Uma das contribuições do stalinismo às democracias contemporâneas

Emiliano Aquino

A Lava Jato não desenvolveu nenhuma técnica nova. Ela fez largo uso da expiação pública, em sua forma moderna, com o uso dos meios de comunicação de massa. O restante é bastante tradicional: o uso da tortura – e a prisão a não mais ver o fim é uma forma de tortura – para confissões e acordos com o Ministério Público, também bastante usado nos processos “soviéticos”.

Nos anos ’70, Brasil e Itália conheceram um tipo de jornalismo televisivo aparentemente novo: a exposição de presos políticos, alguns confessando seus “crimes” (participação na luta armada), na posição de “arrependidos” (fenômeno mais italiano). Nas mesmas matérias, eram mostradas mesas com as armas, as munições, as pílulas anticoncepcionais; na parede, por trás dessas mesas-mostruários, os brasões das polícias envolvidas nessas operações vitoriosas. No Brasil, como na Itália, os diversos órgãos secretos de sequestros e torturas disputavam entre si quem prendia e matava mais subversivos. Na televisão, produzia-se, desde a edição e montagem, peças mobilizadoras, enervadoras, que prendiam a atenção, a respiração; em consequência, não se falava de outra coisa, durante dias, e as pessoas passavam a acreditar que estavam prestes a ser vítimas de monstruosos inimigos do Estado e da sociedade. Hoje em dia esse tipo de matérias é normal nos programas policiais em todo o mundo, nos quais se encontra o que as feministas, segundo Wacquant, chamam de pornografia: sempre o mesmo e repetido ritual de exposição das pessoas, seus crimes, suas confissões.

Uma das origens desse tipo de programa espetacular (e espetacular no sentido rigoroso do termo) está nos anos ’30 na URSS, aprimorando, e muito!, com a técnica do filme e do rádio (a televisão estava apenas em seu início), o que o Estado francês, contando apenas com os jornais impressos, fez no Caso Dreyfus. Na URSS, deu-se com o início dos expurgos após o assassinato de Kírov, em 1934, e chegou ao seu clímax com os expurgos de 1938 (quando a televisão soviética tinha uma atuação mais ampla). [*] Esses foram 4 anos contínuos de terror, mantendo em atuação permanente o enervamento social (a mobilização psíquica), com a atuação das forças sociais repressivas construídas durante a expropriação doa camponeses (a chamada “coletivização da terra”, no final do anos ’20, início dos ’30).

Essa é uma das contribuições permanentes do totalitarismo staliniano às democracias espetaculares do presente. Foi amplamente usada nos processos macarthistas, nos anos ’50 nos EUA. Na Itália, seu uso não ocorreu sem que a maior máquina stalinista do ocidente, o partido autodenominado “comunista” italiano, interviesse diretamente, colaborando com a Democracia Cristã, a máfia e a maçonaria, na repressão aos diversos grupos autônomos italianos e, principalmente, ao movimento operário autônomo (cujas maiores expressões foram as assembleias operárias da Fiat e da Alfa Romeo) nos anos ’70; o PCI estava dando sua contribuição ao “compromisso histórico”… Foi sob a orientação de procuradores ligados ao PCI que prisões ilegais, torturas e confissões públicas foram realizadas. O saldo é de cerca de 5 mil presos políticos, derrotados em uma guerra que não houve.

É essa a técnica hoje amplamente usada em favor do encarceramento em massa em todo o mundo, tendo estado parcialmente presente no Mensalão, na prisão dos companheiros da FIP/RJ (nos grandes processos de 2013 e 2014) e na Lava Jato. Por isso, diferentemente do que pensa Gilmar Mendes, a Lava Jato não desenvolveu nenhuma técnica nova. Ela fez largo uso da expiação pública, em sua forma moderna, com o uso dos meios de comunicação de massa. Moro chega a publicar um artigo acadêmico defendendo a aliança do judiciário com os media como uma inovação no combate judicial à corrupção. Mera bufonaria! Não há nada de novo aí. Essa foi a técnica usada largamente por Vichinsky, o Procurador Geral da URSS durante os Processos de Moscou nos anos 1930. Essa técnica foi renovada ali: é o velho método da expiação pública medieval que volta através da exposição nos modernos meios de comunicação de massa. O restante é bastante tradicional: o uso da tortura – e a prisão a não mais ver o fim é uma forma de tortura – para confissões e acordos com o Ministério Público, também bastante usado nos processos “soviéticos”.

Não é decisivo para a análise histórica, mas chama a atenção a seguinte pilhéria: os procuradores federais do Paraná chamavam Moro de Russo, zombando com a imagem de que ele teria recriado o Código de Processo Penal da Rússia. Sério mesmo é o que diagnostica Guy Debord: as técnicas totalitárias foram amplamente absorvidas pelas democracias espetaculares do Ocidente.

[*] Bem entendido, mais ampla em relação ao seu início: 1934 (como se diz algumas linhas antes). Em 1938 a televisão soviética dava ainda seus primeiros passos, embora pareça que já fosse bastante querida pelo público que lhe tinha acesso: “Apesar da baixa qualidade da imagem, a televisão ao mesmo tempo ganhou enorme popularidade – felizes proprietários de TVs se reuniram em frente às telas com todos os membros da família e convidaram amigos e vizinhos para assisti-la”, diz-se aqui. Segundo ainda essa mesma matéria (que vai no mesmo sentido de outras ), o “primeiro centro de televisão foi construído na Estação de Rádio Shabolovsky em março de 1938 e começou a transmitir regularmente em 1939”. (Atualização em 13/02/2021, às 06:19).

Emiliano Aquino é membro do Conselho Editorial de A Comuna.

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