DO CINEMA CUBANO DURANTE A REVOLUÇÃO
Por Débora Peters (Produtora Audiovisual) – Formada em Comunicação Social, Gestão Empresarial, e Especialização em Documentário na EICTV Cuba. Produziu filmes e séries para a produtora da Casa de Cinema de Porto Alegre. Trabalhou na Fundação Cinema RS, TVE-RS e TV BRASIL, no Ministério da Cultura e na Ancine.
Memorias del Subdesarrollo, Cuba, 1968, P/B, 97 minutos, dirigido por Tomás Gutiérrez Alea
“Nos trópicos tudo amadurece e apodrece com facilidade, nada persiste”
Se você ainda não assistiu ao filme do diretor cubano Tomás Gutiérrez Alea, “Memórias do Subdesenvolvimento” faça-o, tem no YT. Caso já tenha visto, reveja-o. É um filme encantador pela sua estética e pelas suas diversas camadas de assuntos. Entre elas, uma grande análise sobre a América Latina e a sociedade como um todo. “Memórias do Subdesenvolvimento” irá te inquietar pela sua capacidade de questionar tudo, desde a existência, o sistema, e a figuras ícones como o escritor Ernest Hemingway. O filme ainda expõe as transformações em Havana após a Revolução, com uma contundente sutileza de seus impasses. A obra prima de Tomás Gutierrez Alea é tão repleta de referências que fica difícil escolher qual aspecto destacar.
Em entrevista à TV Cubana, o diretor Tomas Gutierrez Alea disse: “Procuro um cinema que estabeleça relação de prazer com o espectador e, se possível, o leve à reflexão crítica”. Exatamente isto que Alea consegue.
“Memórias do Subdesenvolvimento” permanece atual, porque reflete todas as questões que a América Latina ainda não superou. Este projeto foi produzido pelo ICAIC – Instituto Cinematográfico Cubano, estrelado por Sergio Corrieri, um belíssimo ator, que leva com muita naturalidade o personagem. Na equipe do roteiro com Tomás Alea esta o escritor cubano, Edmundo Desnoes, autor do livro que dá título ao filme. A produção de Miguel Mendoza, Fotografia de Ramon Suarez, Montagem de Nelson Rodrigues, Música de Leo Brouwer. No elenco ainda estão Daisy Granados, Eslinda Nunez, Omar Valdés e Rene de La Cruz. A obra é um clássico pela vanguarda da sua linguagem, originalidade e atualidade do seu argumento. O filme tem um excelente roteiro, atuação e uma direção primorosa e arrojada.
Em resumo, a obra é toda narrada, de forma não linear, feita pelo personagem Sérgio, um homem de 38 anos, de classe média alta, que vê sua mulher e seus amigos fugirem da ilha e do comunismo. Ele não quer partir, não porque seja um revolucionário, mas por curiosidade em saber o que vai acontecer. Enquanto o regime progride, ele vaga pelas ruas de Havana e observa a população. Os coadjuvantes têm os prós e os contrarrevolucionários. Elena, amante de Sérgio, encarna o cubano médio que aceita a Revolução. Sergio vive em crise de consciência, condena a população em que vive dizendo: “As pessoas não são consistentes e precisam sempre de alguém que pense por elas”. Sérgio subestima Elena, sua esposa Laura e o amigo Paulo. Despreza aqueles que adoram os Estados Unidos. O drama político mostra o espectador frente a frente com as contradições da nossa sociedade, do sistema e de todas as nossas fragilidades em relação à vida, ao amor e aos nossos anseios.
“O Final Feliz tem sido uma arma ideológica para encorajar e consolidar o conformismo em grandes setores do povo.” Tomás Gutiérrez Alea.
Neste ambiente, logo após a Revolução de Fidel Castro, em 1962, o pano de fundo pungente é o Estado de Subdesenvolvimento dos países da América Latina. O tema é abordado com muita clareza e profundidade, onde a reflexão sobre Cuba, remete sobre todos nós latino-americanos. Na sequência do Debate sobre Literatura e Subdesenvolvimento, surge um discurso de que a cultura num país subdesenvolvido pode ser, às vezes, por uma operação dolorosa, o meio pela qual um povo toma consciência de sua capacidade de transformar sua vida social e escrever sua própria história. Esta argumentação valoriza o papel da educação e cultura como fundamental para sairmos do nosso estado de subdesenvolvimento. O Brasil convive com esta contradição, por um lado figura numa posição de país em desenvolvimento econômico, como se estivéssemos sempre crescendo a um grupo dos países desenvolvidos, mas uma situação que claramente não ocorre, pela impermanência das nossas políticas. Em cada cena esta tese é reforçada, apontando a necessidade urgente de aprofundamento para o estabelecimento de um estado de desenvolvimento que ataque nossas contradições fundamentais.
“O trópico: para isto servem os países atrasados, para matar animais selvagens, pescar, pegar sol “. Narração de Sérgio no filme MDS.
A tese de que o Subdesenvolvimento nos define como latino-americanos nos remete a encarar estes pontos, para construirmos uma nova trajetória para o país. Entre as constatações que o personagem faz, uma das mais desconcertantes é a de como as pessoas no geral têm a incapacidade de sustentar um sentimento, ou uma ideia, sem dispersão. Esta característica de impermanência remete aos nossos governos, as nossas políticas, programas e ações que estão sempre mudando. “Memórias do Subdesenvolvimento”, clama para que o público questione sobre até quando vamos conviver com estes sinais de subdesenvolvimento sem nada fazer, até quando, vamos ter incapacidade de relacionar as coisas, e vamos passar a conseguir acumular experiências para nos desenvolver. Como o autor coloca, não podemos ter somente como nosso maior talento, o de nos adaptarmos ao momento.
“A primeira coisa que deve ser notada é que não tenho nada a ver com Sérgio. Sérgio é um espectador passivo da realidade, eu não sou. Sempre participei, desde antes da Revolução, da luta pela revolução, e ao longo desses anos participei ativamente.” Declaração do diretor Tomas Gutierrez Alea, entrevista site cinelatinoamericano.org
“Memórias do Subdesenvolvimento” é um filme necessário para ser visto hoje. O Brasil tem uma grande afinidade com este enredo. A última eleição do país deixou isto claro, temos que nos superar, construir um diálogo com os indivíduos, com os grupos, com a nação. O Subdesenvolvimento é econômico-social-cultural. Esta tríade precisa ter projetos estruturantes. Assim como não podemos ter uma economia somente pautada por empreendedorismo de motoboys, barbearias e hamburguerias, assim como também não podemos ter projetos culturais dependentes de editais pontuais. Se queremos estruturar nossa indústria, comércio e serviços, em harmonia com o meio ambiente, dentro do âmbito da economia mundial, temos que pensar em incentivar toda a cadeia da economia do produtor local para o global. Além disto, temos que ensinar as pessoas a pensarem por si só, e, para isto, temos um caminho, que passa pelo desenvolvimento econômico, mas também pelo desenvolvimento e fortalecimento da educação e da cultura num ecossistema interligado com a comunicação. Precisamos de projetos transversais e estruturantes de educação de base, alfabetização audiovisual e de diversidade cultural, associados ao nosso desenvolvimento econômico estruturante.
Como o personagem diz, estamos sempre recriando a roda, não somos capazes pela instabilidade sócio-política-económica de ter projetos permanentes, que possam ser aprimorados, que possam trazer avanços mais permanentes. Dentro disso está a incapacidade de relacionar as coisas, para somar a experiência e se desenvolver, que nos mantém neste Estado de Subdesenvolvimento. Esta constatação é uma discussão que precisa ser tratada com profundidade. Está na hora de fazermos um balanço do que foi realizado até aqui, para que talvez possamos descobrir que mudamos pouco do nosso estado de subdesenvolvimento, que nos falta uma ação efetiva coordenada, em todas as esferas de governos, instituições e da sociedade civil, para superarmos a impermanência. Chegou a Hora, não podemos deixar mais para amanhã, a menos que queiramos perder de novo esta batalha!
Link para Mubi e YT https://mubi.com/pt/films/memories-of-underdevelopment

Memorias del subdesarrollo, de Tomás Gutiérrez Alea (1968)



LINKS
l https://mubi.com/pt/films/memories-of-underdevelopment
