O reacionarismo bate à porta da esquerda 

Por Celina Lazzari

A filósofa espanhola Rosa Maria Rodriguez, ao palestrar sobre o identitarismo1 disse que “conceitos em princípio libertadores podem se converter em reativos e até reacionários”. O que vem avançando nas políticas sobre crianças e mulheres atualmente, pela via do progressismo, da transgressão, da suposta libertação dos seres humanos, tem-se revelado uma nova face, de preconceito e reacionarismo. 

A linguagem sobre identidade de gênero tem sido imposta de forma hegemônica pela classe burguesa, como sinal de avanço, progresso e superação de opressões, sob um suposto caráter “científico”, embora apresente elementos que conflituam com a capacidade organizativa da classe trabalhadora, com a classe sexual das mulheres e, de forma mais gravosa ainda, em relação à infância e adolescência. Basta observar financiadores e a quantidade de organizações que comprometem suas finalidades voltadas às mulheres, crianças, movimentos negros, enviesando com a agenda transativista, se descaracterizando completamente em sua razão de ser. Open Society, Ford Foundation2, entre outras, têm promovido debates, políticas, fundos de investimento e discursos a serem adotados. Quando se analisa os efeitos de políticas identitárias no cotidiano nota-se elementos de discrepância, distanciamento e elitismo e que vem, forçosamente, sendo empurrado à sociedade a fim de transparecer que se tem lastro social. 

A adesão às teorias de gênero tem sido inseridas nas leis, resoluções e acordos coletivos governamentais de diversos países ocidentais, e, pelo manto de progresso, tem sido “argumento” suficiente para uma validação acrítica de boa parte do campo da esquerda no Brasil, culminando em um grave erro com consequências ainda a serem avaliadas a médio e longo prazo. Também importa notar que essa agenda vem sendo forçada artificialmente como uma suposta demanda da classe trabalhadora, e que tem uma operacionalização viabilizada por grandes corporações, bem como por meio de bandeiras encampadas por partidos e movimentos de esquerda no Brasil e no mundo. Você já viu campanhas da Doritos, da Carrefour, Itaú, Natura, em favor da “diversidade”, da linguagem neutra, da suposta inclusão, mas você não verá uma campanha anti pedofilia ou contra a misoginia, por essas grandes corporações. Um dos efeitos mais evidentes é que críticas têm sido conduzidas, algumas vezes com propriedade, pelo campo conservador de direita, onde se tem feito um contraponto, com apontamento dos equívocos e conflitos em torno dessa questão, bem como a denúncia da diluição de valores de referência importantes aos trabalhadores, o que acaba por se refletir no desvio de lutas que condizem com as necessidades sociais concretas. A questão identitária e sua imposição pelo campo progressista, parece ser um elemento que demonstra o movimento contraditório daquilo que viria para libertar, mas produz o seu inverso, fragmentando a organização da classe trabalhadora, descaracterizando a justa luta contra opressões por meio de falsas soluções, de uma desconexão da realidade, do flerte com o transhumanismo e elevação de “soluções de linguagem” para problemas reais (e isso não quer dizer, de maneira alguma, que são inócuas, visto que a linguagem molda a realidade). 

E aí entramos na polêmica do momento, as chamadas “crianças trans”. Esse termo, “criança trans” é uma linguagem, uma leitura que não aponta para um outro tipo de sujeito (em contraposição a uma “criança cis”), ou para um novo ser humano descoberto pela ciência. “Criança trans” é uma imposição ideológica. E essa forma ideológica serve a outro propósito, ela é condição necessária para validação de toda uma noção de “pessoas trans”. 

O que é uma criança trans? 

Se observarmos os relatos e as justificativas “científicas”, observamos que sistematicamente se incide no argumento de que são “crianças no corpo errado”, crianças que têm “cérebros trans”, ou seja, cérebros de menino no corpo de menina, e vice-versa. Mas as pessoas nascem em corpos errados? Existe cérebros rosa e cérebros azuis? Se um cérebro é azul e está no corpo ‘rosa’, não significa então, que cérebros podem ser azuis e rosas e estarem em corpos femininos ou masculinos, … e tudo bem? O que observamos e contestamos é a noção de que um sujeito esteja no corpo errado. Isso em si é um equívoco e tem elementos perigosos, que engessam e limitam as expressões do comportamento humano à caricaturas sobre o ser menino e ser menina. Caricaturas claramente sexistas e que apontam justamente para a cristalização de noções reacionárias sobre os sujeitos. A título de exemplo, observemos o equívoco da “definição” proposta pelo Conselho Federal de Medicina3 para “pessoas trans”, onde é possível verificar a esquiva e o jogo linguístico que atravessou as áreas que lidam com esse fenômeno: 

Artigo 1º da resolução: 

§1º Considera-se identidade de gênero o reconhecimento de cada pessoa sobre seu próprio gênero. 

§2º Consideram-se homens transexuais aqueles nascidos com o sexo feminino que se identificam como homem. 

§3º Consideram-se mulheres transexuais aquelas nascidas com o sexo masculino que se identificam como mulher. 

§4º Considera-se travesti a pessoa que nasceu com um sexo, identifica-se e apresenta-se fenotipicamente no outro gênero, mas aceita sua genitália. §5º Considera-se afirmação de gênero o procedimento terapêutico multidisciplinar para a pessoa que necessita adequar seu corpo à sua identidade de gênero por meio de hormonioterapia e/ou cirurgias 

Observamos que na alinea 1 se afirma um “reconhecimento individual do seu próprio gênero”, que podemos compreender como uma auto percepção de seus próprios comportamentos tendo como critério orientador os estereótipos do que se atribui a ser homem e ser mulher; mas já nos parágrafos seguintes não se está mais se referenciado ao gênero, e sim ao sexo, pois se estabelece que alguém nascido de um sexo que “se identifica” como sendo do sexo oposto seria uma pessoa transexual (de outro sexo). 

Por mais que tentem, a adequação está ali, o ajustamento está ali, o sexismo e os estereótipos estão ali, como foi destacado. A noção de que haveria alguma paridade entre “sexo de nascimento” (existiria outro sexo, que não o que nascemos?) e gênero (papéis sociais baseados em comportamentos e expressões) é, em si, algo a ser problematizado. O termo “gênero” é usado para estabelecer papéis específicos a partir do sexo das pessoas. No entanto, um determinado papel social não é inerente a um sexo. “Gênero” é uma forma de dizer o que homens e mulheres, meninos e meninas podem fazer, mas que parte de convenções sociais variadas em culturas, sociedades e na história. E que podem e devem ser constantemente questionados, em vez de reforçados. 

Observamos também que nos parágrafos 2 e 3, se afirma que uma pessoa transexual é quem nasce de um sexo e se identifica como ‘homem’ para o sexo feminino ou ‘mulher’ para o sexo masculino, deixando em aberto a definição de homem e mulher, posto que atualmente os movimentos de “pessoas trans” apresentam uma não-definição (uma definição circular): homem é quem se identifica como homem e mulher é quem se identifica como mulher. 

Ora, se não se define efetivamente o que é homem e o que é mulher, é evidente que isso recai em ausência de definição para o que é menino e menina. Se for compreendido que ser menino é algo baseado em expectativas sociais (de gênero) estaremos estabelecendo padrões rotulantes para os meninos, e vice versa: menino é quem gosta de carrinho, usa azul, não chora, é mais masculino, e menina é quem gosta de cuidar, de boneca, é delicada, etc. Portanto, “identificar com outro gênero” não deveria implicar em mudar o sexo de uma criança, dado que gênero são apenas construções sociais. 

A lógica é baseada na autoidentificação: (1) “se identificar” com atributos sexuais de outro sexo ou (2) se identificar com comportamentos “femininos ou masculinos”. No primeiro caso, perguntamos: as pessoas nascem em corpos errados? É o que a Medicina e a Psicologia, atravessadas ideologicamente, estão tentando sustentar: a ideia de “incongruência de gênero” e o que é denominado no artigo 1º como “não paridade entre a identidade de gênero e o sexo ao nascimento”. No segundo caso, perguntamos: se identificar com comportamentos femininos e masculinos implica “ser” de outro sexo? 

Embebidos desses conceitos pseudo-científicos, propositalmente ambíguos, atravessados por verdadeiros malabarismos verborrágicos, o neoliberalismo progressista avança em crianças e adolescentes que não seguem expectativas sociais para seu sexo, lhes dizendo que a solução é cosmética: bloquear puberdade, usar hormônios que seu corpo não produz naturalmente, usar roupas “de outro sexo” (curiosamente, isso se aproxima da famosa frase de que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”), usar pronomes para se referir a outro sexo, etc. 

Soluções cosméticas, que claramente produzem confusão, ocultam a realidade concreta e as formas de opressão e exploração. Tais soluções encobrem os verdadeiros fatores que levam crianças e adolescentes, cada dia mais a odiarem seus corpos, a transformarem seus corpos em mercadoria, a adotarem uma concepção de que se pode adquirir partes de corpos e modelar-se de acordo com o “desejo”. Guiados por desejos cuidadosamente modelados por um sexismo cada dia mais naturalizado, reacionário, pelas máquinas midiáticas e grandes conglomerados, a mensagem é: “me fabrico” logo sou. Um movimento e uma ideologia que caminha de mãos dadas com as grandes

multinacionais, que converte os seres humanos em objetos a serem fabricados, é um caminho claramente alinhado à desumanização. 

Qual o interesse do capital em colonizar a esquerda em relação a esse tema? Qual seu objetivo econômico-político? A quem serve esse tipo de apologia ideológica? 

O capital não tem “interesse”, ele se movimenta, acha nichos de acumulação, de valorização do valor. Houve uma demanda original, um apelo legítimo de quebras da rigidez dos papéis sociais. E daí descambou nessa forma subjetivista e totalmente descolada da realidade, que foi incorporada pelo capital, fomentada para extrair ao máximo o valor. Essa é a forma em si. Então, o interesse é o mesmo que sempre foi: acumulação pela via da exploração, e não é algo moral. Obviamente que há muitas corporações lucrando e fomentando isso de maneira totalmente antiética, irresponsável e violenta. Por exemplo, depois do bloqueio do hormônio natural do corpo humano, os sujeitos ficam dependentes para o resto da vida da hormonização artificial, e isso é uma mina de ouro para indústrias farmacêuticas. É curiosíssimo o quão a esquerda comprou essa ideia, fazendo fortes campanhas para tomar “os meios de produção de hormônios” em uma tentativa deprimente de transformar essa pauta claramente capitalista e repleta de uma ideologia neoliberal, com elementos de uma suposta “ação revolucionária”:

O que temos vistos, nas ações de médicos, é algo que se aproxima muito do que vimos ocorrer nos experimentos nazistas, ferindo claramente códigos de conduta médica que foram criados para proteger seres humanos, como o Código de Nuremberg, criado por consequências dos Processos de Guerra de Nuremberg, ocorridos no fim da Segunda Guerra Mundial, ou a declaração de Helsinque que versa sobre experimentos em seres humanos e sobre a proteção dos vulneráveis. 

Seria a instauração paulatina de um pensamento que visa a eugenia social? 

Parece haver um desejo dos seres humanos, em direção de uma constante tentativa de superar a natureza; não queremos morrer, envelhecer,… e isso é capitalizado pelas corporações. As mulheres sempre foram alvo disso pelo atravessamento da estrutura patriarcal, e hoje estamos sendo bombardeadas com a ilusão do rejuvenescimento, harmonizações faciais, dentes de resina, preenchimentos labiais. Se tudo isso já é vendido como sinal de melhoramento dos seres humanos, a troca de tudo o que é natural por dentes, cabelos, cílios, unhas, peitos e bundas artificiais, porque o sexo também não poderia entrar nessa? Por que não comprar uma neovagina? um neopênis? Muitos trans ativistas usam esse argumento de que já se tem na nossa sociedade a normalização de procedimentos estéticos para justificar os que eles demandam, acrescido disso a ameaça disfarçada de preocupação, de que no caso deles, não seria estético, mas “garantia de vida”, pois sem isso a angústia causada pela não conformidade com o corpo geraria tentativa de suicídio. 

Isso é uma falácia, não há qualquer estudo sério a esse respeito, no entanto, há estudos evidenciando o contrário, que procedimentos de mudanças de sexo não lidam com o que está subjacente a essa demanda, e que intensificam os sintomas4. Isso para adultos já é bastante grave, imaginem para crianças. Crianças estão sendo colocadas em uma posição impossível de responsabilidade. Elas estão sendo empurradas para que seus hormônios sejam bloqueados até elas “decidirem” o que “querem ser”. Isso é violência. Não se atribui essa responsabilidade às crianças e nem se mente assim para elas. Você não pode escolher ser de outro sexo. Uma criança não tem como mensurar e bancar uma decisão de ‘mudar de sexo’ com 9, 10 ou 16 anos, aceitar cirurgias mutiladoras de seios, pênis, correr risco de esterilidade para sempre, de nunca ter capacidade de ter um orgasmo, de intensificar diversos problemas subjacentes, de ter problemas osseos, etc5

O controle da natalidade mundial, uma espécie de malthusianismo com verniz de esquerda, parece ter alguma proximidade com isso? 

Como disse, em termos de intenção, de projeto articulado, é difícil fazer tal afirmação, mas é evidente que crianças rotuladas como trans, ao passarem por bloqueio puberal e troca de hormônios terão dificuldades em termos de maturação de seus órgãos sexuais, e isso é dito inclusive no WPATH (Associação Mundial de Profissões para Saúde Transgênero): 

“Adolescentes com genitália masculina que iniciam análogos de GnRH no início da puberdade devem ser informados de que isso pode resultar em tecido peniano insuficiente para técnicas de vaginoplastia de inversão peniana (estão disponíveis técnicas alternativas, como o uso de enxerto de pele ou tecido de cólon).” 

“As complicações da faloplastia em FtMs podem incluir estenoses e fístulas frequentes do trato urinário e, ocasionalmente, necrose do neófalo. A metoidioplastia resulta em um micropênis, sem capacidade de urinar em pé. A faloplastia, com retalho pediculado ou vascularizado livre, é um procedimento demorado, em vários estágios, com morbidade  significativa, que inclui complicações urinárias frequentes e cicatrizes inevitáveis na área doadora.” 

Então, sendo isso intencional ou não, pode-se pensar que é um dos prováveis efeitos desta agenda. A luta pela abolição de papéis de gênero é importante, em vez de seu acirramento sob a forma de afirmação de “identidades”, pois essa estereotipia em si é patológica e aprisionador para crianças. O sofrimento decorrente do corpo estranho tem fortíssima influência justamente das noções de gênero, ou seja, das formas de “orientação” impostas socialmente, que determinam o que é de menino e o que é de menina a partir de estereótipos. 

Semiologizar a realidade 

Queria trazer aqui o José Paulo Netto6 em um trecho de sua palestra, em que ele sintetiza muito bem o que têm acontecido com as ciências humanas e sociais. Estas ciências têm sido base teórica para respaldar a ciência médica e farmacológica. Zé Paulo fala que está havendo uma semiologização da realidade. Que o que está sendo exigido como critério de verdade é a representação dos sujeitos sobre o mundo e não o processo factual. O importante hoje não são os fatos mas o sentido que o sujeito atribui, sendo que a verdade está no significado, e é uma projeção de nossa consciência. O transitivismo parece uma caricatura desse processo. 

Projetos como o transativismo buscam criar formas desconectadas do real. Não se deve falar em intencionalidades quando discorremos sobre o capital, mas é tentador, ao ver o que as intervenções vendidas como soluções para “salvar criancinhas” tem produzido hoje em dia. Estamos em um estado de perturbadora alienação e desconexão da realidade. Estamos vendo grupos inteiros que se dizem revolucionários, totalmente embriagados em uma noção tão fina e frágil de que precisamos medicar e mutilar crianças para garantir seu verdadeiro “eu”. Gênero são papéis sociais. Dentro de uma perspectiva feminista séria (não aquele amontoado de identitarismo) gênero é um sistema de opressão baseado no sexo. Para muito além de ser contra apenas a medicalização e intervenções cirúrgicas, é importante ressaltar a violenta alteração do vocabulário para inserir termos que não tem lastro na realidade. Intervenções como essas são tão danosas quanto, pois mascaram a realidade, vendem soluções mentirosas às crianças. O que chamam de afirmação de gênero é hoje o negacionismo do neoliberalismo progressista.

Notas: 

1 https://www.youtube.com/watch?v=uQS6ieT9fck

2 https://www.awid.org/who-we-are-what-we-do 

3 https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2019/2265_2019.pdf

4 Jane W. Robbins, Georgia Attorney, Vernadette R. Broyles; O mito sobre suicídio e crianças com disforia de gênero. Disponivel em: 

Cecilia Dhejne,Paul Lichtenstein,Marcus Boman,Anna L. V. Johansson,Niklas Långström,Mikael Landén. Acompanhamento de longo prazo de pessoas transexuais submetidas a cirurgia de redesignação sexual: estudo de coorte na Suécia. Disponível em:  https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0016885

5 https://nocorpocerto.com/efeitoscolaterais/

6 https://www.instagram.com/reel/CrfzrpnrdaD/ utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA==

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