Porteira

[Fotografia: site Itaporanga]

Porteira

Da então exportação de couro à atual de carnes, quatro séculos se passaram, mantida a mesma lógica mercantil, agora sobre fundamentos capitalistas: uma produção exportadora com base na grande exploração de terras, desmatando-as, empobrecendo-as, até mesmo esgotando-as, pela monocultura; mantendo, igualmente, o constante enfrentamento genocida às nações indígenas

Nessa última semana ficamos sabendo que a média do consumo anual de carne bovina entre os brasileiros deve cair, neste ano, ao menor índice dos últimos 26 anos. Em 2006, chegamos à mais alta média anual: quase 43 kg anuais por pessoa. Nos últimos quatro anos, um processo de drástica descida: em 2018, quase 34 kg; em 2019, um pouco mais de 30 kg; em 2020 e 2021, menos de 28 kg; e a previsão é que, em 2022, caia ainda mais, para cerca de 24 kg. Insista-se, é a média. Há um grupo menor de pessoas que continua a comer, em quantidade e qualidade, muito acima dessa média, e um grupo maior, diria mesmo, a maioria, para quem o consumo de carne diminuiu para baixo desses índices, e até mesmo desapareceu por completo.

De cara, é um dado que compõe o processo de empobrecimento em massa dos últimos anos. De acordo com os resultados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, “a quantidade de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, passando fome, quase dobrou em menos de dois anos”. Em dados crus: “Esse contexto [de insegurança alimentar grave] afeta diretamente 33,1 milhões de brasileiros, o equivalente a 15,5% da população, 14 milhões a mais de pessoas passando fome na comparação com o primeiro levantamento realizado em 2020”.

Esses são os índices dos que, literalmente, e não metaforicamente, estão passando fome. Num sentido mais amplo de insegurança alimentar (tecnicamente: em níveis grave, moderado e leve), a situação chega a abarcar “125,2 milhões de pessoas, [que] convivem com algum grau de insegurança alimentar, algo que corresponde a 58,7% da população brasileira”.

Em outras palavras, e num parágrafo à parte: Quase 60% da população brasileira não tem garantidos, de modo estável, sua alimentação.

Se tomarmos só os últimos dois anos, aumentou mais, proporcionalmente, o número dos que se encontram em situação de insegurança alimentar grave (mais 73%) do que diminuiu o consumo de carne bovina (menos 16%). O motivo é óbvio: já então comer carne não era para todos, daí ser possível aumentar a quantidade dos que passam fome numa proporção maior à queda do consumo de carne. Em outras palavras, esses dados sobre o aumento da insegurança alimentar são superiores aos da diminuição do consumo de carne, alimento sempre de difícil acesso para as camadas mais pobres da população, mesmo nos períodos de altas taxas de emprego e aumento do poder de compras do salário mínimo. (Para muitos, o famoso “churrasquinho do domingo” já era mesmo um… churrasquinho! E não era todo domingo).

Melhor forma para se averiguar esse quadro de empobrecimento é se perguntar pelo número de trabalhadores que vivem atualmente de até 1 salário mínimo (hoje, o maior contingente entre os trabalhadores) e qual o percentual que a cesta básica toma de seu ganho.

Comecemos pelo número de trabalhadores que percebem até 1 salário mínimo: de março de 2019 para cá, este número aumentou de cerca de 27 milhões para 33,8 milhões (34% dos trabalhadores); no mesmo período, caiu bruscamente o número dos que ganham acima de 2 salários mínimos (de cerca de 35 milhões para 26 milhões), diminuindo também fortemente o dos que ganham entre 1 e 2 salários mínimos (de quase 34 milhões para 31 milhões).

O aumento do desemprego nos últimos anos talvez explique a capacidade do capital em impor tão baixas faixas salariais. Como todos sabemos, uma das funções econômicas tradicionais do desemprego na economia capitalista é justamente pressionar os salários para baixo. Ora, mas espera-se também que a maior busca por mão-de-obra pelo capital eleve os salários oferecidos, e não é o que, pelo menos até agora, está acontecendo: a diminuição da quantidade de desempregados, que, de 14,7 milhões em janeiro de 2021, chegou a 11,3 milhões em abril de 2022, está acontecendo junto com essa baixa salarial.

Mais grave ainda é a resposta ao segundo quesito: enquanto aumenta o contingente de trabalhadores que ganham até R$ 1.212,00, a aquisição da cesta básica ocupa uma maior proporção do salário mínimo. Até 2018 (e desde 2012), o consumo da cesta básica mobilizava cerca de 40% do salário mínimo; em junho deste ano, essa proporção chegou a 55% do salário mínimo. Em outras palavras, não apenas aumentou o contingente dos trabalhadores que ganham até 1 salário mínimo, diminuindo os que ganham entre 1 e 2 s.m. e os que ganham acima de 2 s.m., mas passou a ser preciso usar uma maior parte do salário mínimo para se comprar o mesmo que se comprava antes (o que significa dizer que os salários menores compram menos do que compravam).

Essa talvez seja uma das explicações para o aumento da insegurança alimentar também em níveis moderado e leve, já que não apenas aumentou o número dos que ganham nominalmente menos (incluindo os que ganham menos de meio salário mínimo: estes são cerca de 75 milhões), enquanto, além disso, realmente se compra menos com R$ 1.212,00.

A diminuição da compra interna da carne bovina, se compõe os índices de aumento da pobreza e da ampliação da insegurança alimentar, não significa, contudo, uma queda nas vendas, pois essas se realizam em grande parte no mercado externo. “No primeiro semestre deste ano, a exportação de carne bovina cresceu 52% em receita [friso: em receita] em comparação com igual período de 2021. De janeiro a junho deste ano, o faturamento com as vendas chegou a US$ 6,2 bilhões, ante US$ 4,08 bilhões no mesmo período do ano passado. Em volume, o aumento foi de 21,5%, passando de 874 mil toneladas em 2021 para 1,06 milhão de toneladas até junho deste ano”. 

Retenhamos esse dado: entre janeiro e junho desse ano, o criadores brasileiros exportaram mais de 1 milhão de toneladas (isto é, mais de 1 bilhão de kilos de carne bovina).

Os capitalistas brasileiros possuem o maior rebanho comercial de gado bovino do mundo (o segundo em quantitativo absoluto, sendo a Índia o primeiro, embora não comercial). São cerca de 210 milhões de cabeças, das quais cerca de 40 milhões são abatidas anualmente (nessas 40 milhões de cabeça abatidas, inclui 1 milhão de toneladas de carne exportada). Em números, informa a Embrapa em seu site: “A exportação de carne bovina já representa 3% das exportações brasileiras e um faturamento de 6 bilhões de reais. Representa 6% do Produto Interno Bruto (PIB) ou 30% do PIB do Agronegócio, com um movimento superior a 400 bilhões de reais, que aumentou em quase 45% nos últimos 5 anos”.

Ainda que represente apenas 3% das exportações brasileiras, a carne bovina expressa bem a lógica dessa pauta de exportações. Em 2021, a carne bovina foi o 5º produto no ranking das exportações do Brasil (com valor de R$ 7,4 bilhões), atrás de minério de ferro, soja, óleos brutos de petróleo e açúcares e melaço, mas estando na frente, em valores de venda, aos produtos manufaturados (da indústria de transformação). Facilmente visível, as exportações brasileiras são todo baseadas na oferta de produtos primários, bem secundariamente os manufaturados, cujos valores chegaram a apenas R$ 6,4 bilhões; e só com os primeiros sete itens, oriundos de extração mineral, agricultura e pecuária, obtiveram-se R$ 136 bilhões. Se somarmos os valores dos dez principais produtos da pauta brasileira de exportações (R$ 155 bilhões), os produtos industrializados representam em receita apenas 5% deles.

Mais do que da “nossa” pauta de exportações, a situação da carne bovina brasileira expressa a lógica do mercado mundial e do lugar que, nele, ocupa a economia brasileira. Este lugar, os dados não deixam espaço para dúvidas, é dado pela lógica do “sistema colonial” (no sentido do Caio Prado Junior): dele participamos como vendedores de produtos primários, semimanufaturados e manufaturados. Se isolarmos só os produtos de indústria de transformação, importamos em valor (R$ 8,9 bi) mais do que exportamos (R$ 6,4 bi); mas àqueles valores devemos ainda somar os de produtos como adubos e fertilizantes (R$ 13,4 bi), medicamentos e produtos farmacêuticos (R$ 7,3 bi), válvulas e tubos termiônicas (R$ 7,1 bi), equipamentos de telecomunicações (R$ 7,0 bi), partes e acessórios de automóveis (R$ 6,7 bi), motores e máquinas não elétricos (R$ 3,8 bi) etc., cujos valores, em sua maioria, superam em muito os valores atraídos com a exportação de produtos manufaturados.

Exportamos poucos produtos manufaturados (da indústria de transformação), sendo maior parte de nossas exportações os produtos primários, enquanto importamos produtos industriais e de tecnologia. Olhada assim a situação, há quem poderia ainda alimentar novas aspirações industrializantes, sob a tese de que um novo surto industrial tornaria a economia brasileira mais uma vez contemporânea das “nações industriais”.   Mas a situação apresentada é ainda apenas aparente, pois ignora a função produtiva dos produtos importados. Por exemplo, tomemos os componentes eletrônicos (válvulas e tubos termiônicas), necessários à montagem aqui de aparelhos eletrônicos, equipamentos de telecomunicação (para produção de aparelhos e funcionamento de serviços de telefonia, internet etc.) e partes e acessórios de automóveis. São produtos importados porque – é óbvio – não se fabricam aqui ou porque no Brasil não há parque industrial com capacidade tecnológica para isso ou, o que termina na mesma, sai mais barato importar do que produzir cá. São produtos mais elaborados, mais sofisticados, que agregam mais valor.

As empresas que aqui operam e o mercado consumidor que aqui se constitui são dependentes das importações desses bens, cuja produção se encontra em poucos lugares e em mãos de poucas empresas. Em outras palavras, grande parte da indústria brasileira é, literalmente, de montadoras, indústrias que produzem elementos menos elaborados tecnologicamente e que, para a montagem de seus produtos finais, importam peças cuja produção exige capacidade produtiva mais desenvolvida em tecnologia.

Mas, além desses, estão os bens de capital. Na lista acima: equipamentos de telecomunicações, motores e máquinas não elétricos. São meios de produção, sem os quais os produtos de consumo, dirigidos ao mercado interno ou para exportação, não podem ser produzidos. Nas condições da atual revolução científico-tecnológica, toda a competitividade (capacidade de concorrer) no mercado mundial das empresas atuantes no Brasil depende do uso desses (e outros) bens de capital.

Se se tem em vista a centralidade que as transformações tecnológicas (química fina, micro-eletrônica etc.) têm operado não apenas nas estruturas produtivas, mas, em decorrência, na própria estrutura do mercado mundial, não pode haver dúvida de que a economia brasileira reafirma, nas atuais condições, uma certa lógica “colonial” em sua relação com a economia mundial. Uma das manifestações dessa lógica é o processo de desindustrialização da economia brasileira: essa presença pequena dos produtos manufaturados na pauta brasileira de exportações expressa mais ou menos uma situação da indústria também na economia nacional, em seu PIB. Entre 1947 e 1985, essa participação avançou, com pequenos sobe-e-cai, de 20% para 36%. De 1985 para cá, quando se ampliaram os impactos produtivos e de mercado da terceira revolução industrial, essa participação, com mais descidas do que subidas, voltou a patamares abaixo dos de 1947. Em 10 anos, entre 2011 e 2021, essa participação baixou 5 pontos percentuais: de 23,1% (2011) a 18,9% (2021).

Mas seria um engano considerar que aquela referida dependência de importação de bens de capital é devido à nossa desindustrialização: a lógica é inversa. Durante muito tempo, pelo menos desde o final do século XIX, quando o aumento do preço do café no mercado mundial criou as condições de um novo surto industrial (após aquele possibilitado pelo fim do tráfico de escravos nos anos 1850-60), a substituição de importação de bens manufaturados para consumo interno (que passaram então a ser produzidos aqui mesmo) se baseou tecnologicamente na importação de bens de capital (máquinas, fontes de energia etc.). Essa lógica “colonial” não desaparece nem quando tratores, máquinas etc. passam a ser produzidos aqui (anos 1950-1970), e se aprofunda fortemente nas condições da terceira revolução industrial, quando ganha centralidade bens de capital de alta tecnologia, e que nos situou, parece que definitivamente, em outra idade da história da indústria, a da segunda revolução.

Por isso, um novo ciclo de industrialização não superaria a subalternidade econômica da economia brasileira na economia mundial, apenas alteraria os termos da dependência (maior produção e exportação de produtos industrializados, maior importação de bens de capital tecnologicamente desenvolvidos, coisa que, aliás, foi vivido no auge da indústria brasileira, os primeiros anos dos 1980). Segundo a lição de Chico de Oliveira, depois de 100 anos de desenvolvimento industrial (1880-1980) intermitente, mas progressivo, a coisa chegou a um fim de linha, em que não é mais possível à economia brasileira tornar-se contemporânea dos setores e regiões tecnologicamente mais desenvolvidos da economia capitalista. A terceira revolução industrial é sua (da economia brasileira) barreira instransponível.

Assim, não se trata apenas de um processo quantitativo de desindustrialização (coisa que vem ocorrendo nos EUA e países europeus), mas de reafirmação do lugar da economia brasileira na divisão internacional do trabalho e consequente reprimarização dessa economia no contexto da revolução científico-tecnológica. É aqui que encontramos a carne bovina – ou melhor, é nesse contexto que podemos compreender seu lugar na economia brasileira, no PIB brasileiro, na pauta brasileira de exportações. É um produto de exportação típico de uma economia que, passadas as décadas de entusiasmo industrial, confirma o corajoso “prognóstico” de Caio Prado (em Revolução brasileira, 1966)e se reafirma como produtor de produtos primários para o mercado externo, em condição de dependência econômica, tecnológica e de mercado, com base na grande produção agrícola, pecuária, extrativista. (Aliás, não parece ser à toa – algo que não vai dar para desenvolver neste artigo – que, ao já longo período de recuo e agonia da industrialização brasileira, corresponda a modernização tecnológica da… agropecuária!).

Essa confirmação do diagnóstico das tendências históricas do capitalismo brasileiro por Caio Prado é um tanto pitoresca se se observa que, com alterações de percentuais, a liga da economia brasileira ao mercado mundial se dá atualmente com a soja (ao lado da cana de açúcar, do milho e do algodão), na sequência dos grandes ciclos dominados pelo açúcar (século XVI-XVIII), depois pelo algodão (século XVIII-XIX) e, por fim, pelo café (século XIX-XX). O papel que o ouro teve no século XVIII é hoje ocupado pelo minério de ferro e pelo óleo cru de petróleo. E o gado bovino – bom, o gado bovino permanece no lugar que sempre teve na pecuária desde o século XVII.

A criação do gado vacum foi um principais meios de colonização destas terras de cá pelo menos desde o primeiro século: meio de ocupação e de exploração da terra, com base na organização escravista do trabalho, submetido aos interesses econômicos do empreendimento comercial, que era a colônia. Como a terra não tinha valor econômico, pois nada havia construído nela no sentido do mercado, e a criação de gado exigia menos dinheiro do que os engenhos, a pecuária cresceu, ao lado destes últimos, exigindo “unicamente” negros, índios e mestiços escravizados e ocupação das terras, para isso enfrentando os povos indígenas, expulsando-os delas, submetendo-os pela violência.

“Esse deslocamento para interior, para a conquista da terra”, diz Oliveira Vianna (Evolução do povo brasileiro, 1933, 2ª ed.), “não é empresa suave. O conquistador tem que vencer, a um tempo, as agrestias da natureza tropical, as traições das alimárias ferozes e a oposição tenaz e insidiosa do gentio”. Sem deixar de manifestar sua empatia com o gesto civilizador do conquistador, ele acrescenta: “O grande obstáculo […] é o índio insubmisso. Este, pugnaz e recalcitrante à expropriação de que é vítima, tem que ser afastado e repelido e dizimado a tiros de mosquete, a ponta de espada ou a golpes de flecha”. Assim foi em todas regiões, nas quais, do litoral para o interior do país, a criação de gado cumpriu a função colonizadora, que, desde o começo, era essencialmente econômica: no Sudeste, no Sul e no Nordeste. Nestas últimas terras, guiados pelos “paulistas” (bandeirantes), os colonizadores “as limpam da vermina numerosa dos carirysicóssucurúscanindéspayacus e pimenteiras, permitindo assim a rápida difusão dos criadores pelos sertões do nordeste”.

É essa a origem das sesmarias (logo, da grande propriedade rural), cuja concessão costuma ser, erroneamente, apresentada como ato puramente jurídico, e mesmo originário à posse. “O processo seguido geralmente na conquista é o ‘povoamento’ preliminar, isto é, o desbravamento da terra, a repulsão dos índios, a eliminação das feras, o amanho do campo, a formação dos rebanhos. Depois, alegando-se estes serviços, é que requer o ‘povoador’ a concessão da sesmaria” (Oliveira Vianna, op. cit.)

O gado foi usado, inicialmente (século XVI), como fonte de energia para os engenhos, para fazer girar as moendas, para o transporte das canas e, depois, das sacas do açúcar em carros de boi; só muito excepcionalmente para o corte. Compunha, portanto, o sistema produtivo do engenho, baseado no trabalho escravo, sob o domínio do senhor de terras, de escravos e – de gado. A dominação escravista não era menos cruel com os bois, coisa decorrente do trato dos homens de pele negra como simples animais. Segundo Alberto Passos Guimarães (Quatro século de latifúndio, 1968, 2ª ed.), o gado “tornara-se um escravo tão disputado quanto o negro e cujas reservas deveriam ser tão abundantes quanto a dos produtores humanos”. Compreende-se, então, a necessidade inicial de expansão da criação de bois, quando se sabe que “o desgaste daqueles era de tal ordem que exigia sua renovação ao cabo de três anos”. Sim, três anos de esforços extenuantes, que esgotavam seu ciclo vital.

A esse uso do gado como fonte de energia para os engenhos e os transportes, veio a ampliação do consumo da carne, do final do século XVII para o século XVIII, com a criação do mercado interno associado à febre mineradora, assim como a ampliação, desde o XVII, dos usos do couro para a exportação do tabaco. Esse último caso merece uma nota a mais. O crescimento da pecuária nos Seiscentos ocorre junto com o surto local da produção da folha de fumo a ser exportada para a Europa (como, aliás, precisava ocorrer com os produtos de qualquer atividade econômica que vingasse naquele regime colonial). E isso porque, com o cultivo do fumo “abria um vasto campo para o emprego do couro, como envoltório dos rolos de tabaco” (A. P. Guimarães, op. cit.).

No XVII, só na Bahia, anualmente, 25 mil couros de boi eram usadospara empacotamento do tabaco, situação correlata, embora em menor quantidade, a outras capitanias. O couro de um animal passou a ter um preço superior ao da carne quando se fez necessário à exportação do tabaco, o que significa que os bois eram mortos aos milhares não com fim principal no mercado (e consumo) interno de carne bovina, que se tornara secundária e de menor valor, mas no uso do couro para a exportação do fumo. Uma economia colonial, afinal de contas (numa época cujas condições técnicas não permitiria exportar carne). Uma mercadoria não visa essencialmente à satisfação de carências humanas, mas à de necessidades econômicas do capital.

Esse domínio sobre a terra, o gado e os homens não parou do século XVI até agora. A criação do gado só se fez ampliar. Da então exportação de couro, como invólucro da folha de fumo, à atual de carnes, quatro séculos se passaram, mantida a mesma lógica mercantil, agora sobre fundamentos capitalistas: uma produção exportadora com base na grande exploração de terras, desmatando-as, empobrecendo-as, até mesmo esgotando-as, pela monocultura (da soja ou do gado); mantendo, igualmente, o constante enfrentamento genocida às nações indígenas.

O sentido histórico dessa lógica resultaria justamente na atual forma de sociedade. No filme Martírio, em cena de uma reunião dos índios Guarani Kaiowá durante o processo constituinte de 1987-88, um de seus líderes diz em guarani aos parentes ali presentes: “Nosso problema se chama capitalismo”. A palavra que entre eles expressa o conceito de capitalismo é aquela que os guaranis usam, originariamente, para referir-se a – porteira.

Emiliano Aquino

Professor Associado da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Doutor em Filosofia (PUCSP), com Estágio Pós-Doutoral na Universidade de São Paulo (USP). Autor de *Reificação e linguagem em Guy Debord* (EdUece, 2006) e *Memória e consciência histórica* (EdUece, 2006), além de capítulos de livros e artigos de filosofia em revistas especializadas. Militante socialista independente.

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