1964: A Esquerda Abandona a Classe Operária ao Léu

Por Mário Maestri

  1. 1964 e 2016: Sentidos e Destruição da Memória

Os transcursos das décadas, cinquentenários, centenários e outros anos redondos são momentos cabalísticos para celebrações, reflexões, reconstruções de acontecimentos históricos que se julgam prenhes de significados. Em geral, são os sucessos do presente que embalam essas rememorações, motivando embates contraditórios mais ou menos furiosos. Os aniversários do golpe militar de 31 de março de 1964 têm produzido avaliações opostas diversas, em geral, por um lado, se propondo em defesa dos direitos democráticos e civis agredidos e, por outro, justificando e glorificando o vintênio ditatorial. [CALIL et alii, 2017.] 

Neste ano de 2024, a novidade certamente foi o silêncio sobre os idos da Revolução Redentora, por parte das viúvas verde-olivas na ativa, saudosas dos tempos em que  mandavam, rolavam e marchavam sobre a população. Um mutismo castrense nascido da ordem do governo federal de manterem a boca fechada;  recomendado pelo fiasco do quebra-quebra de 8 de janeiro de 2023, em Brasília; impulsionado pela  vontade de lançar no olvido os acampamentos golpistas diante dos quartéis militares, no ocaso da administração do Mico. 

O silêncio dos oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica procura cancelar da memória nacional o golpismo militar e fortalecer a proposta roída do pretenso respeito das instituições nacionais pelas forças armadas. Quietação dos espíritos e olvido do passado necessários para que se encontrem nas melhores condições quando enfiarem outra conta no  rosário de suas intervenções anti-populares.  E o senhor Lula da Silva, à frente do bloco do “faz de conta que eu não sei”, acomodando-se ao autoritarismo das forças armadas, propôs que não devamos ficar “remoendo” 1964, que “já faz parte da história”. [Folha de São Paulo, 27.fev.2024.]

Golpe militar-empresarial 

Em 2024, o transcurso dos sessenta anos do golpe militar motivou uma volumosa produção recordatória sob a forma de artigos, de livros, de conferências, de lives, de seminários, de filmes, o que dificulta uma avaliação justa sobre ela, mesmo sintética, separando o trigo do joio, abordagens valiosas das mesmices habituais. Entre elas, as inovações formais que apimentam o senso comum, sem avançar o conhecimento sobre o passado. É um bom exemplo a invencionice da nominação necessária do golpe militar de 1964 como “ditadura militar-industrial” ou “militar-empresarial”. 

O golpe de 1964 foi, sim, dominantemente militar e, assim, parece-me, deve ser designado. Foram os altos comandos das três forças armadas que se apoderaram do governo e do poder e os mantiveram firmemente em suas mãos, de 1964 a 1985. E a devolução controlada aos civis deu-se, no meio de enorme crise econômica, após  muita resistência. Do que não se pode deduzir que a alta oficialidade agiu de moto-próprio, defendendo meros interesses corporativos. 

É consenso que os altos oficiais militares se apoderaram do governo e do poder incentivados e sustentados pelo imperialismo, sobretudo ianque; pelo capital industrial, comercial, financeiro, latifundiário e por segmentos médios e médio-superiores proprietários nacionais. Recebendo igualmente o consenso das principais instituições do Brasil, como a Igreja, o STF e por aí vai. Foi em forma indiscutível operação das classes proprietárias nacionais e internacionais, que, conscientemente, entregaram aos quartéis as rédeas da nação.     

Todos os Responsáveis

Não podemos deixar ninguém de fora, se quisermos nomear os segmentos sociais civis que impulsionaram, apoiaram e se locupletaram com o golpe militar de 1964. Nem  os incorporar, todos, no mesmo nível e ao mesmo tempo. No primeiro governo, de Humberto de Alencar Castello Branco [1964-1967], o protagonismo foi do imperialismo e do capital financeiro, mantendo-se o capital industrial nacional à margem das grandes orientações. Um período no qual a ditadura não poderia ser denominada de “militar-industrial”. [SKIDMORE, 1988; VIANA FILHO, 1975.]

Apenas a partir da entronização de Artur da Costa e Silva [1967-1969], em 15 de março de 1967, com o defenestramento da administração liberal-imperialista castelista, que a ordem ditatorial passou a interpretar, em forma dominante, as necessidades do capital industrial hegemônico do Brasil. Reorientação demarcada pelo projeto explícito da transformação do Brasil em potência internacional e pelo protagonismo ministerial de Antonio Delfim Netto, desenvolvimentista e menino dileto da grande indústria paulista. [MAESTRI, 2019: 215 et seq.; MACARINI, 2000.]

A pretensamente inovadora designação “ditadura militar-industrial” diminui a responsabilidade do alto comando das forças armadas, escamotei a intervenção imperialista estadunidense e da demais facções proprietárias nacionais, oblitera a evolução do  regime de 1964, em suas duas grandes etapas, a primeira, a liberal, até 1967, e a, segunda, desenvolvimentista burguesa autoritária, até 1985.

Desenvolvimentismo de Coturno

A incompreensão do caráter burguês nacional-desenvolvimentista da ditadura de 1964, após março de 1967, contribuiu, também, para que se tenha silenciado e se silencie as diferenças de qualidade entre o golpismo militar de 1964 e o parlamentar de 2016.  Confusão instrumentalizada pela atual proposta política de frente pluriclassista contra um bolsonarismo definido em forma oportunista como fascista e apresentado como a maior e permanente ameaça à nação brasileira. [MAESTRI, 13/06/2022.]

Essa abordagem pragmática do passado, enfatiza os ataques, em 1964-85, aos direitos democráticos, políticos e sociais da população, sem explicitar sua natureza de classe precisa e seu projeto. Proposta que sustenta que o golpismo parlamentar de 2016 tenha sido interrompido e revertido pela derrota de Jair Messias Bolsonaro, nas eleições presidenciais de outubro de 2022, pela dobradinha Lula-Alckmin, verdadeiros salvadores da lavoura democrática. 

Consolidar a derrota da direita fascista “bolsonarista” seria a grande tarefa política atual, para não retornarem os terríveis tempos de 1964 e ao desrespeito dos direitos democráticos e sociais do país. Para tal, exige-se a limitação das exigências, reivindicações e lutas populares para não romper a aliança com a burguesia e o imperialismo que garantiram a vitória de Lula- Alckmin.  Teríamos que respeitar o governo de centro-direita montado por Lula da Silv, como propôs despudoradamente José Dirceu, ao afirmar que esta é a “exigência do momento histórico e político que vivemos”. [CNN Brasil, 22/04/2024.]

Poderoso Projeto Industrialista

O golpe de 1964, após o período castelista, foi o projeto industrialista mais poderoso vivido pelo Brasil, retomando e superando  o empreendido pelo getulismo, de 1937 a 1945. [FONSECA, 1989.] A ordem militar impulsionou desenvolvimento capitalista nacional semi-autônomo, recuando o caráter semi-colonial do Brasil. Potenciando as forças produtivas materiais, desenvolvendo o frágil capital monopólico e bancário nacional; ampliando e criando empresas públicas; avançando a ciência e a tecnologia; propondo política externa segundo os interesses da burguesia nacionais. O regime militar preparava a introdução do Brasil no seleto grupo das nações que possuem a arma atômica. 

Durante os anos do “Milagre”, o Brasil conheceu acelerada expansão industrial burguesa nacional, apoiada certamente na radicalização da exploração  do mundo do trabalho, como faz parte de sua natureza. Seus apologistas tinham, ainda, o que celebrar. [MELO FILHO, 1974.] Desenvolvimento que comprovou, diga-se de passagem, a incorreção das propostas da Teoria da Dependência, na sua versão de esquerda. Esta última impugnava a possibilidade de desenvolvimento nacional capitalista burguês. [FRANK, 1967.]

Razão tinha Fernando Henrique Cardoso, a ala direita da Teoria da Dependência, injustamente tido como um homem e pensador de esquerda. Ele  defendia a possibilidade de crescimento do capitalismo industrial nacional, caso se integrasse e se submetesse à ordem capitalista mundial. Ao contrário de seus colegas de esquerda, ele já propunha, quando no exílio, que o país se jogasse de ponta cabeça na dependência. 

FHC jamais propôs “esqueçam o que escrevi”. Em 1972, já propunha a integração que implementou, catastroficamente, como presidente, a um capitalismo globalizado. “Eu não penso, entretanto, que a burguesia local, fruto de um capitalismo dependente, possa realizar uma revolução econômica no sentido forte do conceito. A sua ‘revolução’ consiste em integrar-se no capitalismo internacional como associada e dependente.” [CARDOSO, 1972, p. 31-49.] Foi isso que disse, foi isso que faz.

O Canto do Cisne

O fracasso do poderoso impulso desenvolvimentista dos anos ditatoriais deveu-se à reversão da conjuntura mundial, com a explosão da taxa de juro dos empréstimos internacional e a retração  do mercado externo. A rejeição da dívida externa e a reorientação da produção das exportações para o mercado interno eram soluções radicais contrárias à natureza profunda e aos interesses do bloco político-social no governo e no poder. Tais políticas teriam sido possíveis apenas sob a direção do mundo do trabalho. O fim do desenvolvimentismo de coturno foi o derradeiro canto de cisne do capital burguês nacional.

Se tivemos um PT, então tendencialmente anti-capitalista, uma CUT classista e um MST namorando a revolução, devemos ao fortalecimento da classe operária e assalariada, em geral, e metalúrgica, em especial, nos anos ditatoriais. Mundo do trabalho  fortalecido que poderia ter aproveitado a janela que se abriu quando da crise da ordem militar-burguesa e lançado e consolidado projeto de emancipação social e nacional. Se não o fez, deveu-se fortemente à miséria política, ideológica e organizacional da esquerda de então.

O golpe parlamentar de 2016 teve orientação e  essência diversa ao de 1964, sendo realizado por oficialidade usando a mesma farda, mas a serviço de senhores diversos. Em 1964, os militares apoiaram a expansão da industrialização nacional. Em 2016, em sentido contrário, sustaram, nem sempre nas sombras, salto de qualidade na desindustrialização, desnacionalização, internacionalização e primarização da economia nacional. Processo impulsionado, com ritmos diversos, por todos os governos, petistas inclusive, que se seguiram à  “redemocratização controlada”  em 1985.

Neo-colonial globalizado

O golpe parlamentar de 2016 acelerou as transformações de qualidade que o Brasil sofria desde 1985, completando sua transição, de nação semi-colonial em processo de expansão e qualificação industrial, durante a fase desenvolvimentista getulista, de JK, de Jango e militar, ao status atual de nação “neocolonial globalizada”. Realidade em que o que restava de capital monopólico do Brasil foi liquidado e a nação se transforma mais e mais em  plataforma de produção e de exportação de manufaturados de pouco ou médio valor agregado e, sobretudo, de energia,  de grãos,  de minerais,  de proteínas animais, etc. Tudo sob o controle dos capitais mundiais e dos imperialismos estadunidense e chinês,  hoje em uma dura e crescente disputa, o que introduz novas e importantes determinações à dominação que sofre o Brasil. [MAESTRI, 2022. I.]

Abordei a evolução do Brasil, e a metamorfose que conheceu nas últimas décadas, em Revolução e contra-revolução no Brasil: 1530-2019.  E apresentei a atualização daquela leitura, até hoje, em artigos e lives disponíveis na internet. Nelas, defendo que a eleição de Lula-Alckmin, apoiada pelo imperialismo estadunidense e o grande capital nacional, constituí a continuidade essencial dos projetos golpistas de Michel Temer e Jair Messias Bolsonaro.

Uma continuação na desigualdade, em um sentido mais soft e civilizado, exigido pela conjuntura internacional e nacional. Transição política viabilizada pelo compromisso, até hoje religiosamente cumprido, da gestão Lula-Alckmin manter e ampliar as transformações estruturais e o programa do golpe de 2016. O que tem feito apoiando-se na tradicional manipulação do que resta do movimento social pelo aparato lulo-petista e por seus puxadinhos tradicionais – PCdoB, PSOL, etc.  [MAESTRI, 2019; 13/06/2022.] A derrota recente da greve das universidades federais registra a ainda capacidade do petismo-lulismo de pôr nas ruas suas disciplinadas tropas de choque para abafar as reivindicações trabalhistas.

Em consequência, o grande inimigo atual das classes trabalhadoras, assalariadas e populares, assim como da nação,  não são Michel Temer e Jair Bolsonaro, nem o perigo do último de retornar ao poder. É, ao contrário, no aqui e no agora, o governo Lula-Alckmin, gerente do país em nome do grande capital. Ele não apenas mantém as privatizações, os ataques à legislação trabalhista, as reformas previdenciárias e tantos outros malefícios sociais dos dois primeiros governos golpistas, como avança na mesma estrada realizando a parte do programa que eles não conseguiram completar.  

III.  A Classe Operária Abandonada ao léu 

É questão descurada, na discussão sobre 1964, a responsabilidade naquela derrota das forças que se reivindicavam da esquerda marxista. E isso, apesar dela ter influenciado, em forma dramática e patológica, a situação do mundo do trabalho e do movimento social, quando e após o golpe militar. Derrota dos trabalhadores e absentismo da esquerda que contribui, ainda hoje, por múltiplas mediações e em cenário fortemente diverso, à depressão da  luta de classes e à desorganização dos trabalhadores. 

Em geral, neste 2024, as narrativas críticas ao golpe destacaram, digamos, as maldades dos golpistas contra a população e os militantes de esquerda. Procuraram, sobretudo, reavivar memória semi-esquecida e desvendar violências e crimes desconhecidos dos anos ditatoriais. O que é, certamente, positivo. Um movimento de ideias que tem sido sintetizado na palavra de ordem “Ditadura nunca mais”, em tudo positiva. [UCHÔA, 2023.] 

Não podemos, porém, nos restringir às denúncias das violências contra os direitos democrático e civis pelo golpe de 1964. Temos que avançar em uma compreensão da sua verdadeira natureza, da perpetuação de transformações que impôs às instituições nacionais, das razões que permitiram sua vitória e, posteriormente,  a redemocratização controlada e conservadora de 1985.  

Fica habitualmente no semi-esquecimento que o grande capital comporta-se, sempre, segundo sua natureza, evoluindo das práticas democráticas mais ou menos autoritárias às repressivas mais ou menos violentas. Evolui  como um camaleão muda de cor,  diante das exigências de seus interesses. É inevitável que o escorpião se sirva do ferrão venenoso, quando atacado ou cobiça uma presa. É de sua natureza. O criminoso é procurar acariciá-lo, domesticá-lo, defender sua bondade e esconjurar aqueles que propõem esmagá-lo. 

Abandonado ao Léu

Quando do golpe em 1964 e durante o vintênio ditatorial, as classes obreiras e oprimidas foram deixadas ao léu, sem orientação classista e revolucionária. Pior ainda. Em leituras direitistas ou esquerdistas da realidade, os partidos e grupos hegemônicos que se propunham marxistas negaram, em forma explícita e implícita, os trabalhadores como vanguarda da luta anti-ditatorial e protagonistas de emancipação histórica imprescindível.

Esse e outros comportamentos liquidacionistas e desorganizadores da ação dos oprimidos  têm sido apresentados, em um sentido escusatório, como insuficiências e erros políticos de  interpretação da realidade. Em situações de normalidade e de crise, são inevitáveis os tropeços de avaliação de lideranças e de organizações revolucionárias, por diversas razões.  

Para além de visões beatificantes dos principais dirigentes revolucionários,  como Rosa Luxemburgo, Vladimir Lenin, León Trotsky e tantos outros, eles erraram em propostas e avaliações, algumas de importância fulcral. A Insurreição Espartaquista, de janeiros de 1919, comandada por Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, é exemplo clássico de grave erro de avaliação. [BROUÉ, 1964.]

Entretanto, dirigentes e partidos revolucionários procuram corrigir e autocriticar-se dos enganos cometidos, ao terem a possibilidade para tal, o que não foi o caso dos dois principais  dirigentes da sublevação alemão apenas citada. Todavia, mesmo ao errarem,  jamais se afastaram do leito profundo da tradição do marxismo revolucionário, expressão das necessidades essenciais dos trabalhadores.

Desvios de Classe

Desvios de qualidade e consolidados dos pressupostos básicos da luta dos oprimidos contra o capital, sem correção e autocrítica real, não são produtos de limitações, como tropeços de avaliação, insuficiências de informação sobre a realidade, conhecimentos limitado do método marxista. Não são erros de interpretação involuntários.

Ao contrário, são infiltrações político-ideológicas de classes estranhas aos trabalhadores que se enunciam sob roupagem revolucionária, para aproveitar-se  do prestígio que eles e a  revolução ainda mantêm. Elas militam, em forma consciente, semi-consciente e inconsciente, em defesa da ordem burguesa, para desorganizar os trabalhadores e a revolução.

As desnaturalizações da teoria e da práxis revolucionárias apresentam-se, usualmente, defendendo práticas pacifistas e reformistas, negando a necessidade da destruição da ordem capitalista para a emancipação social. Tem sido fonte de confusão que, não raro, elas se manifestem  sob a forma de políticas radicais, vanguardistas e mesmo armadas. Podendo, no frigir dos ovos, significar um rompimento ainda mais radical com as tradições do trabalho que algumas propostas reformistas.

Com a Revolução no Coração

Revolucionários são aqueles que, se colocando no sentido do fluxo tendencial das contradições essenciais entre o trabalho e o capital, o facilitam e o impulsionam. Sem jamais abandonar, mesmo quando de luta por conquistas parciais, o objetivo estratégico da emancipação dos oprimidos. Não basta levar a revolução no coração, para ser revolucionário. É necessário por-se ao seu serviço.

Por melhores que sejam as intenções subjetivas de um militante, mesmo quando entrega a vida na luta política, caso sua prática ou proposta corram em leitos estranhos aos da revolução proletária, confundindo-a e desorganizando-a, ele impulsiona objetivamente a contra-revolução.  Ele pode ser admirado pela decisão, integridade, arrojo, coragem individual, mas será um escolho e um estranho à  luta dos oprimidos.  

O peso da responsabilidade de dirigentes políticos, que se reivindicam da esquerda, que perseveram nessas vias tortas é ainda maior, por arrastarem  militantes pouco formados e inexperientes, causando danos à luta que dizem defender. Em O capital, para além dos sentimentos piedosos de todo tipo, Karl Marx lembrava impiedoso que o “caminho do inferno -e da derrota dos trabalhadores- está pavimentado de boas intenções”.

VI. 1964: Onde andava a esquerda?

Após 1930, o impulso industrialista burguês fortaleceu as classes trabalhadoras brasileiras, criando as bases para a sua acumulação de forças, com destaque para os anos 1950, após a queda da ditadura getulista. De 25 de março a 23 de abril de 1953, durante o segundo governo de Vargas, os trabalhadores de São Paulo empreendera uma ampla e combativa paralisação inter-profissional, que resultou em uma indiscutível vitória, a chamada  “greve dos 300 mil”. [MOISÉS 1978; CARONE, 1982, 1994.]

Prosseguindo nos a seguintes, o fortalecimento das classes trabalhadoras, assalariadas e populares permitiu que o importante ensaio de golpismo militar de 1961 fosse derrotado. Leonel Brizola, então líder nacionalista e populista burguês emergente, liderou a resistência anti-golpista. A vitória não prosperou, impedida pela força da operação, encabeçada por João Goulart,  dirigente  máximo do populismo burguês, em defesa das instituições, entre elas as forças armadas. E sobretudo pela  fragilidade de um mundo do trabalho desprovido de direção classista.  [TAVARES, 2013; BANDEIRA, 1978.]

Nos anos seguintes, avançaram as lutas no campo, a agitação da sub-oficialidade das forças armadas, o apoio da população às reformas estruturais, a mobilização dos universitários e, sobretudo, a disposição de luta dos trabalhadores. Tudo sob conjuntura internacional extremamente positiva. As revoluções anti-colonial e socialistas  marchavam para o triunfo na Indochina e na África. Em 1945, vencera a revolução Iugoslava e, em 1949, a Revolução Chinesa. Nos anos 1950, o norte da Coreia e do Vietnã se libertaram e se propuseram socialista. [MAESTRI, 2/04/2023.]

Era Revolucionária

Sobretudo, em 1961, a Revolução Cubana declarara-se socialista, a três ou quatro braçadas das costas do gigante imperialista. Foi imenso o impacto da vitória caribenha, não apenas na América Latina. O mundo ingressava confiante em Era Revolucionária. O fortalecimento dos explorados tensionava o populismo burguês que, sob forma autoritária e a seguir, democrático burguesa, procurava manter os trabalhadores no cabresto. 

O populismo burguês impulsionava a conciliação de classe, através da imposição das políticas do capital, associadas a concessões pontuais aos trabalhadores e ao movimento social. Política que contava com a  adesão estratégica do Partido Comunista Brasileiro, então, principal direção do movimento operário,  comandado formalmente por Luís Calos Prestes. 

Desde a década de 1930, obedecendo religiosamente à orientação moscovita de colaboração de classe e da “revolução por etapas”, o PCB abraçara a política de radicalização da democracia e da ordem capitalista. Identificava a “revolução brasileira” com o avanço da burguesia e da industrialização. Colocava o movimento operário e popular sob a direção da burguesia dita democrática, progressista  e nacionalista. [PCB, 1980.]

Com a “Declaração Política de Março de 1958”, em forma já escancarada, o PCB reafirmou a tese da “revolução por etapas” e propôs em forma explícita a possibilidade de “via pacífica para o socialismo”. E declarou, em alto e bom som: “A revolução no Brasil […] não é ainda socialista, mas anti-imperialista e antifeudal, nacional e democrática.” [PRESTES, 2015, p. 317.] 

Colaboracionismo Estratégico

Portanto, segundo a orientação moscovita, nos países coloniais e semi-coloniais, apenas após a hegemonia do industrialismo burguês, superados os ditos resquícios feudais e derrotados o latifúndio e o imperialismo, os trabalhadores  poderiam avançar na luta pela autonomia de classe e pelo socialismo, agora, através da luta democrática e eleitoral, não se propondo mais a destruição do Estado burguês, mas sua modificação. [MAESTRI, 22/03/2024.]  

Imediatamente após o fim da II Guerra Mundial, obedecendo à orientação stalinista que sonhava seguir vivendo em paz com o imperialismo, Luis Carlos Prestes e a direção do PCB defenderam que os operários deviam “apertar o cinto”, já que não haveria nada mais revolucionário do que enriquecer a burguesia industrial. Em 26 de novembro de 1945, em Recife, Prestes propunha, em um grande comício: “É preferível […] apertar a barriga, passar fome, do que fazer greve e criar agitações – porque agitações e desordens na etapa histórica que estamos atravessando só interessam ao fascismo.” [PRESTES, 2015, p.  272.] 

O apoio do PCB ao governo JK transformou-se, a seguir, em colaboração quase visceral com o governo João Goulart [1961-64]. Em comício, em 1964, Prestes propusera  que já “estamos no poder” e, confiante, concluir afirmando, “se a reação levantar a cabeça será esmagada”. Transpirava, por todos os poros da pele, confiança irresponsável, que era incutida na população e no mundo do trabalho.  [GORENDER, 2014, p. 54 et seq.]

Raposas cuidando do galinheiro 

Na antecâmara do golpe, Prestes e o PCB negavam uma conspiração que já se tornara  um quase segredo de Polichinelo. Mais ainda, reconhecendo sua mais do que eventual probabilidade, orientavam os trabalhadores e o movimento social a confiarem totalmente no “dispositivo militar” de Jango, realizado através da nomeação de oficiais tidos como de confiança a importantes postos de comando.   Depositavam a sorte da população nas mãos do mesmo João Goulart que, em 1961, mostrara-se diante do golpismo militar mais firme do que pudim de claras de ovos. [BANDEIRA, 2001;  GORENDER, 2014; CHILCOTE, 1982.]

Os trabalhadores podiam sair em férias, ir cuidar da horta, deixar o barco correr, que eles, a  democracia burguesa e a revolução encontravam-se nas boas mãos de generais defensores das instituições. [GASPARI, I, 2002, p.45-226.] Política de desmobilização geral dos trabalhadores e da população   realizada enquanto milhares de sub-oficiais das forças armadas abraçavam as propostas progressistas, nacionalistas e mesmo revolucionárias, podendo constituir a base de poderosa resistência e ofensiva popular. [DUARTE, 2009.] Mesmo sabendo que os larápios já estavam dentro de casa, o PCB deixou a porta do cofre aberta e mandou os vigias irem dormir.

Em inícios dos anos 1960,  dirigentes pecebista à esquerda de Prestes e da maioria do Comitê Central, como Mario Alves, Carlos Marighella, Jacob Gorender e outros, criticavam os “desvios de direita” da direção do PCB e propunham a “substituição do […] governo por outro nacionalista e democrático, do qual estivessem excluídos os elementos conciliadores”. [DIAS, 1993, p. 221.]. Não tinham contradições com a estratégia de revolução por etapas e confiança na burguesia dita nacionalista, com algumas restrições. No geral, visão igualmente seguida pelo PC do B. 

Programa socialista

O seguidismo do nacionalismo burguês e pequeno-burguês era o programa que norteava a vanguarda dos trabalhadores e do movimento social, com quase irrelevantes exceções. A esquerda marxista revolucionária de programa socialista era representada basicamente pela pequena Organização Revolucionária Marxista – Política Operária e pela liliputiana e confucionista Internacional trotskista posadista. 

A ORM-PO, fundada em 1961, por vinte militantes, abraçava   orientação luxemburguista, em forma aberta, e trotskista, em forma envergonhada. Ela reuniu um escol de intelectuais de orientação marxista, com destaque para Ernesto Martins [Eric Sachs], austríaco de origem judia, seu principal dirigente, Moniz Bandeira, Éder Sader, Rui Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra. 

A ORM-PO editava o periódico Política Operária, nome pelo qual passou a ser conhecida. Ela realizou um sério esforço de combate às visões colaboracionistas pecebista e pela sua implantação na classe trabalhadora, compreendida como vanguarda da revolução socialista. Defendendo a ortodoxia marxista revolucionária, propunha-se como alternativa revolucionária ao PCB,  e alcançou pequena, mas real visibilidade. [LEAL, 2011.]

Na América Latina, o Partido Operário Revolucionário – Trotskista, sob a direção do argentino J. Posadas, rompera com o Secretariado Internacional da IV Internacional. Com programa socialista e militância dirigida à classe trabalhadora, a internacional posadista se constituiu como uma seita sectária, propondo a iminência da Terceira Guerra Mundial e a aproximação às direções nacionalistas não apenas no Brasil. Em 1964, a seção nacional do POR-T era organização sem visibilidade política.  Em 1968, dois rompimento com o posadismo formaram a Fração Bolchevique Trotskista, com alguma organicidade no Rio Grande do Sul, e o Movimento Estudantil 1º de Maio e, a seguir,  Organização Comunista 1º de Maio, em São Paulo. [LEAL, 2004, p. 218.]

Burguesia Nacional Golpista

O golpe militar de 1964, realizado com o apoio de praticamente a totalidade da burguesia nacional, sem enfrentar qualquer resistência, e a ofensiva repressiva conservadora que se seguiu, pegaram de surpresa e lançaram na confusão a população, os partidos de esquerda, os trabalhadores, o movimento social e suas vanguardas, educados pelo PCB na confiança da ordem democrática, da direção populista burguesa e da dita burguesia nacional progressista.

Confusão que se aprofundou quando não se escutou, em nível audível, qualquer explicação dos dramáticos sucessos e como enfrentá-los, sobretudo por parte do Partido Comunista Brasileiro, a organização praticamente hegemônica entre trabalhadores e assalariados.  Participaram desse silêncio o nacionalismo radical e seu principal dirigente, Leonel Brizola, organizador dos Grupos dos Onze, secundado em prestígio por Miguel Arraes e Francisco Julião, das Ligas Camponesas. [STEDILE, 2002; BALDISSERA, 2005; GORENDER, 2014.]

Leonel Brizola refugiou-se no Uruguai, onde possuía fazenda. Após apoiar a expedição militar do Coronel Jefferson Cardim Osório, no Sul, em 1965, com confrontos e mortes, e a guerrilha do Caparaó, também fracassada, retirou-se da política. Ao sentir-se em perigo, em 1977, pediu e recebeu refúgio ao governo ianque. Com a dita redemocratização, organizou o Partido Democrático Trabalhista, sem o viés nacionalista e anti-imperialista que defendera no passado. 

O golpe de 1964 pôs a nu o caráter colaboracionista e liquidatário da política geral do Partido Comunista Brasileiro, desnudando, diante da vanguarda política ampla, a incoerência da  chamada “revolução por etapas”, impulsionada por Moscou para o Brasil e os países semi-coloniais e coloniais. O desastre do seguidismo burguês pecebista desvelava o caráter não classista e colaboracionista de sua política e das direções de esquerda e de direita construídas à sua sombra. 

Luta apenas nas alturas

Não se tratava de um erro de política do PCB, mesmo grave. Seus dirigentes e militantes  haviam sido educados na confiança cega ao aparato partidário e na luta pelo desenvolvimento industrial capitalista, confundindo-o com a emancipação dos trabalhadores e da população do país. O PCB já representava e organizava importantes facções de classe intermediárias não revolucionárias. O longo colaboracionismo erradicara propostas basilares do marxismo revolucionário como o internacionalismo; a centralidade dos trabalhadores; a autonomia política em relação às classes proprietárias; a luta pelo socialismo.  

A maioria da direção do PCB, dirigido por Luís Carlos Prestes, com o apoio de Moscou, realizou balanço ainda mais derrotista e desmoralizante. O golpe fora devido aos excessos do movimento popular – Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, movimento dos sargentos, etc. Devia-se reassumir política ainda mais rebaixada, com uma frente anti-ditatorial mais ampla, logo estendidas a golpistas defraudados em suas ambições pelos militares,  quando da natimorta Frente Ampla, com Carlos Lacerda, Juscelino Kubistchek, João Goulart. Em 1967, o VI Congresso do PCB  determinava “levar adiante a grande tarefa de unir todas as forças democráticas para derrotar o regime ditatorial e abrir caminho a um desenvolvimento independente e progressiva da nação.” [MORAES & VIANA, 1982, p. 189.]

O PCB defendia contemporização estratégica, limitando a resistência ao espaço político democrático que se estreitava. As justificativas eram a correlação de forças vigente e a necessidade de não afugentar os conservadores democráticos e os golpistas arrependidos. Fechava-se o caminho à organização dos trabalhadores e do movimento social como ponta de lança contra a ordem ditatorial, na luta pelos direitos democráticos e ataques às suas condições de trabalho e de vida. O PCB reafirmava-se como organização colaboracionista e disciplinadora da ação dos oprimidos, militando contra a revolução e a emancipação do mundo do trabalho. 

Revisionismo Armado

Foi quase inevitável que, na luta interna no PCB, não surgisse sequer uma fração de orientação classista e marxista revolucionária. O debate se centrou no caráter pacifico ou violento da luta contra a ditadura militar e não nas alianças sociais e programas a serem impulsionados. A ALN, principal organização militarista do Brasil, seguia defendendo uma primeira revolução, de “libertação nacional”, em aliança com todos os setores dito progressistas da sociedade, para, apenas após o desenvolvimento pleno do capitalismo e o fim dos “resquícios feudais no campo”,  avançar o programa socialista. [SALES, 2007, 72.] Passava-se do pacifismo reformista ao colaboracionismo armado. Praticamente todos os desprendimentos do PCB deram as costas aos trabalhadores, apenas em forma mais ou menos radical.

As organizações originadas de dissidências pecebistas, sob o impacto da Revolução Cubana, abraçaram a proposta de confronto militar imediato e incondicional com a ordem ditatorial e burguesa. Isto é, não importando a realidade objetiva e subjetiva das classes trabalhadoras e populares. Perfilharam, com adaptações, o rústico receituário foquista proposto nas palavras por Fidel Castro e nas palavras-atos  por Ernesto Che Guevara. Guerra de guerrilhas rural celebrizada pelo  ensaio entre o patético e o hilário de Régis Debray, Revolução na revolução, nascido de demoradas entrevistas com Fidel Castro. [CASTRO, 1967; DEBRAY, 1967; CASTAÑEDA, 2006.]

O foquismo constituiu uma fantasiosa proposta de atalho revolucionário, em contradição essencial com os princípios da luta e da revolução proletária pelo socialismo. Ele negava  os trabalhadores como vanguarda e direção, substituindo-os  por  punhado de destemidos jovens que, com um fuzil ao ombro,  realizariam a revolução se encarapitando em alguma serrania, pouco importando a situação da coesão e da luta social no país. 

 Volveremos a la Montaña!

Apresentei no artigo “Volveremos a la montaña! Sobre o Foquismo e a Luta Revolucionária na América Latina”, de 2010, onde ensaio uma crítica sintética ao foquismo urbano e rural. Retomei e ampliei aquele artigo onde procuro apresentar algumas razões que teriam levado uma parcela significativa de jovens de minha geração, no RS, no Brasil e na América Latina, a aderirem ao foquismo urbano ou rural, com furor e romantismo, levando-o ou não à prática. Jovens que na maioria das vezes apenas despertavam para a política. [MAESTRI, 11/02/2024.] 

Naqueles anos, com alguns companheiros, criticávamos o aventureirismo e imediatismo foquista que não resistia a uma formação marxista minimamente  coerente ou mesmo ao sentido da realidade de então. Não era difícil compreender que o vanguardismo armado tinha “chances praticamente nulas de vitória”. [SALES, 8, 2007.] A resposta que recebíamos era quase sempre que:  – Se em Cuba funcionou, por que não funcionaria no Brasil! Pergunta à qual, na época, não era fácil de responder, em uma época e em uma situação em que as informações circulavam com enorme vagar.

Muito pouco se conhecia da Revolução Cubana, além da pouca literatura oficialista, que apresentava a vitória como produto quase exclusivo de grupo comandado por Fidel Castro. Coluna armada que, em dezembro de 1956, após desembarque desastrado e o fracasso das demais ações militares que se esperava levariam a um levante geral, refugiou-se na Sierra Maestra, onde o exército de Fulgencio Batista demorou-se em atacá-la. Essa leitura ignorava substancialmente tudo o que ocorrera através da ilha, à exceção dos sucessos da Sierra Maestra. [FURIATI, 2001.]

Segundo Fronte

Entretanto, foram as greves, os incêndios de canaviais, a luta de estudantes e populares, a ação do Directorio Revolucionario 13 de Marzo, do Segundo Frente guerrilheiro das montanhas de  Escambray [1958], a guerrilha da Sierra Maestra, a oposição à ditadura de Batista que se generalizava que abriram uma ampla dualidade de poderes favorável à população semi-sublevada. Tudo na esteira de eclosão e radicalização do período pré-revolucionário que abraçara a ilha.

Nesse contexto irruptivo, as escassas tropas da coluna guerrilheira fidelista, resistiram a um primeiro ataque geral tardio dos exércitos da ditadura e, a seguir, crescendo em forma exponencial, desceram em direção à capital, vergando um exército que se dissolvia. Assim, entraram, em 1º de janeiro de 1959, em Santiago de Cuba, logo após as tropas do Segundo Frente de Escambray, que jamais gozou do prestígio das tropas comandadas por Fidel.

O grupo fidel-guevarista realizou  leitura míope da destruição da ditadura de Batista e do Estado burguês cubano como um produto direto da ação corrosiva da guerrilha da sierra Maestra. Acreditando nessa super-valorização de sua ação, deduziu,  em forma arbitrária, estratégia foquista para o movimento revolucionário não apenas na América Latina. O exemplo de um pequeno grupo de jovens armados em um serro bastaria para que a revolução se espraiasse, conquistando camponeses, trabalhadores e a população. [BAMBIRRA, 1975; VALDÉS, 2000.] Tão arraigada estava essa compreensão que Ernesto Che Guevara partiu para implantá-la, na África, en 1965, e a seguir, na Bolívia, acompanhado de alguns cubanos. [GUEVARA, 2000; GUEVARA, SD.]

Monopólio Político da Serra

Em Cuba, essa leitura da revolução reforçou a hegemonia da direção política do Estado pelo Movimento 26 de Julho. Sobretudo na América Latina, ela levou ou contribuiu ao desastre político, à desorganização e à acefalia do movimento operário, à morte de talvez milhares de jovens militantes. O fidelismo-guevarismo rompia explicitamente, como proposto, com a visão marxista de luta anti-capitalista, dirigida necessariamente pelo proletariado, a quem cabe em forma necessária a tarefa de organizar e dirigir a revolução e da construção da  nova ordem. Visão marxista sobre a qual a direção fidelista tinha conhecimentos muito limitados, no melhor dos casos.

A vanguarda era agora formada por jovens de menos de trinta anos, proletarizados pela dura vida guerrilheira. Dissolvia-se o princípio básico marxista revolucionário da centralidade do mundo do trabalho e do proletariado industrial. Tornavam-se desnecessárias a sua educação e organização sobretudo através da luta contra o capital e a construção de seu partido. Impugnava-se a necessidade da discussão e da formação política dos quadros revolucionários saídos sobretudo das fileiras dos trabalhadores. Desconsiderava-se o caráter imprescindível da discussão política e da escolha democrática das direções pelas bases partidárias organizadas. 

Tudo isso era negado explicitamente pela literatura foquista, com destaque para a narrativa pernóstica e irresponsável do manual do guerrilheiro rural, de Debray, produzido a partir de  “longas discussões” com Fidel Castro, que corrigiu os originais e oficializou o livro determinando edição cubana de duzentos mil exemplares, em janeiro de 1967. O dirigente da guerrilha rural devia centralizar discricionariamente a direção do movimento revolucionário, no campo e na cidade, sem perder tempo com consultas,  discussões, deliberações. 

Jovens Prometeus

Hoje, é difícil compreender, fora da realidade daqueles anos, a aceitação das fantasias fidelistas, já claras em suas improcedências nos momentos em que foram propostas. No contexto do avanço geral da revolução no mundo, de crises econômicas e sociais das nações latino-americanas, com um acelerado empobrecimento da população, uma tal proposta se assentava como uma luva à rebeldia, impaciência, frustração e expectativas de protagonismo de jovens sobretudo de origem pequeno burguesa. [MAESTRI, 11/02/2024.]

Pouco importava que a proposta foquista fosse um refogado caribenho e rural do blanquismo europeu urbano do século 19, duramente criticado em suas incoerência  por Marx e Engels.   Ao sonharem em participar da vitória da revolução integrando um pequeno grupo armado, rural e a seguir urbano, jovens radicalizados e despolitizados sentiam-se como prometeus de uma revolução que desconheciam seus sentidos e objetivos profundos e, mais comumente, se despreocupavam com eles, mesmo comprometendo na luta a própria vida.

A proposta foquista espraiou-se pela vanguarda de esquerda latino-americana, com enorme destaque para a juventude universitária. As tentativas de implantação de focos, em montanhas e serros isolados e desabitados, para dificultar a chegada das forças repressoras, fracassaram pateticamente. Alguns dos  grupos guerrilheiros mais visíveis foram o Ejército de Libertación Nacional [ELN], da Colômbia; as Fuerzas Armadas de Libertación Nacional [FALN], da Venezuela; o Ejército Guerrillero del Pueblo, de Salta, Argentina; as Fuerzas Armadas Revolucionarias [FAR], da Argentina e da Guatemala; o Ejército de Libertación Nacional, da Bolívia [ELN], etc.

Movimento Nacionalista Revolucionário 

No Brasil, após a invasão do Rio Grande do Sul, comandada pelo coronel Cardim, em 1965, ligado a Brizola e ao Movimento Nacionalista Revolucionário, no ano seguinte, como vimos,  um grupo do MNR formado igualmente sobretudo por ex-sargentos lançou um foco, na serra do Caparaó, entre os estados de Espírito Santo e Minas Gerais. Serpenteando por essa região semi-desabitada, a coluna guerrilheira terminou em situação de pré-inanição, sendo denunciada pelos camponeses e reprimidos pelas forças militares, sem entrar em confronto armado com elas. [SALLES, 2007.] 

Em inícios de 1970, no vale do Ribeiro, no interior paulista, destacamento de dezessete guerrilheiro comandado pelo capitão Carlos Lamarca dissolveu-se após romper o cerco imposto pelas forças militares. Houve outros ensaios e planejamentos de focos guerrilheiros rurais que não foram levados à prática. Foram comprados sítios para treinamento ou início da implantação de focos, mesmo quando as propostas de guerrilha rural e urbana já estavam derrotadas. [JOSÉ & MIRANDA, 1989.]

Devido à avançada urbanização da Argentina, do Brasil, do Uruguai, adaptou-se à cidade a proposta do foco guerrilheiro rural,  igualmente com o apoio cubano. Em 1969, Carlos Marighella lançou Mini-manual do guerrilheiro urbano, de grande sucesso, publicado em diversas línguas, traduzindo a proposta do foco rural para as grandes aglomerações. A única concessão à redução extrema  da luta política ao confronto armado do foco rural era a proposta de alguma propaganda escrita:

No manual se propunha: “[…] a guerrilha urbana […] deve poder fazer cópias mimeografadas usando álcool ou pranchas elétricas ou outros aparelhos duplicadores, […] produzir um jornal pequeno, panfletos, volantes e estampas para a propaganda e agitação contra a ditadura.” Mesmo defendendo a importância da guerrilha rural, a ALN de Marighella manteve-se essencialmente como grupo guerrilheiro urbano.  [MARIGHELLA, 1969.]

A ALN, de Marighella e Toledo, a maior organização armada do Brasil, com talvez em torno de uns trezentos militantes,  iniciou atividades não assinadas de expropriação de fundos, em 1967,  tendo sido identificada pela repressão, como organização armada, apenas em fins de 1968. Noventa e dois militantes da ALN teriam recebido treinamento militar em Cuba. [SALES, 2007, p. 68.] 

Desde 1968, grupos sobretudo de universitários e ex-sub-oficiais das forças armadas lançaram ações urbanas de “propaganda armada”, através de expropriações de bancos, emboscadas às tropas policiais e militares, justiçamento de esbirros da ditadura e do imperialismo, sequestros de aviões e de diplomatas, etc. A guerrilha urbana e rural serviram de justificativa para uma repressão brutal pelas forças policiais e militares das organizações ditas armadas e daquelas que tentavam contribuir para a recomposição política e orgânica do mundo do trabalho, agindo à descoberta.

Destacaram-se entre as numerosas organizações que abraçaram a guerrilha urbana no Brasil a ALN, de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, Toledo, ex-dirigentes do PCB;  a Vanguarda Popular Revolucionária, na qual militou Carlos Lamarca e muitos ex-sub-oficiais das forças armadas; a VAR-Palmares; o Movimento 8 de Outubro (MR 8), formado sobretudo por universitários da Dissidência da Guanabara do PCB, entre eles, Fernando Gabeira, Franklin Martins, Cid Benjamin, César Benjamin, Stuart Angel Jones. [RIDENTI, 2010; KAREPOVS, 2019.] 

Tubarões e Peixes Pequenos

Sobretudo quando de forte crise social e política e radicalização da luta de classes mundial, é compreensível a adesão, de ex-oficiais e sub-oficiais expurgados pelo golpe de 1964, ao confronto militar incondicional com as forças ditatoriais. A educação recebida e a vida profissional nos quartéis apontavam em tal direção. Pelas razões apresentadas, compreende-se a mesma opção por jovens radicalizados, sobretudo das classes médias, sem formação e experiência política mais sólidas, embalados pelo destemor,  pelo aventureirismo e por sentimentos protagônicos. 

É mais complexa a explicação da opção pelo foquismo rural e urbano de dirigentes históricos do PCB, de vasta experiência, como Carlos Marighella, Joaquim da Câmara Toledo e Virgílio Gomes da Silva. Eles fundaram a ALN, organização formada por grupos armados descentralizados, semi-autônomos, lançando despreocupados pela janela os princípios do protagonismo necessário dos trabalhadores na revolução. 

No PCB, haviam recebido formação stalinista divorciada do marxismo revolucionário, tendo sido habituados ao  culto à personalidade de protagonistas messiânicos, no autoritarismo e dogmatismo. Foram disciplinados na colaboração de classes e na super-valorização do partido em detrimento da autonomia do mundo do trabalho,  uma referência já retórica do stalinismo. Ao abraçarem o foquismo, sob a influência cubana, em geral, e, em alguns casos, direta, de Fidel Castro, não rompiam com o marxismo revolucionários, que desconheciam.

Haviam acreditado estarem, no Brasil, às portas ou muito próximos da conquista do governo e do Estado, que o marxismo stalinista lhes apresentava como inevitável. O golpe de 1964 os lançava no semi-anonimato da clandestinidade e do trabalho de massas clandestino, com os quais romperam ao abraçarem uma orientação que se mostraria autocida, já que plenamente dissociada dos trabalhadores e do movimento social. Sonhariam em se tornarem dirigentes magnos de revolução nacional vencedora, ao igual que Fidel, Che, Ho Chi Mim.

No mesmo caso se encontram, em forma mais matizada, outros importantes dirigentes máximos do PCB, como Mário Alves, Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho, que fundaram o PCBR, em 1967, organização híbrida, que procurou manter um pé no movimento social e outro na guerrilha urbana e rural. Em Combate nas trevas, Jacob Gorender propôs com razão que o PCBR se destacou pelo “esforço de entrelaçar a tradição doutrinária marxista”, na versão stalinista, seria necessário agregar, “à pressão avassaladora pela luta armada imediata e incondicional”. [GORENDER, 2014, p.115; CARVALHO, 1997.]   

O destemor e entrega pessoal sem restrições desses militantes experientes, que não raro nos assombram pela derradeira altivez diante dos opressores, não abstrai a responsabilidade pelas sequelas políticas que causaram ao movimento operário e à revolução e aos militantes jovens arrastados nas aventuras por eles lideradas. [MIRANDA & TIBÚRCIO, 1999; REIS FILHO & SÁ, 2006, p. 205-230.]

Fragilidade da Esquerda Marxista

O foquismo exerceu também enorme pressão sobre a esquerda marxista revolucionária, desorganizando-a profundamente. No Brasil, o caso exemplar foi a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária. A POLOP, como era designada, a partir do nome de seu periódico, então a única organização marxista revolucionária com alguma visibilidade nacional e programa socialista, foi incapaz de manter seu objetivo inicial de lutar pela organização e autonomia do movimento operário. O que registrou a fragilidade político-ideológica de muitos dos quadros que a tinham fundado.

Já em 1964, militantes polopistas que discutiam a organização de resistência armada à ordem ditatorial foram presos pela repressão, passando a iniciativa desbaratada a ser conhecida, em forma jocosa e indevida, com o “Foco de Copacabana”. Em continuação, a organização foi tensionada por uma forte discussão sobre a proposta foquista, que a levaria à confusão e à ruptura. 

Em 1966, a POLOP definiu a guerrilha rural como um instrumento fundamental da luta política, propondo em documento da época que a “guerrilha”  tinha  uma  “função  eminentemente  política:  a  de  conquistar,  mediante  a  ação  revolucionária, a autoridade de liderança das massas exploradas do país”. Em consequência, seria importante o “planejamento de foco rural”. Ou seja, aderiam à visão da cooptação do movimento social a partir de ações militares de vanguarda.

Em 1967, o principal fundador e dirigente da organização,  Ernesto Martins, austríaco  de origem judaica radicado no Brasil, flexionou sua posição em favor do foquismo, deixando de lado passadas e corretas restrições. A convivência e fusão entre as duas almas incompatíveis, a organização dos trabalhadores e a luta armada incondicional, foram aprovadas no IV Congresso da POLOP, no mesmo ano, em tentativa de conciliar visões políticas contraditórias. 

No Congresso,  o Programa Socialista foi posto em votação e aprovado por pequena maioria, enquanto delegados defendiam, em sentido contrário,  programas de libertação nacional, de revolução democrático-burguesa e foquistas. Estas últimas acabavam de ser impulsionadas, em 31 de julho a 10 de agosto de 1967,  pela Organização Latino-Americana de Solidariedade, OLAS, reunião realizada em Cuba, proposta por Salvador Allende e utilizada pela direção fidelista-guevarista como plataforma de lançamento mundial do foquismo. [LEAL, 2011, p. 121 et sep.;  REIS FILHO & SÁ, 2006, p. 115-148; SALLES, 2007, P. 60-61.]

Por um Fio

A vitória do “Programa Socialista”, no Congresso, por apenas 16 a 14 votos,  sinalizava  o fracionamento da  ORM-Política Operária ocorrido nos meses seguintes, registrando a fortaleza da atração do militarismo vanguardista incondicional e a fragilidade do marxismo revolucionário no Brasil. A seguir, militantes da POLOP participaram da fundação e fortalecimento de grupos como o Comando de Libertação Nacional [Colina], a Vanguarda Popular Revolucionária [VPR], a Vanguarda Armada Revolucionária -Palmares [VAR-Palmares], estranhas ao marxismo revolucionário e à revolução proletária. O fato daquelas organizações adotar o Programa Socialista ou a “Revolução por Etapas” era indiferente para as  ações que levaram à prática. [SILVA, 2021; RIDENTI, 2010; GASPARI, II, 2002.].

Em abril de 1968, militantes polopistas opostos à guerrilha e da Dissidência Leninista do PCB do Rio Grande do Sul fundaram  o Partido Operário Comunista, que nasceu infectado do germe vanguardismo armado. No mesmo ano, iniciou-se  refluxo da  oposição estudantil e operária à ditadura, em parte nascida da ausência de uma direção nacional coerente para a luta de classes e, sobretudo, motivada pela  reversão da conjuntura econômica nacional, em tempos de bonança do capital internacional.  [REIS FILHO & SÁ, 2006, p. 232-237.]

Em 1969, o refluxo do movimento social e operário fortaleceu as posições no POC favoráveis à propaganda armada, levando a que os militantes acusados de massistas refundassem, em 1970, a  Organização de Combate Marxista-Leninista – Política Operária, que retomou a edição do periódico homônimo. O “combate”, político e de classe, na denominação da organização, tinha como função antepor-se à proposta de combate armado, então ainda prestigiado. O refluxo do movimento estudantil, onde a Dissidência da Guanabara do PCB (DI-GB) conhecia importante implantação, levou-a a lançar-se à luta armada, sob a sigla de Movimento Revolucionário 8 de Outubro [MR-8], data da morte de Che Guevara na Bolívia [REIS FILHO & SÁ, 2006, p. 363-370; SALES, 2007, p. 82-89.] 

O setor majoritário do POC, de viés militarista, perdeu militantes para organizações armadas já em atividade e, no segundo semestre de 1970, estabeleceu contatos com o secretariado Unificado da IV Internacional, sob a direção de Ernest Mandel, Livio Maitan, Pierre Frank e dirigentes da Ligue Comuniste Revolutionnaire francesa, como Alain Krivine e Daniel Bensaid.  No RS, o POC ensaiou algumas ações armadas desastradas e, em meados de 1971, foi desbaratado, quando da repressão de tentativa aventureira de núcleo da VPR sulino de sequestrar membro do consulado estadunidense em Porto Alegre. Boa parte de sua militância partiu para o exílio, sobretudo no Chile, onde se organizaram como POC-Combate. Em Santiago se encontrava igualmente núcleo de refugiados da POLOP, dirigido por Eder Sader. [PILLA & ALMEIDA, 2008.]

No Inverno e no Verão

A esquerda militarista, a partir do pressuposto que a revolução começava, não importando  a conjuntura nacional e a situação objetiva e subjetiva dos trabalhadores e da população, despreocupava-se olimpicamente com a influência social  dos ritmos da expansão-retração da economia. Estando a economia subindo em flecha ou em picada livre, bastava sair à rua com o 38 na mão ou manter-se na montanha atirando, para iniciar a revolução, como vimos. 

De 1961 a 1963, a expansão da economia nacional conhecera decrescimento absoluto, retomando fôlego a partir de  1966. Em 1967, quando iniciaram as ações dos grupos armados, o PIB do país beirava já os dez por cento e não cessaria de crescer até 1976. O que significava recuo do desemprego, aumentos sectoriais relativo dos salários, crescimento tendencial da renda das classes médias, etc., tudo, é claro, no contexto do arrocho salarial, ou seja, da super-exploração do mundo do trabalho. 

Apenas em 1981, as taxas de expansão da economia nacional conheceram grave crise e períodos de crescente irregularidade, já sob o endurecimento do “arrocho” e do “confisco salarial”.

A retomada da atividade econômica enfraquecia a oposição à ditadura, sobretudo das classes médias, base social do vanguardismo armado. Entretanto, ela propiciou um avanço significativa da massa dos trabalhadores empregados,  sob a pressão da arrocho salarial, o que criava condições propícias à reorganização sindical, mesmo sob a repressão. 

Contagem e Osasco

Durante esses anos, em dispersa, através de todo o Brasil, o operariado urbana ensaiava oposição aos ataques tradicionais e novos que sofria, assinalando sua vontade de resistência.  Os principais instrumentos de resistência, limitados pela falta de uma direção centralizada, foram as “oposições sindicais”, de vieses não raro sindicalistas, espontaneístas, esquerdistas, apolíticos, etc., contra os novos e velhos pelegos, aglutinando “os elementos, jovens, os mais combativos de suas categorias, para lutar dentro e fora dos sindicatos”. [REIS FILHO & SÁ, 2006. p. 394-5.]. 

Dois grandes movimentos grevistas registraram a disposição de luta e as possibilidades do movimento operário, assinalando a urgência então de uma direção e vanguarda nacional operária coerente, mesmo em forma embrionária. Em 16 de abril de 1968, a greve em Contagem, Minas Gerais, a primeira a enfrentar amplamente a ditadura militar, começou pela multinacional Belgo-Mineira e se estendeu a outras empresas, mantendo-se por dez dias, naquele importante pólo industrial. Os trabalhadores arrancaram da ditadura um abono de dez por cento sobre os salários, que teria sido estendido pelo governo ditatorial para todos os trabalhadores do país. 

De 16 a 21 de julho de 1968, a greve de Osasco, reivindicando  35% de aumento imediato, contrato coletivo de trabalho, reajuste trimestral de salários, abolição da Lei de Greve e do Fundo de Garantia, envolveu em torno de vinte mil trabalhadores, terminou sem conquistas salariais e com forte repressão, já que a ditadura temia que a vaga grevista se estendesse através do país, após a vitória de Contagem. Os trabalhadores exigiam recuperação salarial, contrato coletivo de dois anos e reajustes trimestrais. O principal dirigente e organizador da greve foi um jovem operário, José Ibrahim,  demitido, por ordens da ditadura, da empresa em que trabalhava e do sindicato que dirigia, ilegalizado.

Antes mesmo da eclosão do movimento, José Ibrahim estabelecera contato com a VPR e planejara seu abandono da luta sindical e operária pela militância armada, o que realizou, após a derrota do movimento grevista. Preso, em 1969, viajou para o exterior, em setembro do mesmo ano, libertado quando do sequestro de embaixador estadunidense no Brasil. O comportamento desse jovem operário, com condições de se transformar em liderança sindical referencial, ao dar objetivamente as costas à sua classe,  exemplifica a confusão que penetrara profundamente uma esquerda que perdera o norte.

Organização Comunista  1º de Maio

Não houve crítica marxista sistemática ao foquismo rural e urbano no Brasil, à exceção da avançando pelo reformismo e colaboracionismo pecebista. A principal organização mundial marxista-revolucionária da época,  o Secretariado Unificado da IV, sob a direção do belga Ernest Mandel e do italiano  Lívio Maitan e de dirigentes franceses da Ligue Communiste Revolucionnaire afundaram-se no apoio ao militarismo vanguardista na América Latina, cuidando-se para mantê-lo longe deles e da Europa. 

No Brasil, praticamente sem influência nessa época, o SU da IV Internacional, apoiou a metamorfose do POC em POC-Combate, como assinalado. A crítica marxista revolucionária ao foquismo foi extremamente limitada. As exceções, pouco audíveis, foram pequenos grupos, como os  trotskistas Movimento Estudantil/Organização Comunista 1º de Maio, em São Paulo, e a Fração Bolchevique Trotskista, no RS, a Fração Bolchevique e o MEP, ambos desprendidos da POLOP, que se opuseram àquela deriva, praticamente desde que fora proposta.

A Organização Comunista  1º de Maio publicou, em janeiro de 1971, o longo documento “Algumas considerações sobre a formação da direção revolucionária do proletariado”, realizando balanço das lutas operárias, com uma dura e sistemática  crítica aos grupos “pequeno-burgueses”, “militaristas” e “terroristas” que se propunham substituir aos trabalhadores. Ressaltava o “despreparo político” “dos componentes desses grupos” e as “teses mal formuladas e mal assimiladas sobre a Revolução Cubana” que fortaleceram o foquismo. 

No documento, lamentam-se as centenas de quadros perdidos para a revolução ao abraçarem o “terrorismo individualista”, prejudicando “violentamente o processo de formação e consolidação de uma direção revolucionária” e “criando um clima de intimidação, de terror pela repressão”.   A pequenez da Organização Comunista 1º de Maio, algumas poucas dezenas de militantes, limitava ao extremo o caráter performático de posições que expressavam as  necessidades objetivas e subjetivas do mundo do trabalho.   [REIS FILHO & SÁ, 2006, p. 387–428.]

Fim do Ciclo Militarista

A imensa maioria das organizações nascidas do fracionamento do PCB e da POLOP, certamente alguns milhares de militantes no total, mesmo quando mantinha ou propusera manter contatos e núcleos operários, abraçara e privilegiara na prática e na teoria as práticas militaristas urbanas e rurais. Em 1974, a chamada Guerrilha do Araguaia chegava ao fim, encerrando com ela o ciclo do militarismo vanguardista armado.

Desde 1967, o PCdoB iniciara implantação entre os camponeses no chamado “Bico do Papagaio”, na fronteira entre os estados do Pará, do Maranhão e do então Goiás, para lançar, desde ali, a “guerra popular prolongada” proposta pelo maoismo. Tratava-se de vanguardismo armado estranho ao foquismo, já que pressupunha implantação entre os camponeses. Com a repressão da guerrilha de inspiração chinesa, seguiram no país apenas alguns militantes da esquerda militaristas esparso ou em fuga.  

A derrota do vanguardismo militarista incondicional foi percebida, pela população em geral, e o é ainda hoje, por boa parte da militância e da população, como uma derrota da esquerda ou como a inviabilidade da luta armada pelo socialismo. Essa apreciação foi reforçada por ideólogos da classe dominante, pela esquerda reformista e por militantes que participaram daqueles sucessos, impulsionados por incompreensão sobre eles, por adesão à própria direita ou convertidos às benesses da administração do Estado burguês. [DIRCEU, 2019.]

Sem Herança Alguma

A habitual vacuidade político-ideológica dos militantes militaristas desdobrou-se na quase nula herança autocrítica, desde o ponto vista do mundo do trabalho, que  haviam rejeitado como vanguarda revolucionária e abandonado à sua sorte. A principal exceção foi Jacob Gorender, ex-dirigente do PCBR, que se dissociara da luta armada, antes mesmo da sua queda, ao realizar um valioso balanço daqueles anos e ensaiar crítica sistemática da sociedade brasileira. [GORENDER, 2014.]

Os contatos epidérmicos dos movimentos, grupos e partidos militaristas com a classe operária e populares, por um lado, e a miséria de suas propostas política-ideológicas, por outro, levaram a que nenhum deles tenha se mantido ou se metamorfoseado, em outros patamares políticos, quando da retomada do movimento social, em fins dos anos 1970. Ensaios como a refundação do PCBR se esgotaram sem deixar lastros. O mesmo ocorrendo com a tentativa de militantes da ALN refugiados no exterior, organizados na Tendência Leninista, em 1970-71, de orientação colaboracionista, de se transformarem em partido.

Algumas das lideranças dos grupos e partidos, total ou parcialmente foquistas urbanos e rurais, antigos quadros dirigentes do PCB ou militantes que se destacaram nos anos seguintes a 1964,  foram mortos pela repressão ou retornaram à vida política, quando da dita “Abertura, lenta, gradual e segura”, em geral sem protagonismo.  Houve aqueles que se reciclaram como quadros de partidos e sindicatos diretamente burgueses, no PSDB e PMDB, participando de ataques ao mundo do trabalho e à sociedade brasileira, sendo comumente premiados por seus serviços. [BONA GARCIA, 1989.]

Em maior número, foquistas que se mantiveram na política se aninharam na ala direitista e lulista do PT, contra os setores de esquerda, dedicando-se a gozar as delícias da vida parlamentar e da administração do Estado burguês.  Foi essa a orientação consciente do “Coletivo” de ex-militantes da ALN-MOLIPO, no qual se encontrava José Dirceu, que participou ativamente da luta para que  a direção do PT se autonomizasse das bases organizadas [núcleos]. Ou se dirigiram para o PCdoB, já em sua fase fisiológica, à sombra do lulismo e do petismo. [MAESTRI, 2019; DIRCEU, 2018.] 

A partir de 1978, quando o mundo do trabalho se pôs em marcha, a direção coube, pelos azares da sorte e devido à ausência de quadros operários classistas e à falta de uma organização marxista minimamente implantada, a um sindicalista despolitizado e totalmente estranho à luta pela emancipação do mundo do trabalho, com enorme responsabilidade nas derrotas sofridas pelos trabalhadores, pelos assalariados e pela sociedade brasileira nas últimas décadas.


Confira aqui o audiotexto completo do artigo.

 
Texto acima tem como base a conferência, em 6 de junho de 2024, sob o mesmo título, na TV Comuna.

BIBLIOGRAFIA CITADA

BALDISSERA, Marli de Almeida. Onde estão os Grupos de Onze? Os comandos nacionalistas na Região do Alto Uruguai – RS. Passo Fundo: UPF Editora, 2005.

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