Thales Emmanuel
Esse artigo é uma reflexão do companheiro Thales Emmanuel, militante da Organização Popular (OPA), sobre a recente – e ainda em curso – experiência de luta por moradia de um grupo de trabalhadoras e trabalhadores sem moradia em Fortaleza.

Já vivíamos no aluguel. A vida na grande Fortaleza já era um aperreio bem antes dela aparecer. Alguns de nós morávamos nas ruas. Era nas calçadas que a dureza deste mundo cão ninava nossos filhos. Os olhares sempre foram de condenação e medo. Há uma placa de “Não se aproxime!” pendurada na testa de cada cidadão de bem. Nos acostumamos a fazer cara de cachorro dócil para sobreviver. O costume é um beco sem saída arrodeado de carabinas socadas contra seu peito. Não é opção. Mas aí ela chegou, a pandemia veio com tudo e o que era difícil ficou ainda pior.
Os corações começaram a bater acelerados de preocupação. O beco estreito da vida estreitou ainda mais. Éramos todos e todas sem teto, sem direitos. Uma verdadeira aglomeração de oitenta e cinco famílias sem condições de sobreviver. Nos encontrávamos imprensadas entre a covid e a fome, entre o corona e as calçadas, entre os olhares de medo e os de condenação. Crianças, mulheres, homens e idosos. Sim, havia aglomeração! Aglomeração de necessidades, de muitas necessidades. E a estranheza se fez união! Ocupamos então um terreno abandonado havia mais de três décadas. Era o dia 8 de junho de 2020, quando iniciamos a construção de nossos barracos.
Como acontece todas as vezes que o povo se une e se põe em movimento, logo apareceu polícia. Escoltavam representantes de empresas que surgiram do nada se dizendo donas do terreno, AKASA e Direcional. “Quem é a liderança?”, perguntavam em tom ameaçador. “A líder aqui é dona Neci. Dona Necessidade”, respondíamos.
Um dia, sem que esperássemos, a viatura da PM estacionou na frente da ocupação e ficou de butuca. De repente, surgiram homens armados, certamente a mando das empresas, e começaram a destruir nossos barracos. Foi um desespero. “Vamos entrar todos neste aqui!”, alguém gritou. Entramos. Por conta desse gesto de coragem, desse “tudo ou nada”, o barraco no qual nos abrigamos foi o único a permanecer em pé. O ataque criminoso dos capangas das empresas deixou em sangue uma de nossas companheiras, grávida de cinco meses. O pequeno Emanuel nasceu prematuramente dias depois, passou alguns minutos entre nós e faleceu. A polícia nada fez para nos defender deste crime covarde e cruel. Muito pelo contrário, foi totalmente cúmplice.
Os capangas se foram e deixaram os escombros. Escombros de papelão, de corpos, escombros de almas. Refletimos em meio à dor. Na TV, o que assistíamos era um despejo atrás do outro. Famílias sem teto, quilombolas, indígenas. Eram comunidades bem mais numerosas e mais antigas do que a nossa, e foram derrotadas. Como seria possível à gente vencer?
“Vamos enfrentar muitos desafios, muitas dores, mas só seremos derrotados se desistirmos”, bradou o espírito militante. “É dos escombros que encontraremos a força de nossa vitória. Teto de papelão, coração de leão!”
Militantes são os e as camaradas das organizações populares que se juntaram à resistência desde os primeiros momentos. Estavam no dia a dia com a gente, partilhando suas experiências e seus sonhos. Graças a esses companheiros e companheiras, conhecemos um pouco de nossa própria história, a história da classe trabalhadora, de nossa classe. A luta não começava ali, vinha de longe. Numa das assembleias, momento onde tudo era debatido e decidido pelo conjunto da comunidade, nos contaram a história de um lutador negro e comunista – e nos explicaram o que era comunismo –, que enfrentou muitas ditaduras e entregou sua vida na luta pela libertação do povo. A identificação foi imediata e batizamos nossa comunidade com o seu nome: Ocupação Carlos Marighella. Sem saber, estávamos nos tornando militantes também.
Começamos então a planejar nossas ações. Muitas assembleias, muitas reuniões. O poder judiciário havia determinado ordem de despejo para o dia 2 de setembro. Se a existência de milhões de famílias sem teto – e pior, em plena pandemia – não é motivo suficiente para a Justiça ser justa, então o que nos resta é lutar. Ocupamos a Secretaria das Cidades do governo do Estado e a ordem de despejo foi adiada para o mês seguinte. Ocupamos uma avenida de grande circulação de veículos. Visibilizamos nossa causa. Iniciamos uma articulação ampla de apoios. “Somos todas e todos Marighella!” No Dia das Crianças, 12 de outubro, as mães e a meninada da Marighella ocuparam o pátio de entrada do Palácio da Abolição, sede do executivo estadual, e redigiram uma carta, que foi entregue ao governador dias depois, em nova ação de luta. Tamanha a pressão, que a ordem de despejo foi adiada por mais um mês.
Neste momento, a Ocupação Carlos Marighella já estava bastante conhecida. Chegavam vídeos de apoio de todo lugar do Brasil e até de outros países. É como se lutássemos por algo maior do que nossas oitenta e cinco moradias. Estava em disputa a dignidade de todo o povo.
Pressionado, o desembargador adia por mais uns dias o despejo, para ver se as famílias aceitam a proposta de aluguel social feita pela prefeitura. Em assembleia, cada morador da Marighella deu sua opinião: “Querem nos dispersar, quebrar com a resistência”, “Despejo humanizado não existe. É o mesmo que estupro culposo”, “Aluguel social não!”. O desembargador deve ter irado com a intransigência do povo. Tanto que determinou o despejo, “de forma inexorável e inarredável”, para o dia 11 de dezembro, logo após as eleições,
Tínhamos uns 14 dias para planejar e agir. O clima era de total tensão. A polícia tentava intimidar com aparições repentinas sem mandado judicial. Queríamos uma audiência com o prefeito, que não havia dado as caras ainda. Seus representantes só embromavam. Decidimos não fazer nenhuma ação mais contundente durante os últimos dias da campanha eleitoral, para não correr o risco de ser manipulada pela extrema direita. E foi por pouco que o candidato dos fascistas não venceu. Mas, três dias após o pleito, retornamos às ruas e ocupamos a sede estadual do PDT, partido do então e do prefeito eleito. Exigíamos audiência imediata com os dois.
Realmente não eram poucas as pessoas que acompanhavam a epopeia das famílias da Ocupação. Com a rede de apoios bem firmada e se ampliando, a sede do PDT poderia rapidamente se tornar ponto de convergência para toda essa gente. Os prefeitos então agiram com velocidade e marcaram a audiência para o dia seguinte.
Na mesa de negociação, em meio às incertezas, uma inabalável convicção apareceu pela voz de uma das ocupantes: “Não pense que estamos blefando, seu prefeito. Se quiser mesmo tirar a gente de lá, pode mandar os 85 caixões, porque daquela terra só saímos para nossas casas, ou mortos.”
O prefeito arregalou os olhos. Pela boca de Márcia falou toda uma coletividade. Pela boca de Márcia se sentiu aquela imbatível energia que todo o povo trabalhador possui, mas só aparece quando este se une. Energia que faz tremer toda a classe exploradora. Por fim, o prefeito se comprometeu em fazer o repasse de um terreno para as famílias, vizinho ao ocupado.
Mesmo com essa decisão, sendo uma questão de tempo a transferência para a terra conquistada, o desembargador mantém a ordem de despejo para o dia 11.
Uma comissão da comunidade foi à casa do arcebispo e lhe entregou uma carta, contando a difícil situação e pedindo sua interseção junto ao governador estadual, comandante em chefe da PM, e ao desembargador. “O Natal está chegando. Como o senhor bem sabe, Jesus nasceu num curral porque sua mãe não teve o direito de dar a luz em local adequado.”
No correr daquelas últimas horas, ainda conseguimos organizar uma marcha nas duas favelas vizinhas à Ocupação, chamando o povo para a resistência. Nesses mesmos locais, em setembro, realizamos um plebiscito perguntando se a pessoa concordava ou não com a luta pelo direito à moradia. Todas que opinaram, concordaram. “Mexeu com um, mexeu com todos!”
No dia 11, data marcada para o despejo, a polícia apareceu, mas nossos apoios também. Pelas expressões verificadas nos rostos de cada um e de cada uma ali presentes, seriam necessários bem mais que 85 caixões.
Tamanha a pressão, que não deu outra: o desembargador teve que suspender a ordem de despejo e a favela entrou em festa. Esse poder, que não sabíamos possuir. Esse poder de derrotar os vírus da opressão e mudar o curso da história, aprendemos, chama-se: Poder Popular.
Thales Emmanuel é membro da organização Popular (OPA). Esse artigo foi publicado pela primeira vez no Informativo redentorista.