A pandemia e as novas formas de exploração do trabalho

Luiz Teixeira

Por um lado, diversos trabalhadores tiveram que se reinventar e se adaptar de uma hora para outra às novas exigências que o teletrabalho impõe. Por outro lado, milhões de trabalhadores no mundo inteiro não podem se dar ao “luxo” de trabalhar remotamente, devido ao próprio caráter do tipo de trabalho concreto que realizam.

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A pandemia do novo coronavírus, entre tantos problemas, deflagrou entre certas camadas médias da população. Profissionais liberais como advogados, contadores, engenheiros, oficiais de justiça, programadores e outros profissionais da área computacional, gráfica e midiática, além de professores e de certos especialistas médicos, passaram a atuar no chamado home office ou teletrabalho, através de uma imposição do capital, e em raros casos, por escolha própria.

Esse tipo de trabalho carrega consigo algumas contradições, tal como ocorre com todas as formas de exploração laboral. Por um lado, diversos trabalhadores tiveram que se reinventar e se adaptar de uma hora para outra às novas exigências que o teletrabalho impõe. Por outro lado, milhões de trabalhadores no mundo inteiro não podem se dar ao “luxo” de trabalhar remotamente, devido ao próprio caráter do tipo de trabalho concreto que realizam, pelas necessidades urgentes que o momento exige (como é o caso de médicos intensivistas, enfermeiros, anestesistas, fisioterapeutas etc.), ou sobretudo pela posição de classe que ocupam no interior do sistema capitalista, tendo que se expor cotidianamente aos riscos que a pandemia trouxe e a outros tantos preexistentes a esta.

Operários fabris, garis, balconistas, repositores e analistas de estoque, caixas de supermercados, de farmácias e de outros inúmeros estabelecimentos, empregadas domésticas, camareiras, motoristas, caminhoneiros, entregadores, entre tantos outros trabalhadores, sentem diariamente as agruras da maldita divisão entre trabalho manual e intelectual e sua intensificação durante uma pandemia. Nessa equação não podemos esquecer da enorme massa de desempregados e subempregados, como as centenas de milhares que trabalham por aplicativos de prestação de serviços que, junto com categorias de trabalhadores citados acima, fazem parte das camadas da população mundial que mais sofrem com os efeitos da pandemia.

Nessa altura, fica claro de mais uma forma, entre tantas existentes, a velha e persistente, mas não por isso insuperável, contradição entre capital e trabalho, que passou a existir tão logo o capitalismo passou a completar os seus primeiros passos, seja em escala nacional ou internacional.

Tal contradição se apresenta no fato de que as camadas trabalhadoras mais maltratadas pelo sistema do capital, com péssimas condições de trabalho, jornadas de trabalho massacrantes, cortes de direitos, rebaixamento de salários e das suas condições de vida, se mostraram justamente as camadas mais essenciais durante a pandemia e para o próprio funcionamento do sistema capitalista.

A pandemia nos mostrou o quanto esses trabalhadores são importantes e como deveriam ser mais valorizados. Por outro lado, o sistema capitalista em sua lógica voraz de funcionamento ininterrupto e busca por lucros cada vez maiores, aproveitou o surgimento da Covid-19 para impor maior precarização e exploração do trabalho a setores já precarizados e superexplorados desde muito antes da pandemia, como é o caso de professores e de outros trabalhadores da indústria, comércio e serviços.

Precarização ainda maior do trabalho docente

De maneira não planejada e muito apressada, milhões de professores no Brasil e no mundo tiveram que se adequar a uma realidade a qual não estavam familiarizados, pelo menos não totalmente: o ensino remoto. Atividade que envolve o planejamento, gravação e edição de vídeo-aulas, com a preocupação de ser o mais didático e menos cansativo aos alunos possível, gestão de plataformas que contemplem o máximo de alunos por turmas, como grupos de WhatsApp e Google Sala de Aula, para envio e recebimento de atividades, tira-dúvidas etc.

Todas essas tarefas citadas demandam muito tempo e trabalho por partes dos docentes, além de outras atividades que estes sempre fizeram: muito estudo, planejamento de conteúdos pedagógicos, preenchimento de inúmeros instrumentais de ensino (como diários de classe, plano anuais, bimestrais e semanais de ensino e de controle de atividades elaboradas, enviadas e recebidas), correção de atividades, atribuição de notas, avaliação de desempenho dos estudantes e cálculo de médias bimestrais, com turmas que – na rede pública brasileira, lotação de turmas que se repete por quase todo o Brasil – quase sempre ultrapassam os 40 alunos, num total de 13 turmas e 520 alunos em média,  no caso do professor do ensino básico que possui uma jornada de trabalho de 40 horas semanais. O que implica 520 atividades, trabalhos e provas diferentes para receber, corrigir e avaliar num curto de espaço de tempo como um bimestre letivo, ou menor que isso, tendo em vista que o processo de ensino e aprendizagem e por conseguinte avaliação, é permanente ao longo de todo o ano letivo.

E em muitos casos sem poder optar entre uma plataforma de ensino ou outra para a melhor realização do trabalho, pois milhares de alunos não possuem internet banda larga em casa e dependem exclusivamente de um plano de internet 4G, isso sem mencionar aqueles alunos que fazem parte de famílias que sequer conseguem se alimentar direito, devido a imensas limitações financeiras, quanto mais ter acesso a internet. Nesse caso e não poderia ser diferente, o acesso a tecnologias virtuais passa a ser uma das últimas prioridades para essas famílias.

Além disso, todo esse trabalho docente vem sendo realizado sob enorme pressão dos sindicatos de escolas particulares – que só pensam nas baixas no número de matrículas que obtiveram devido a Covid-19 – e de setores políticos e da sociedade civil, sob o mote de que os professores não trabalham ou trabalham muito pouco durante a pandemia, uma vez que não estão indo às creches, escolas e universidades.

Sobre essa questão, lembremos da iniciativa do governo federal  e do congresso nacional de congelar o salário de professores, além de outros inúmeros servidores públicos até 2022 e das várias manobras que Bolsonaro, Guedes e seus líderes na câmara federal fizeram para adiar a votação que tornou permanente o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB) e das tentativas de desvincular seus valores para outras áreas além da educação.

A política econômica do governo Bolsonaro perante a crise e a situação atual dos trabalhadores

No que diz respeito a outros trabalhadores formais e informais, da indústria, comércio e serviços, além dos desempregados, o governo adiou o máximo que conseguiu a ajuda a esses setores para enfrentarem a pandemia. Uma primeira proposta nesse sentido na esfera econômica se referia a um auxílio miserável de R$ 200 mensais por três meses. A pressão popular, de parlamentares, partidos, sindicatos, e de setores judiciais, civis e da imprensa não alinhados com o governo federal o fizeram ceder e aumentar o valor do referido auxílio para R$ 600 mensais pelo mesmo período de tempo, melhor que a proposta anterior, mas ainda assim um auxílio de forme e insuficiente para atender a todas as necessidades dos trabalhadores e suas famílias.

Projeções econômicas de organizações de projeção nacional, como a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mundial, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), para uma total catástrofe da economia brasileira em 2020, fez o governo prorrogar o auxílio emergencial por mais dois meses e há estudos da área econômica do governo para prorrogar o seu pagamento até março de 2021, porém com um valor menor, afinal de contas, sem consumo não há sequer um esboço de recuperação econômica, quanto mais crescimento do Produto Interno Bruto (PIB).

Ao mesmo passo que o governo concedia esse auxílio, não sem dificultar enormemente o processo, editava uma Medida Provisória (MP) que autorizava a suspensão do contrato de trabalho por até quatro meses, com suspensão de salário dos empregados. Obviamente que tal medida não foi de forma alguma bem aceita pelos trabalhadores, e devido a pressão social o governo voltou atrás e editou uma nova MP, quase tão ruim quanto a anterior. Esta autorizou a redução da jornada de trabalho em até 70%, com corte de salários proporcionais e por até três meses e suspensão do contrato de trabalho por até dois meses. Nos dois casos o governo arca com parte do salário do empregado, com valores calculados tendo como base o piso do seguro-desemprego e que variam de R$ 261,25 a R$ 1.813,03 (como pode ser visto aqui).

Em junho desse ano o congresso aprovou a prorrogação dessa MP enquanto durar o período de calamidade pública, ou seja, até o final do ano pelo menos. Com isso, em julho, o governo federal transformou a MP em lei, institucionalizado assim uma maior precarização do trabalho com a desculpa de minimizar os efeitos da pandemia e preservar empregos.

Na prática, a lei prorrogou o período de suspensão de contratos de trabalho e de redução da carga horária, que agora podem se estender por até quatro meses, sendo boa parte dos custos das folhas de pagamento das empresas que aderirem ao programa governamental, mantidos com recursos da União, uma maravilha para empresários, que em contrapartida são obrigados a manter os empregos apenas pelo mesmo período em que vigorar o acordo, seja de suspensão de contratos ou de redução de carga horária.

Concentração de renda durante a pandemia e destruição da classe trabalhadora

Outro presente que o congresso nacional tenta conceder a empresas durante a pandemia é a desoneração da sua folha de pagamentos.

Essa política foi iniciada ainda durante o primeiro ano de mandato presidencial de Dilma Rousseff, em 2011, e que já havia sido prorrogada em 2018, durante o governo golpista de Michel Temer, para valer até o fim desse ano para 17 setores da economia. Agora, esses setores e seus representantes parlamentares querem prorrogar tal política mais uma vez, até o final do ano que vem, com a justificativa de que 2021 será o ano da retomada da economia perante os efeitos da crise acentuada pelo coronavírus. O que eles não dizem é que esses setores já estão em ótima posição durante a pandemia, como veremos abaixo, de acordo com levantamento da Organização Não Governamental (ONG) Oxfam.

Essa política vai totalmente na direção contrária a que vários países seguiram em defesa dos trabalhadores, propondo estratégias que proibiam empresas de cortarem salários e demitirem. Mais uma vez o governo Jair Bolsonaro mostra sua política ultraliberal perversa, de descarregar sob as costas dos trabalhadores os efeitos da crise econômica agravada pelo coronavírus, beneficiando quem já está lucrando com a pandemia, em detrimento daqueles que mais estão sofrendo com esta, os trabalhadores.

Como vemos, enquanto algumas camadas de trabalhadoras tiveram as suas condições de trabalho e de existência ainda mais precarizadas pelo capital e seus governos, setores detentores dos meios de produção e/ou que ocupam uma posição já privilegiada no sistema capitalista passaram a obter ainda mais privilégios durante a pandemia.

De acordo com a ONG Oxfam, a riqueza dos bilionários brasileiros aumentou US$ 34 bilhões (cerca de R$ 177 bilhões) durante a pandemia do novo coronavírus, entre 18 de março e 12 de julho deste ano. O já enorme patrimônio dos 42 bilionários do Brasil passou de US$ 123,1 bilhões (cerca de R$ 629 bilhões) para US$ 157,1 bilhões (cerca de R$ 839,4 bilhões), um aumento absurdo em menos de quatro meses.

O discurso propagado pela mídia burguesa, de que estamos no mesmo barco nessa pandemia, diante de fatos como esse não encontra sustentação. De fato, qualquer pessoa, independente de sua classe social, pode ser contaminada pelo vírus, porém, enquanto milhões de trabalhadores têm que se expor quase que diretamente ao vírus todos os dias, para não perder o emprego ou para poder manter a própria subsistência e de sua família, os bilionários e donos de corporações não tem com o que se preocupar durante a pandemia, a não ser onde gastar os bilhões lucrados com ela, à custa do sofrimento de incontáveis trabalhadores.

Além do setor de vendas e entregas pela internet e por aplicativos de celular, de materiais e insumos hospitalares, de alimentação, entre outros que aumentaram seus lucros e contribuíram para o aumento da riqueza de bilionários no Brasil e no mundo, o teletrabalho também deu sua contribuição, e muito importante, por sinal, na redução de despesas para empresas e governos e no aumento da lucratividade durante a pandemia.

Empresas das áreas de assessoria, advocacia, contabilidade, Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), televendas, informática, elaboração e gestão de sistemas, escolas e faculdades privadas, entre outras, além de inúmeros estabelecimentos públicos, como escolas, faculdades, universidades, fóruns, juizados, etc., se adaptaram ao atual período e seus funcionários passaram a trabalhar de forma remota e tendo que absorver por conta própria maiores gastos com energia elétrica, internet e alimentação, desonerando o capital desses setores e contribuindo enormemente com seus lucros, no caso de setores privados e economias, no caso de setores públicos.

Obviamente o capital já percebeu os enormes benefícios do teletrabalho a seu favor e certamente essa prática será mantida por inúmeras empresas mesmo após a pandemia e os trabalhadores já estão tendo que se adaptar a essa nova forma de exploração do trabalho. Pesquisa feita pela consultoria Cushman & Wakefield, que ouviu 122 executivos de multinacionais que atuam no país e divulgada na revista Exame, aponta que 73,8% das empresas pretendem instituir o home office ou teletrabalho, como prática definitiva no Brasil após a pandemia do novo coronavírus.

Assim, o sistema do capital, responsável por essa pandemia e por outras que a precederam, como a SARS (2002), a gripe aviária por H5N1 (2005), a gripe A ou gripe suína por H1N1 (2009), a MERS (2012) e o Ebola (2014), devido a sua pressão cada vez maior sobre os recursos naturais e ecossistemas, vai encontrando formas de se adaptar e se perpetuar, sem se importar que, para tanto, tenha que condenar populações e áreas inteiras do planeta ao completo perecimento.

É possível que algumas pessoas tenham percebido a urgência de mudarmos o sistema capitalista, incluindo a forma como seus teóricos economistas neoclássicos lidam com a natureza, como mera fonte inesgotável de recursos, que podem ser usados com total despreocupação. Porém, as leis da termodinâmica, principalmente a segunda lei, a lei da entropia, deixa que claro que não é bem assim.

Portanto, mesmo que a pandemia nos tenha trago novas formas subjetivas de vermos e nos relacionarmos com a natureza, urge a tarefa de transformar essas visões subjetivas em ações coletivas para sepultarmos de uma vez por todas o capitalismo. Caso contrário, continuaremos fadados a novos vírus mortais, novas pandemias, novos problemas ambientais e sociais, agravamento cada vez maior dos já existentes, novas formas ainda mais brutais de exploração do trabalho e aumento ainda mais acentuado das benesses e privilégios para uma pequena minoria em detrimento da miséria e sofrimento para a enorme maioria da população mundial.

Luiz Teixeira é Geógrafo e professor da rede municipal de ensino de Fortaleza.

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