Capital fictício e produção: aspectos inseparáveis da acumulação capitalista

Francisco Teixeira

Não se pode opor simplesmente o capital financeiro ao capital industrial como se fossem dois subsistemas distintos. Essa separação pressupõe a noção da existência de um “bom” capital (capital produtivo) e um “mau” capital, que estaria descolado da economia real.

O capitalismo envelheceu. Movimenta-se com dificuldade. É verdade. Desde os anos setenta do século XX, o PIB das economias do mundo todo pararam de crescer ou vêm crescendo lentamente.  Para superar as barreiras que se levantam contra seu processo de autovalorização, o capital lança mão de toda forma de crédito que lhe permita antecipar sua valorização, sem ter de esperar pela realização do valor produzido.

É nesse contexto que o capital fictício, como será definido mais à frente, cria novas formas para alavancar o processo de produção e reprodução do capital em geral.

Essas novas formas de capital fictício, tais como derivativos, securitização, títulos do tesouro etc., trazem em si as marcas do seu pecado original. É bastante lembrar que a principal matriz dessas formas de crédito são os chamados títulos da dívida pública, que foram e continuam a ser a maior alavanca de financiamento do capitalismo hoje. Em seu famoso capítulo dedicado à investigação da “A assim chamada acumulação primitiva”, Marx (2017a, p. 824) constata que

a dívida pública torna-se uma das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva. Como um toque de varinha mágica, ela infunde força criadora no dinheiro improdutivo e o transforma, assim, em capital, sem que, para isso, tenha necessidade de se expor aos esforços e riscos inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária. 

Marx leva ainda mais longe sua investigação sobre a dívida pública. Descerra o véu sob o qual os credores dos Estado, inebriados, vivem em orgias financeiras com o patrimônio público. Como homens de bem,   

não dão nada, pois a soma emprestada se converte em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que, em suas mãos, continuam a funcionar como se fossem a mesma soma de dinheiro vivo. Porém, ainda sem levarmos em conta a classe dos rentistas ociosos assim criada e a riqueza improvisada dos financistas que desempenham o papel de intermediários entre o governo e a nação, e abstraindo também a classe dos coletores de impostos, comerciantes e fabricantes privados, aos quais uma boa parcela de cada empréstimo  estatal serve como um capital caído do céu, a dívida pública impulsionou  as sociedades por ações, o comércio com papeis negociáveis de todo tipo, a agiotagem, numa palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia. (Idem, p. 824-825).

Mas isso ainda não é tudo. Como a dívida pública se respalda nas receitas estatais, o sistema tributário converteu-se num complemento necessário para emissão de novos títulos do tesouro.

Fictício não porque se trata de um capital ilusório, mas, sim, porque concerne a um valor esperado; uma aposta que futura uma apropriação de alíquota-partes de uma mais-valia ainda a ser criada.

A dívida pública impulsionou as sociedades por ações, ao criar um mercado secundário para venda e revenda dos seus títulos. Nem sempre é lembrado, mas as sociedades por ações são a forma embrionária da securitização. Esta consiste na transformação de uma dívida contratual de curto, médio e longo prazo em títulos negociáveis no mercado bursátil (Bolsa de Valores e mercados de capitais).  

Assim como a dívida pública, as sociedades por ações são formas de crédito fictício. Fictício não porque se trata de um capital ilusório, mas, sim, porque concerne a um valor esperado; uma aposta que futura uma apropriação de alíquota-partes de uma mais-valia ainda a ser criada. Daí que, para Marx (2017c, p. 524), “a formação do capital fictício tem o nome de capitalização”, isto é, de uma soma esperada de rendimentos futuros, cujo montante a receber é calculado e atualizado em seu valor corrente, presente. 

Essa forma de capital fictício é tão importante quanto os investimentos em capital fixo. Aliás, estes últimos dependem do primeiro. Como diria Marx (2017a), o mundo ainda careceria de ferrovias se não fossem as sociedades por ações, que alavancaram os recursos necessários para que os construtores de linhas férreas  pudessem  construir suas estradas de ferro.

O avanço das sociedades por ações vem acompanhado por transformações significativas na configuração dos diversos segmento da classe capitalista. Dentre essas transformações, sobressai o desaparecimento do capitalista produtivo independente, dono de sua própria empresa. Como diria Marx (2017c, p. 436), referindo-se ao cidadão Ure,

“a alma de nosso sistema industrial” não são os capitalistas industriais, mas os managers, é algo que o sr. Ure já nos havia dito.

Atualmente, o mundo vive uma era em que se apagaram as fronteiras entre os diversos tipos de capitais. Não há mais como divisar as diferenças entre as distintas formas de existência do capital, outrora ossificadas que foram pela divisão social do trabalho. Hoje, as unidades de capitais são a um só tempo, capital-dinheiro, capital produtivo (industrial), capital-mercadoria. Isso porque o capitalismo contemporâneo, como apropriadamente esclarece Braga (1997, p. 223-224),  

realizou plenamente a tendência a que a existência funcional do dinheiro  superasse sua existência material. Vivemos num mundo de fiat Money, não  apenas no sentido do dinheiro fiduciário ser emitido pelo Estado, sem lastro do dinheiro-mercadoria – o ouro – mas, também, no sentido  de que surgiram  inúmeros  ativos financeiros que, além de renderem juros, funcionam como quase moeda.

A financeirização nasce da necessidade de expansão da acumulação de capital de romper com os limites impostos pela mais-valia acumulada em cada ciclo de valorização do valor.

É nesse contexto que se criam as condições que alteraram radicalmente a temporalidade das finanças, abrindo possibilidades operacionais, como diria Braga, que antes não existiam nos sistemas nacionais, nem no sistema internacional. As empresas, não importa sua natureza, sejam expressão do capital-dinheiro, do capital produtivo (industrial) ou do capital-mercadoria (comércio/serviços), não estão mais amarradas a relações rígidas do tipo devedores-credores, isto é, a contratos de curto, médio e longo prazo, próprio do mercado de crédito. Hoje, as empresas podem trocar suas dívidas de longo prazo, por exemplo, por outras formas contratuais de endividamento, que lhes permitam alavancar novos recursos no mercado de dinheiro. Isso é muito comum entre aqueles segmentos da chamada indústria de serviços financeiros (empréstimos corporativos, empréstimos habitacionais, empréstimos pessoais), bem como no mercado a varejo (cartões de crédito), bens de produção (aluguéis de automóveis). Um banco, por exemplo, que empresta dinheiro a um cliente sob a forma de empréstimo consignado, pode vender a dívida de seu cliente e, assim, repor seu caixa para efetuar novos empréstimos.

É nesse sentido que Braga entende a financeirização como um padrão sistêmico de produção da riqueza, na medida em que o domínio das finanças estabelece

uma dinâmica estrutural segundo princípios  de uma lógica financeira geral. Nesse sentido, ela não decorre  apenas da práxis  de segmentos  ou setores – o capital bancário, os rentistas tradicionais – mas, ao contrário, tem marcado as estratégias de todos os agentes  privados relevantes, condicionando  a operação das finanças  e dispêndios públicos, modificando a dinâmica  macroeconômica. Enfim, tem sido intrínseca ao sistema tal como ele está amplamente está constituída por componentes fundamentais da organização capitalista, entrelaçados configurado (Idem, p. 196).

Fica claro, portanto, que a financeirização aparece como desenvolvimento orgânico e não como uma excrescência no interior da produção capitalista. Nasce da necessidade de expansão da acumulação de capital de romper com os limites impostos pela mais-valia acumulada em cada ciclo de valorização do valor.  

É dessa perspectiva que Eleutério Prado dirige sua crítica a François Chesnais, acusando-o, com razão, por ele distinguir entre os “regimes de acumulação com dominação industrial e com dominação financeira (Prado, 2014). Essa distinção tem uma forte carga de indignação moral, na medida em que a economia, advogam aqueles que assim pensam, poderia gerar empregos e renda desde que se evitasse o parasitismo das finanças, que supostamente impede os setores industrial e comercial de crescerem.

Ora, não se pode opor simplesmente o capital financeiro ao capital industrial como se fossem dois subsistemas distintos. Essa separação pressupõe a noção da existência de um “bom” capital (capital produtivo) e um “mau” capital, que estaria relacionado ao mundo financeiro, descolado da economia real, rentista, especulativo e parasitário.

As análises que assim procedem, como o faz Chesnais, desconsideram o caráter de sujeito do capital e passa a responsabilizar

apenas a política econômica: o capital financeiro “não foi levado ao lugar que hoje ocupa  por um movimento próprio, mas de um modo contrário, “foi necessário que   os Estados  mais poderoso decidissem liberar o movimento de capitais e desregulamentar e desbloquear seus sistemas financeiros. (Idem, p. 15).

Referências:

Braga, José Carlos de Souza. Financeirização  Global. O padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo. In Poder e Dinheiro: / Maria da Conceição Tavares, José Luis Fiori (organizadores). – Petrópolis, RJ: Vozes, 1997., p.  223/24 (os grifos são por minha conta.  Os grifos são por minha conta)

Braga, José Carlos de Souza. Financeirização Global. O padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo. In: Tavares, Maria da Conceição; Fiori, José Luis (organizadores).  Poder e Dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

Prado, Eleutério. Exame Crítico da Teoria da Financeirização. São Paulo: Editora UNESP: Revista Crítica Marxista, nº 30, 2014.

Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política, Livro I.- 2ª ed. – São Paulo: Boitempo, 2017. [2017a]

Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política, Livro II.- 2ª ed. – São Paulo: Boitempo, 2017. [2017b]

Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política, Livro III.- 2ª ed. – São Paulo: Boitempo, 2017. [2017c]

Francisco Teixeira é Membro do Conselho Editorial de A Comuna e professor de Economia Política da universidade Regional do Cariri (Urca). É autor, dentre outros, de Pensando com Marx (Ensaios, 1996), Trabalho e valor (Cortez, 2004) e Marx no século XXI (Cortez, 2008).

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