Nos 50 anos do 25 de Abril

 / BANDEIRAVERMELHA001

Sinal dos tempos, e ao contrário do que acontecia à 20/30 anos, os festejos comemorativos do 25 de Abril de 1974 tornaram-se uma coisa anódina.

Longe vão os tempos das acaloradas discussões, comentários e análises na comunicação social e em debates de todo o tipo, sobre o PREC e o “Verão quente”; os golpes spinolistas de 28 de Setembro de 1974 (dito da “maioria silenciosa”) e do 11 de Março de 1975; as eleições para a Assembleia Constituinte; o Conselho da Revolução; as nacionalizações, as ocupações, a reforma agrária; a “entrega das colónias aos movimentos de libertação”; a “indisciplina nos quartéis; ”o ultimato do “Grupo dos Nove” na assembleia do MFA de Tancos; a queda do 5º Governo Provisório, de Vasco Gonçalves; o golpe de 25 de Novembro de 1975 para “repor o verdadeiro espírito do 25 de Abril”, liderado por Eanes; o terrorismo de direita e o apoio da hierarquia da igreja católica, de Mário Soares, Sá Carneiro, Alberto João Jardim, Mota Amaral e CDS a esse terrorismo; as manobras sediciosas do embaixador dos EUA em Portugal, Frank Carlucci, acolhidas com entusiasmo pelos spinolistas, dirigentes do PS, PSD e CDS.

Hoje, quando se comemoram (?) os 50 anos do golpe de Estado do 25 de Abril, tudo está reduzido a declarações tão ligeiras quanto vazias sobre a liberdade, a democracia, o fim da guerra, a libertação dos presos. Depois, para dar colorido à coisa, lá se vão desenterrar os “heróis” convenientes – Salgueiro Maia, Vasco Lourenço e Eanes (transformado cada vez mais numa espécie de salvador da pátria e reserva moral do estado democrático a quem todos devemos reverência) -, deixando no esquecimento aqueles que ousaram colocar-se ao lado do povo, como por exemplo Otelo, Dinis de Almeida, Carlos Fabião, Campos de Andrada, Cuco Rosa, Álvaro Fernandes, Varela Gomes ou Mário Tomé. Recorda-se ainda, de forma asséptica, o “controverso” General Spínola, sem nunca mencionar a sua admiração pelo nazismo, a sua responsabilidade nos crimes de guerra cometidos em Angola, nos anos de 1961 a 1963, ou o seu papel na contenção do golpe da ala mais esclarecida da ditadura, encabeçado por Botelho Moniz, em 1961, para afastar o intransigente Salazar, devido ao eclodir da guerra de libertação em Angola e à recusa deste em negociar com os movimentos de libertação uma qualquer solução que permitisse a sobrevivência do império (um pouco à semelhança do que os franceses, mas principalmente os ingleses haviam feito em África).

De comum com os tempos que vivemos, o silenciamento (hoje total) sobre a ofensiva dos trabalhadores, que foi o verdadeiro impulso por trás daquela sucessão dramática de acontecimentos. Primeiro, com a inesperada ofensiva popular, apoiada e incentivada pela extrema esquerda, contra as tentativas do General Spínola e dos seus governos provisórios para tutelar a atividade sindical, limitar a criação de partidos políticos, manter na prisão os presos políticos por si considerados mais perigosos, manter a PIDE/DGS em funções, continuar a guerra colonial o tempo necessário até à criação das condições necessária à implementação do seu projecto neocolonial, tal como havia defendido no seu livro “Portugal e o Futuro”; a sua sede de poder, tentando concentrar nas suas mãos o essencial do poder de Estado, de estilo presidencialista, complementado por um parlamento com poderes limitados. Ofensiva popular esta que teve de se confrontar com a oposição do PCP, que integrava os governos spinolistas (o que fez com que muitos militantes seus aderissem aos protestos promovidos pela estrema esquerda), o que deu à esquerda revolucionária uma força e um protagonismo inesperado. Foi o início do PREC, responsável pelo sucessivo falhanço dos golpes de Palma Carlos, 28 de Setembro e 11 de Março.
Com o 11 de Março e a fuga de Spínola, é criado o Conselho da Revolução, a esquerda militar passa a dominar a cúpula da estrutura militar e o PCP altera a sua posição de oposição aberta ao movimento popular revolucionário, passando a encabeçá-lo para o controlar e tentar manter dentro dos fluidos limites legais consentidos pelo MFA.
Inicia-se então a segunda fase do PREC, que paradoxalmente marca o declínio desse movimento popular revolucionário, precisamente quando ele parecia ter mais força e ser capaz de levar tudo à sua frente. É certo que a banca é nacionalizada e as ocupações de terras no Alentejo crescem de forma imparável, tal como os saneamentos, as greves, etc. Só que a crescente dependência do movimento popular do aval e do apoio das unidades militares de esquerda vai fazer com que este perca independência e se veja cada vez mais enredado no “vai e vem dos ministérios”, convicto de que a aliança POVO-MFA os iria levar ao socialismo, cabendo aos militares encaminhar o país para o socialismo e aos trabalhadores dar-lhes todo o apoio para que tal realidade se materializa-se.

Pesem todas as limitações do movimento popular revolucionário, a sua menoridade, ele foi para os ricos de tal forma assustador que, quando a ele raramente se referem é para o denegrir, caricaturar, apelidar de “terror anarco-populista” praticado por “irresponsáveis”. O que é compreensível: a burguesia sente calafrios só de pensar que os explorados podem um dia voltar a “tomar o freio nos dentes”.

Lamentavelmente a “esquerda” ordeira, a que temos, alinha sem pejo nesta celebração democrática, onde não há sequer uma palavra sua para confrontar o poder saído do golpe de 25 de Novembro com o PREC. O melhor que conseguem, quando a estrema direita se torna a terceira força política, é esbracejar aflitos e apelar para que o desfile de 25 de Abril deste ano seja o maior possível. Um desfile, onde em “democrática comunhão” desfilarão lado a lado direita, extrema-direita e esquerda parlamentar e extraparlamentar. Será que não percebem (as esquerdas) que estão a celebrar o regime saído do golpe reaccionário de 25 de Novembro e não o movimento que sonhou criar um mundo de iguais? Ou será que isto já não lhes interessa?

FOI ASSIM DURANTE O PREC

Como já lá vão 50 anos, e o tempo faz o seu trabalho ajudando ao esquecimento e ao refazer da história, aqui ficam alguns testemunhos extraídos dos livros Portugal, the impossible revolution, de Phil Mailer e o Futuro era agora, Edições Dinossauro.

Somos 15 famílias, com 20 crianças, 100 pessoas no total. O prédio não tem sequer instalações sanitárias, os tectos estão a cair, há humidade por todo o lado. Nem os porcos poderiam viver aqui. Pagamos 600 a 1000 escudos por pequenos apartamentos. A senhoria tem muitos prédios como este. Como nos recusámos a pagar a renda de Setembro enquanto não fizesse obras, meteu-nos em tribunal. Estamos ameaçados com uma ordem de despejo Isto não é democracia, isto é fascismo…
Não consentimos que ninguém seja despejado, exigimos obras urgentes, apelamos à unidade de todos os trabalhadores na luta por casas boas.”
Passados dias os moradores invadiram a Câmara Municipal do Porto, juntamente com outros moradores, e conseguiram a anulação das rendas em atraso.

Em Janeiro e Fevereiro de 1975 as ocupações de casas multiplicam-se. Mansões e palácios desabitados são ocupados, Em muitos casos não havia qualquer legalização nem se pagava renda. Abriam-se centros de trabalho, infantários, creches e clínicas populares. Em Campo de Ourique, Lisboa, a comissão de moradores, depois de ter feito um levantamento de 400 casas desabitadas, começou a ocupá-las, fixando uma “renda social” aos ocupantes. Em Abril de 1975, só em Lisboa, as casas ocupadas já atingiam as 5 mil. O governo, alarmado, adoptou uma política mais dura, recusando legalizar todas as ocupações posteriores a uma determinada data. O PC proibiu os seus militantes de tomar parte nessas acções “descontroladas”.

A Interempresas, criada por iniciativa da EFACEC-INEL, em princípios de 1975, definiu-se como uma corrente operária que pretendia opor-se simultaneamente ao legalismo da Intersindical (o ministro do Trabalho era membro do PCP) e ao divisionismo fomentado pelo PS e pelo PSD. Rapidamente agregou comissões de algumas das maiores e mais combativas empresas do país: além da EFACEC, TAP, Lisnave, TLP, Setenave, ENI, Siderurgia, Cergal, Plessey, Timex, Applied Magnetics, Messa, etc.

“O 7 de Fevereiro foi, para mim, uma jornada histórica. Resolvemos protestar contra o desemprego e contra a entrada no Tejo de uma esquadra da NATO. A rádio começou logo de manhã a avisar que a manifestação estava proibida pelo MFA, o Octávio Pato [do PCP] a fazer avisos que ninguém fosse, que havia o perigo de provocação, que os marinheiros americanos deviam ser recebidos com recordações do Portugal democrático, etc. Não ligámos. Convergimos para o Marquês de Pombal. Era gente que nunca mais acabava, tudo em fato-macaco a gritar “Fora a NATO, fora a CIA, Independência Nacional”. Os tipos ficaram acagaçados e à última hora lançam um comunicado a dizer que a manifestação estava autorizada. O Jaime Neves estava na Duque de Loulé com a tropa e com os chaimites, para não nos deixar passar junto à embaixada americana, mas passámos mesmo. Por fim, na Praça de Londres, estavam os soldados do RALis a proteger o Ministério do Trabalho. Começou tudo a gritar “Os soldados ao lado do povo”, eles viraram as armas para baixo e começaram a saudar com cerrado. Foi a primeira grande união de trabalhadores e soldados.”

Nesse Verão, o movimento fabril cresceu ainda mais e as lutas sucederam-se às centenas. Em Maio de 75, os 1100 operários da Penteação de Lãs, em Unhais da serra, propriedade dos irmãos Almeida Garrett (um deles fora deputado sob o regime fascista), decidiram entregar a gestão à Comissão de Trabalhadores. Uma herdade de 300 hectares, propriedade dos dois irmãos, foi ocupada e ambos fugiram para Espanha. Na Marinha Grande, 700 operários ocuparam a fábrica de vidro Manuel Pereira Roldão, sanearam a administração e assumiram a gestão da empresa. A fábrica de iogurtes Bom Dia foi ocupada pelos seus 19 trabalhadores, que entraram em autogestão e conseguiram apoio do governo. Os administradores da companhia agrícola e turística Turiagra foram saneados pelos trabalhadores. Os 60 trabalhadores da firma de fibra sintética Manuel Esperança Vieira, no Porto, entram em autogestão. O mesmo fizeram os 55 assalariados da fábrica de bolachas Cuétara, em Pombal. Em Setúbal, os operários da Sapec (adubos) sequestraram dois administradores, impedindo o encerramento da fábrica. Em Julho, um operário da Empresa Fabril de Malhas, em Coimbra, relatava que tinham organizado piquetes dia e noite para impedir o patrão de fechar a empresa, e como tinham vendido parte da produção para custear o pagamento dos salários. A pedido dos trabalhadores o MFA prendeu o patrão.

“Durante o Verão quente, lembro-me de termos ido a uma cooperativa no Torrão. Um camarada nosso, do secretariado da cooperativa, tinha sido preso pela GNR, que andava ansiosa por criar conflito. Fomos lá para dar apoio e organizámos logo uma concentração junto ao posto da GNR. Os gajos não ousaram dispersar-nos: era muita gente, umas 200 pessoas, especialmente mulheres. No dia seguinte o homem foi libertado”.

Com os plenários de empresa quase permanentes, as comissões eleitas estavam sob vigilância apertada do conjunto dos trabalhadores. Houve muitos casos de membros e até de comissões no seu conjunto demitidas em plenário. Na Provimi, em Alverca (rações), todos os membros da comissão foram destituídos em plenário, por terem tentado ocultar informação sobre os salários que recebiam.

“A seguir ao 11 de Março, virámo-nos para o saneamento da nossa unidade [Caçadores 6, Castelo Branco] . Havia lá muitos elementos reaccionários e então a força dos soldados começou a vir ao de cima. Fizemos uma assembleia onde estava toda a gente, todos com direito a voto, em situação de igualdade, Saneámos dois majores, um por estar feito com a direita quando do golpe, o outro, porque era conhecido por não fazer nada. Os soldados entenderam, e bem, que era um parasita. Os dois foram para a rua, imediatamente. As sentinelas tiveram ordens para os não deixar entrar.”

A 17 de Maio de 1975, perto de cem assalariados ocuparam uma herdade de 200 hectares em Montargil, com o apoio do IRA (Instituto de Reorganização Agrária, que fornecia créditos) e do MFA. O objectivo dos trabalhadores não era dividir a terra mas explorá-la em cooperativas (mais tarde Unidades Colectivas de Produção). O movimento alastrou nos meses seguintes de forma imparável. Em começo de Agosto eleva-se a 206 mil hectares a área de 330 herdades ocupadas por cerca de 6000 trabalhadores rurais, no Alentejo e grande parte do Ribatejo. Ao longo do mês, as ocupações prosseguiram a um ritmo diário. Para impedir os proprietários de levarem tratores, alfaias e colheitas, os ocupantes montavam piquetes, muitas vezes armados com caçadeiras. Em muitos casos as cooperativas acabadas de formas vendiam a cortiça e o cereal armazenado para pagar salários. “Um dia oiço na Rádio Renascença, a rádio ‘ao serviço da classe operária e do povo trabalhadores’, um apelo dos trabalhadores que tinham ocupado o Palácio Foz, onde funcionava a Secretaria de Estado da Comunicação Social. Fui logo para lá. A polícia tinha ocupado o rés-do-chão e encurralado os ocupantes no primeiro andar. Cá fora começou a engrossar a multidão. Às vaias e pedradas ripostaram os polícias com gás lacrimogéneo. As bombas caíam no chão e havia pessoal que corria, apanhava-as e voltava a lança-las para dentro do edifício. Eis senão quando chegam dois jipes de polícias militares. Foi o delírio: ‘Os soldados são filhos do povo!’ Os ocupantes, às janelas do primeiro andar, a bater palmas. Então, os militares deram ordem de rendição à polícia. Abriu-se uma porta e, de braços no ar, lá foi saindo a malandragem toda, debaixo de insultos e vaias. Mais uma vez, uma ordem do Governo Provisório era ultrapassada pela ‘populaça’”.

António Barata

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