Para além de “o que fazer?” cabe perguntar: “como recomeçar?”

Por Leonardo Lima Ribeiro

Foto de Levi Meir Clancy, em Unsplash

Então é hora de recomeçar tudo outra vez, sem ilusão e sem pressa, mas com a teimosia do inseto que busca um caminho no terremoto.”

Carlos Drummond de Andrade

Este debate é clássico entre nós: a complexidade do capital em “ascendência”, com avanços imperialistas e monopolizadores de mercados demarcam a constituição da presente realidade. Inclusive, no tocante à tutela dos Estados e no modus operandi de organizar, fracionar e despolitizar os trabalhadores e desalentados.

Mas há uma hipótese complementar que considero até mais convincente. Para que o capital avance internacionalmente, tende a se descapitalizar em inúmeras regiões do planeta, transmutando imensas regiões em valas comuns de enterro de inocentes. As crises do capital produzem entropias internas com involuções civilizatórias. Assim, leva países mais frágeis, com economias mais dependentes dos impulsos neocoloniais do “superimperialismo”, a situações de pré-capitalismo.

Atualmente, a economia política prescinde de dinâmicas expansivas pelas quais o capital procura expandir-se mundialmente. Adentraram em uma etapa complementar ao movimento expansivo. A curiosidade e apropriação do que era antevisto como desconhecido têm sua continuidade no descarte de parcelas do que já foi experimentado, conquanto sob as engrenagens que ficcionam a justificação irracional da sua inutilidade.

Hoje, as burguesias globais operam pela lógica da precisão, do fracionamento e do descarte. Podem escolher por regiões de interesses específicos, na espessura do globo terrestre mapeado por satélites e outros meios de ardiloso controle. Consequentemente, por meio de cálculos antecipados podem invisibilizar regiões e povos considerados desnecessários, apagando os rastros de suas histórias e memórias.

Em um jogo de claro e escuro, visível e invisível, criam então a partir dos limites de sua vitrine iluminada e cronicamente mutável o complemento inverso, ou seja, zonas opacas imóveis, bordas manufaturadas de imensa espessura sombreada sob a configuração de desertos do real invisibilizado. O capitalismo coabita com aquilo que ele não é, engendrando a partir de si o próprio não ser.

Assim, cumpre a tarefa de produzir violências geográficas descapitalizadoras. O produto é a morte não rastreada. A morte sobre a qual não temos notícias de que um dia teria sido uma vida não é sentida ou percebida como passível de existência. A manufatura da invisibilidade por parte do capital confere o estatuto de eterna inexistência para alguns daqueles que factualmente já coabitaram conosco o presente planeta.

Somemos isso ao fato de que, por meio das guerras mundiais, o capital não consegue mais expandir mercados, engendrando novos públicos consumidores, como antes pautava por meio de cínicos cálculos de morticínio de modelos de sociedade tidos como “anacrônicos”, passíveis de serem integrados aos marcos daquilo que historicamente era tido como mais avançado.

Ainda se trata de uma dinâmica de guerras, as bases militares estão espalhadas por todo o planeta. Mas não condiz com nenhuma cínica perspectiva transcendente, porquanto não são significativamente plasmadas através da necessidade de máscaras encobridoras, ou seja, sob a certificação ou selo da propaganda de exportação da democracia do consumo de bens materiais e imateriais aos povos esmagados de antemão.

A beligerância avança sem máscaras, sem pseudoparaíso como promessa a posteriori. Trata-se de implosão e produção fracionada de crateras de morte na superfície do planeta, como, por exemplo, bem já prenunciava Mészáros, prognosticando que a barbárie poderia avançar contra o socialismo. Não há nada de predeterminado em meio aos processos contraditórios da história humana e da luta de classes. A vitória não é dada de antemão, tal como um espírito celeste ou espaço metafísico abstrato à espera dos eleitos telúricos passíveis de incorporá-lo à luz de sua necessidade de realização internacional.

Para a burguesia, não se trata de reerguer ou recodificar mais nenhum tipo de sociedade global. Essa fase é pretérita, mesmo que no tocante à educação para o consumo das massas. Enfatize-se, portanto, que, para a burguesia, é mais barato deixar morrer do que assassinar com o objetivo de reerguer sob horizonte da capitalização dos escombros do que restou no entorno da prole ainda não assassinada.

Se o capitalismo não sobrevive sem consumo, então, por vias de exceção à “regra”, necessita acelerar seu próprio desabamento para garantia de margens de lucro. A injunção é a de cortar na própria carne. O consumo e a distribuição de mercadorias são apenas um dos eixos estruturantes do capital, assim como o processo produtivo e o tempo de trabalho socialmente necessário na forma de salário. Sob a lógica da especulação, não por acaso, o fascismo ressurge em momento de colapso civilizatório, descalibrando os eixos estruturantes da cultura e da economia política em conjunturas nas quais o capital necessita tornar-se autofágico, cortando em sua própria carne e engendrando artificialmente zonas fantasmas sob seu controle, habitadas por vidas mortificadas, espectrais.

Pensam hoje assim as burguesias globais neoaristocráticas, com seus impulsos neonazistas em tensão, numa espécie de nostalgia do passado recente, em que, por exemplo, para que a indústria fosse amadurecida na Europa, com códigos jurídicos formais para o mundo do trabalho ao norte do planeta, seria preciso manter a escravidão e o subdesenvolvimento nas Antilhas e outras paragens ao sul do Globo, embora posteriormente aplicassem ações semelhantes no bojo de seus próprios territórios nacionais. Algo que engendrou, por exemplo, o nazismo.

De todo modo, cabe dizer que o que está expresso envolve mais do que nostalgia. Criaram novas maneiras de produzir sua mais-valia, ou novos meios de pilhagem, sendo atravessada por tecnologias que desempregam e isolam em velocidade inimaginável os inocentes desnudados de vida e de educação, os quais ficam pelo caminho como extensões de ruínas vertidas como rastros de barbárie sobre territórios desimportantes, ou importantes demais para terem autonomia. Não por acaso, o capitalismo inerentemente reacionário, e enquanto pano de fundo para impulsionar processos “civilizatórios”, implode em inúmeras regiões, subutilizando quantidade cada vez maior de massas de indivíduos precarizadas, sob a condição de subhumanas.

O capital não precisa necessariamente da totalidade de seu par complementar, nem mesmo daquilo que intitulam de “mão-de-obra qualificada”, a qual pensa que o valor de sua salvação pode ser medido pela qualidade de seu passaporte. A dinâmica do trabalho nos marcos do capitalismo desmorona, e múltiplos processos de regressão histórica avançam paradoxalmente em cadeia, por mais que os apologistas das novas tecnologias culpem os indivíduos sobrantes de não terem a determinação necessária para se reciclarem ou se “uberizarem” qualitativamente do ponto de vista subjetivo, e de modo a se adaptarem aos “novos” tempos.

Tal leitura é atualmente mais concreta e objetiva do que tratarmos especificamente das colonizações da esquerda e de seus reformismos. Pontuemos também que é mais do que isso. O descompasso histórico da política com regressões em paralelo, implicadas em recentes processos de pilhagens neoescravagistas, também pressionou a esquerda endógena ao sistema para implosão, incorrendo em contradições insanáveis, conquanto esteja sempre com a corda no pescoço. Foi desmontada por dentro do processo entrópico inerente às dinâmicas do capital.

Ao menos no ocidente o quadro demarcado é o que está supramencionado. Por isso, denunciar o reformismo da esquerda é pouco, contraproducente. O momento histórico objetivamente parece ser outro. Como a esquerda implodiu junto com as erosões internas ao capital, o máximo que consegue hoje é manter algumas margens de teto civilizatório, as quais não desabem sobre sua cabeça na forma de escombros da história dos mortos vivos.

Não me espanto se o fascismo vier muito mais forte do que no início do século XX. Isso sim é mais preocupante, pois aponta para a falência não apenas da esquerda mainstream, mas de nossa própria falência como dissidentes, que se intitulam de revolucionários e comunistas.

A pergunta que segue então é não apenas mais sobre “o que fazer?”, mas fundamentalmente a respeito de “como recomeçar a sair dos escombros e das ruínas da história dos mortos?”.

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