergem são também parte do problema, a saber: a subalternidade relativa ao atlanticismo e seu domínio sobre as formas de pensamento que se dizem autônomas. Os representantes do lugar de fala são parte das sucursais de subalternidade intrassistêmica (assim como a extrema direita que bate continência para a bandeira norte-americana). E é nesse sentido que suas pautas em favor dos oprimidos são inerenmente contra os próprios oprimidos. Essa é a consequência máxima da questão.
Não existe subjetividade que se constitua fora do sistema, cuja economia política demarca as escolhas. Esse é o ponto de partida central do problema. Negar o que aqui está expresso é recair no idealismo. Não se trata de não tocar no tema das opressões. Tocar no assunto sem explicitar as distorções e deslocamentos retóricos sob o horizonte do idealismo em que recaem é um modo de impulsionar a dinâmica do capital, lá mesmo onde os movimentos são sequestrados pelas pressões e subornos econômicos do próprio capital. Algo que ocorre inclusive do ponto de vista dos financiamentos públicos e privados para impulsionamento de algumas teorias em detrimento de outras.
Está provado, portanto, que a ideia de lugar de fala é uma distorção e, fundamentalmente, um deslocamento conceitual não desinteressado. Sendo este o caso, suas formas de enunciação estão muito, muito abaixo do que, por exemplo, o Pink Floyd criou para seu contexto específico, uma vez que para a banda, não se tratava de uma ideia fora do lugar.
