
VÂNIA NOELI FERREIRA DE ASSUNÇÃO
Depois de 150 anos, a Comuna de Paris ainda é uma referência inescapável para a perspectiva de esquerda. Trata-se de um momento fundamental do aprendizado das lutas da classe representante da lógica onímoda do trabalho, aprendizado que, para nós, transformou-se em ensinamento. Lembre-se que, se até 1848 Marx analisava as revoltas e revoluções operárias comparando-as às revoluções burguesas, o ponto mais alto alcançado até então em termos revolucionários, após 1871 é a Comuna que se torna o novo parâmetro analítico revolucionário, pelo qual se podem medir os avanços e os limites de uma revolução.
A Comuna nos ensina muito especialmente pelos seus atos, por aquilo que fez – daí que, segundo Marx, a sua própria existência foi a sua maior vitória. As tarefas levadas a cabo pela Comuna não dizem respeito a princípios abstratos criados utopicamente por sabichões isolados das lutas de classes, mas à libertação concreta de elementos concretamente existentes na própria realidade e à criação de novas possibilidades concretas, muitas inéditas e outras pelas quais lutamos ainda hoje. Ou seja, como disse Lênin, “a Comuna ensinou o proletariado europeu a colocar de forma concreta as tarefas da revolução socialista”.
Quais foram essas tarefas? Comecemos pelas educativas: a Comuna separou o estado da igreja e decretou o ensino gratuito, laico e obrigatório, buscando a elevação do nível educacional das massas, restringindo o poder ideológico do clero e tirando aos padres a possibilidade de deformar as mentes das novas gerações. Desapropriou prédios da igreja e os transformou em centros populares de cultura e de debate político-ideológico, revertendo o que eram espaços de deformação conservadora em espaços de formação revolucionária.
A Comuna eliminou profissões vistas como parasitárias (como corretores de imóveis) e propôs o confisco dos imóveis vazios e sua redistribuição para os que não tinham residência ou a perderam com os bombardeios. Ainda no campo habitacional, decretou a suspensão do pagamento dos aluguéis, que veio se somar a uma moratória geral para o reembolso de dívidas.
A Comuna se preocupou com questões urbanísticas: tráfego, habitabilidade, embelezamento e condições ambientais dos diversos distritos da cidade. Fechou o centro de Paris ao trânsito de veículos privados, permitindo apenas pedestres, veículos de utilidade pública e circulação de bicicletas (que seriam, se necessário, emprestadas pela própria Comuna).
A Comuna aboliu os delitos de opinião e a pena de morte, bem como reconheceu os direitos políticos dos estrangeiros e os recebeu fraternalmente nos debates, nas barricadas, nos comitês de bairros e inclusive no Comitê Central.
A Comuna concedeu o direito à educação sexual desde a infância e reconheceu às mulheres o direito à contracepção e ao aborto, um direito ainda hoje inexistente em muitas partes do mundo. Eliminou a prostituição, esta ignóbil criação do patriarcado que hoje é naturalizada por certo feminismo liberal que entende a mercantilização e o uso da propriedade pessoal (aqui, o corpo) como expressões máximas da liberdade.
A Comuna desburocratizou e tornou gratuitos os serviços antes oferecidos pelo Estado, como os transportes, a emissão de certidões etc. E ainda disponibilizou advogados gratuitos a quem deles precisasse.
A Comuna pôs os serviços sociais sob controle de juntas de bairros, além de, de forma pioneira, conceder pensões às viúvas e aos órfãos dos guardas nacionais mortos na guerra e a aposentadoria aos trabalhadores acima de 55 anos (ou menos, em caso de realizarem serviços penosos).
Mesmo que só nesse âmbito já marcasse a história com seu pioneirismo e amplitude, ela não permaneceu, no entanto, no âmbito das políticas públicas (muitas vezes encaradas atualmente como ambição máxima e limite intransponível das lutas sociais, ainda mais diante de tantos retrocessos). A Comuna foi muito além.
Ela desmantelou a máquina do Estado. Quanto à imensa organização burocrática e militar do poder executivo, a Comuna extinguiu a burocracia e transferiu as funções antes estatais para os próprios trabalhadores, tornando todos os cargos administrativos elegíveis, responsabilizáveis e demissíveis a qualquer momento, além de remunerados no mesmo nível de um operário qualificado e não cumulativos. Ademais, desestruturou o exército permanente e o substituiu pelo povo em armas, eliminando a possibilidade de repressão à justa rebelião contra seus dominadores. Eliminou a polícia e transferiu as questões relativas à segurança à gestão da própria população interessada. No que tange aos demais poderes, suprimiu a dicotomia entre legislativo e executivo – ao atribuir aos membros dos comitês funções deliberativas e práticas ao mesmo tempo – e transformou a magistratura burguesa, tornando magistrados e juízes igualmente elegíveis e demissíveis a qualquer momento.
São realizações dignas de registro nos anais da história. A Comuna, contudo, foi ainda além e instituiu reformas importantes também no campo econômico. Durante os 72 dias em que esteve de pé, decretou a redução da jornada de trabalho para 10 horas diárias, a proibição da imposição de multas pelos patrões nas fábricas e oficinas, a supressão do trabalho noturno nas padarias, a entrega das fábricas abandonadas por seus donos a conselhos operários, a eleição da direção das fábricas pelos trabalhadores, a criação de uma bolsa-trabalho, a supressão prática da hierarquia entre trabalho intelectual e trabalho material (ao propor o rodízio dos profissionais entre tarefas dos dois tipos) e a expansão do ensino profissionalizante.
Por representar a única classe com criatividade e potencialidade para criar o futuro, a Comuna representava os interesses de todas as outras classes sociais, com exceção da burguesia em todas as suas frações. Ela se propunha, ainda, a ser a forma de organização de toda a França.
Neste brevíssimo sumário, apenas indicativo, percebe-se que a Comuna desempenhou tarefas que até então eram realizadas apenas por uma complexa – e cara – estrutura estatal. Ela tornou notório que os trabalhadores podem se autogovernar de forma eficaz, organizada e mais barata até mesmo nas circunstâncias mais difíceis. Demonstrou, adicionalmente, o quanto os patrões são dispensáveis e sua classe é parasitária.
Estas medidas, entre tantas outras, foram tomadas numa cidade cercada havia cinco meses por tropas nacionais e estrangeiras, bombardeada por tiros de canhão e pelas mentiras caluniosas de uma burguesia apavorada por ter os seus segredos e as suas misérias trazidas à tona e contrapostas pela grandiosidade da Comuna. Note-se que, dadas as condições adiante mencionadas de passagem, a efetivação de algumas das decisões tomadas foi limitada, incipiente ou ficou apenas como declaração de intenções, a depender do caso.
É preciso registrar que a Comuna nos ensina muito também pelo que lamentavelmente deixou de fazer, seja em face das limitações objetivas, seja pelos erros cometidos pelos dirigentes. E é preciso reconhecê-lo, para não cometermos um erro similar ao do apagamento das lutas dos trabalhadores, mas com sinal inverso, ou seja, cairmos na sua glorificação acrítica e sua mistificação, que não servem aos interesses da emancipação humana. Assim, faz parte do balanço avaliativo da Comuna entender também os titubeios, os equívocos e os limites objetivos que levaram esta experiência à derrota, após a qual houve a mais sangrenta repressão (“infâmia indescritível”, conforme Marx) e o consequente retrocesso das lutas e da organização de classe durante dezenas de anos. Tais críticas não desmerecem o inigualável espírito de sacrifício dos comunardos e nem apagam as conquistas arroladas, mas não podem ser negligenciadas.
Tais erros e limites se devem a questões objetivas (a circunscrição a uma cidade, a desproporcionalidade das forças em enfrentamento) e também a questões subjetivas: a Comuna era formada por grupos ideologicamente heterogêneos, que iam de jacobinos e autônomos até socialistas de diversas tendências, especialmente blanquistas e prudhonianos. Além de ideologicamente heterogêneos, os comunardos não tinham uma direção homogênea e um programa de ação claro. Daí que tenha cometido erros sérios, entre os quais salienta-se a hesitação em relação ao desencadeamento da guerra civil que, na verdade, já havia sido iniciada pela reação e que era a cada dia mais inevitável. Assim, deixou de marchar imediatamente sobre Versailles, lócus da reação, com o que teria a possibilidade de se estabelecer e eventualmente se expandir, e em vez disso perdeu um precioso tempo com eleições que não eram prioritárias naquele momento. A Comuna foi excessivamente indulgente com seus inimigos e até acreditou ingenuamente em supostas intenções conciliatórias daqueles que queriam destruí-la, como A. Thiers. E, ainda, respeitou o dinheiro depositado no Banco da França, quando deveria tê-lo revertido para a aquisição de armas e outros meios de defesa.
Em que pesem tais limitações, hesitações e equívocos, trata-se, sem dúvidas, de um feito histórico dos trabalhadores. Sem repetir as revoluções passadas, que labutaram pelo aprimoramento e posterior gerenciamento do Estado, “este aborto prodigioso da sociedade”, a Comuna construiu um caminho completamente novo e mais adequado à revolução social de sua época: seu desmonte. Era-lhe evidente que os trabalhadores não podem simplesmente se apropriar do aparato estatal e utilizá-lo para seus próprios fins, mas precisam destruí-lo. Nesse processo, as funções legítimas dos antigos órgãos estatais foram reapropriadas pela sociedade, ao tempo em que aquelas de caráter repressivo foram eliminadas. Com isso, a Comuna procedia à devolução das forças sociais que foram alienadas da sociedade, apropriadas pela “excrescência parasitária” estatal e utilizadas por esta contra a própria sociedade, da qual se nutre e cujo desenvolvimento freia. Por isso, trata-se de uma forma política não só nova, mas realmente inovadora, produto da única classe com iniciativa histórica, flexível, expansiva, despojada de caráter repressivo. A Comuna era a forma política da emancipação social, o movimento propriamente político da revolução social, responsável pelo desmonte do aparelho estatal.
Estava evidente, contudo, que à classe operária não bastava um autogoverno que modificasse as estruturas formais de dominação de classe: era necessário eliminar a própria dominação de classe. Assim, junto com a transformação política, a Comuna principiou uma potente reforma econômica que poderia, depois de um longo processo, conduzir a eliminação das classes. Esta estava imediatamente fora do seu alcance – pelos limites objetivos já mencionados –, mas a Comuna apontou o caminho para a emancipação econômica do trabalho, ou seja, para sua generalização pela sociedade, quando deixa de ser um atributo de classe. Apresenta, portanto, as formas racionais que permitem atravessar as diversas fases de tais lutas de modo mais humano e racional.
Em síntese, a Comuna se mostra como uma primeira etapa da emancipação do trabalho na qual se conjugam transformação política e reforma econômica – dito de outro modo, tarefas políticas que visam a destruir as bases da própria política, estruturada no Estado, por sua vez, nascido da dissidência da sociedade em classes irreconciliáveis, da qual uma – a dos proprietários – é por ele apoiada. Nos termos do filósofo J. Chasin, a Comuna de Paris pôs os pilares de uma ação metapolítica.
A Comuna se torna ainda mais importante em contraste com o regime que a precedeu: o bonapartismo, este produto nefando da burguesia contrarrevolucionária. O regime bonapartista havia sido trazido à cena por uma burguesia que, diante do pavor provocado pelo avanço real e potencial da classe trabalhadora, agarrava-se ao seu poder sem ter mais como recorrer a formas de governo à sua vontade. Agora, diante do imperativo de segurança e ordem, via-se na contingência de valer-se da “única forma de governo possível no momento em que a burguesia já havia perdido a capacidade para governar o país e a classe operária ainda não a havia adquirido” (Marx). Este regime, levando ao paroxismo a tendência de autonomia do Estado e sua oposição à sociedade civil, subordina todas as classes, embora em prol dos interesses históricos de uma delas. A burguesia despoja seu próprio governo de todos os instrumentos de que necessita para governar e põe à testa do Estado um ditador. Assim, liberta de suas preocupações políticas, dedica-se apenas aos seus negócios.
Na França de então, berço histórico do fenômeno do bonapartismo, o pavor da revolução social levou a burguesia a ceder o poder a um “príncipe lumpenproletário”, Luís Napoleão Bonaparte, secundado pelos “lobos, porcos e cães sujos da velha sociedade”, nos dizeres de Marx. Napoleão, o pequeno, produziu uma verdadeira anarquia em nome da ordem. Sua passagem pelo poder, de pouco mais de 20 anos, foi marcada por toda sorte de despotismo, velhacaria, agiotagens, milícias, linguagem enfática e truques chinfrins. Ao mesmo tempo, para que a burguesia pudesse encher os bolsos com todas as formas de negociata e trapaças, valia-se do “poder estatal sem piedade e com ostentação como de uma máquina nacional de guerra do capital contra o trabalho”, à base de “orgias de sangue” e “façanhas canibalescas de bandidos”, tarefas para as quais os piores homens da república eram os melhores. Por isso, dizia Marx, é a forma de governo mais prostituída e, ao mesmo tempo, a última forma do poder estatal, o último recurso disponível no embornal da burguesia. E, vejam só, a república não havia passado por uma completa metamorfose para se transformar em bonapartismo: sendo ambas formas de dominação burguesa, não houve mudança de natureza, mas graus diferentes no interior de uma mesma escala.
Bonapartismo e Comuna representavam duas alternativas históricas antagônicas e excludentes. De um lado, o exemplo máximo da decadência do poder criador burguês, as tendências estranhadas do estado capitalista levadas ao paroxismo, o vetusto e o velhaco; e, de outro, uma forma de organização nova, elástica, propositiva e prospectiva, inflada pelo vigor da juventude e pela reincorporação das forças sociais outrora extorquidas pelo Estado. Que uma tenha sido derrotada e que a outra tenha se reproduzido e transplantado para diversas áreas do globo é uma das origens das misérias contemporâneas.
VÂNIA NOELI FERREIRA DE ASSUNÇÃO é Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora da Universidade Federal Fluminense – Rio das Ostras. Co-editora de Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas.