Sobre a mais recente chacina no Rio de Janeiro e seu recorde de mortos (Por Cem Flores)

Dezenas de corpos encontrados e enfileirados pelos moradores do Complexo da Penha, vítimas da chacina policial de 28 de outubro de 2025. Segundo o próprio governo bolsonarista do Rio de Janeiro, 121 pessoas foram assassinadas, além de dezenas de feridos. Sob a alegação de guerra contra o crime organizado, que nasce das entranhas do estado capitalista e se mantém em meio a acordos com a burguesia, aprofunda-se a guerra contra as massas exploradas nas periferias do país.

Cem Flores

03.11.2025

No dia 28 de outubro, as favelas dos Complexos da Penha e do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, foram palcos de uma megaoperação policial. Comandada pelo governador fascista Cláudio Castro (PL), essa operação resultou na maior chacina policial da história do país. Naquele dia de terror, ambas as favelas, que somam mais de 100 mil habitantes, ficaram sob intenso fogo cruzado. Os serviços públicos da segunda maior cidade brasileira foram paralisados. Hora após hora, as cenas e os relatos da repressão sanguinária das ditas forças de “segurança pública” circularam nacionalmente na imprensa e nas redes sociais.


Recentes publicações do Cem Flores sobre a violência e a repressão no Brasil

– A violência contra as massas oprimidas avança também no campo, de 20/08/2024.

– Violência e repressão em 2023 no Brasil: os números de guerra prosseguem, de 04/08/2024.

– As chacinas policiais continuam no governo Lula-Alckmin, de 07/02/2024.

– Os militares, a política de segurança e o avanço da repressão no governo burguês de Lula-Alckmin, de 08/01/2024.

– Prossegue a violência brutal do capitalismo brasileiro, de 18/08/2023.


A chamada “Operação Contenção” envolveu 2.500 agentes do aparato repressivo do estado, blindados e helicópteros. De acordo com o discurso oficial do governo, sua missão era fazer apreensões e cumprir mandados de prisão contra o Comando Vermelho (CV), facção criminosa que vem ampliando seu poder político, militar, territorial e econômico no Rio de Janeiro e demais estados do país. Mas nenhum dos mortos na chacina estava na lista de alvos da operação e boa parte nem mesmo tinha passagens criminais. O que reforça o caráter escancaradamente terrorista da ação do estado contra aquelas favelas e suas populações.

No dia seguinte à chacina, a imagem de dezenas de corpos estendidos na rua, vários deles com sinais de tortura e execução sumária, e os protestos de vários moradores que perderam de forma perversa seus familiares e amigos, inclusive aqueles sem qualquer envolvimento com o crime organizado, demonstram que prossegue e se agrava a marcha fúnebre da burguesia brasileira contra a massa trabalhadora, pobre, negra e da periferia.

Enquanto os corpos jaziam no asfalto, o governador e o restante do bolsonarismo festejavam o feito histórico macabro, num verdadeiro palanque eleitoral banhado a sangue. Por detrás dos cínicos e demagógicos discursos dessa canalha, o fato é que a chacina policial não passou, fundamentalmente, de mais uma disputa entre criminosos “legais” e ilegais, envolvendo grandes negócios e interesses eleitorais; mais uma operação com fachada de combate decisivo ao crime organizado que em nada mudará a realidade concreta das favelas cariocas – fora o rastro de sangue e destruição deixado pelo estado.

Aliás, essa tem sido a realidade ao longo dos anos: operação após operação, ocupação após ocupação, massacre após massacre, promessa após promessa, governo após governo, as favelas seguem reféns do constante conflito entre políticos, empresários, policiais, milicianos e faccionados, que usam os territórios periféricos e o seu povo para lucrarem e ampliarem seus poderes.

Fotografias do governador do Rio de Janeiro com o ex-deputado estadual Thiego Raimundo de Oliveira Santos (MDB), o TH Joias, preso um mês antes da chacina da Penha-Alemão por intermediar a compra e venda de armas para o CV.

Como diz o pesquisador Bruno Paes Manso:

“O discurso de guerra e violência de políticos passa para as pessoas a impressão de que algo está sendo feito, que eles estão combatendo o crime. E, na verdade, é para que tudo continue como está. Em 2022, às vésperas da eleição de Cláudio Castro, foram feitas três operações letais no Rio de Janeiro, e ele acabou sendo eleito no primeiro turno, como se isso resolvesse a situação criminal, sendo que isso mantém a situação e a ligação da polícia com a criminalidade.”

Essa nova chacina da Penha-Alemão superou em letalidade policial o massacre do Carandiru de 1992, na antiga Casa de Detenção de São Paulo (111 assassinados), e se soma a outros recentes massacres perpetrados pelo mesmo governador Cláudio Castro, como o da favela do Jacarezinho (28 assassinados), em plena pandemia, e o da Vila Cruzeiro-Complexo da Penha (25 assassinados). Soma-se também à chacina realizada entre 2023 e 2024 na Baixada Santista (84 assassinados) pelo também bolsonarista Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo.

Nessa competição pelo sangue da periferia – pois nas raríssimas operações contra as lideranças criminosas nos bairros ricos, os ditos direitos são rigorosamente cumpridos! –, não podemos esquecer do rival político eleitoral do bolsonarismo, o petismo, que quis se fazer de bom moço frente à chacina de Castro. A polícia baiana, comandada por governos do PT desde 2007, segue ano após ano no ranking de polícias mais letais do país (e do mundo). Somente em janeiro deste ano, essa polícia matou 131 pessoas!

Também concorre nesse campeonato macabro a polícia do então governador do PSDB de São Paulo Geraldo Alckmin, cujos “Crimes de Maio de 2006”, as ações de morticínio da polícia e de grupos paramilitares, resultaram em mais de 500 assassinatos em dez dias. O fato de Alckmin ter se licenciado do governo no mês anterior para concorrer à presidência da república não o isenta de culpa nesses crimes, cometidos sob direção direta do seu vice-governador Cláudio Lembo e do seu secretário de segurança pública, Saulo Castro Filho.

O governador do Rio de Janeiro elogia o governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), por outra chacina policial, ocorrida em Canindé, três dias depois da chacina da Penha-Alemão.

Até quando as classes trabalhadoras nas periferias de norte a sul do país terão que sofrer esse cotidiano de guerra, esse estado de exceção permanente? Até quando terão que suportar a crescente violência e o crime organizado, que também está inserido nesse estado e nas grandes empresas e lucra com a nossa miséria, a morte de nossos jovens e a dor de suas mães? Quais as razões de tamanha barbárie no Brasil?

O caráter estrutural e histórico da alta violência do capitalismo brasileiro

Essa brutal violência do aparato repressivo de estado (polícias, forças armadas, poder judiciário, presídios etc.) e do crime organizado (que inclui grupos de extermínio, milícias, facções, que se relacionam umbilicalmente com o estado, apesar de recorrentes atritos) integram e cumprem, conjuntamente, funções fundamentais no sistema de exploração de classe ao qual os trabalhadores brasileiros estão submetidos. Além de serem negócios rentáveis para vários setores empresariais, legais ou ilegais, esses aparelhos de violência, oficiais e extraoficiais, exercem o papel de opressão sobre os trabalhadores, mantendo-os sob vigilância, medo e punição constantes; auxiliam na reprodução das classes e grupos dominantes, das desigualdades e da miséria das massas, inclusive com derramamento de sangue sempre que é preciso. Portanto, não são aberrações: são um de seus mecanismos centrais de manutenção da ordem burguesa e da reprodução do capitalismo em um país dominado e profundamente desigual e racista como o Brasil.

Essa gigantesca máquina de barbárie, que produz um cenário de guerra contínuo nas periferias do país, sobretudo contra a população trabalhadora, pobre e negra, se desenvolveu de forma específica no país, desde o violento e racista processo de colonização e escravidão. Carrega ainda hoje características e práticas desse processo: as próprias polícias estaduais se forjaram institucionalmente na luta contra povos indígenas, negros escravizados e revoltas populares; na violenta disciplinarização das massas para se sujeitarem às bárbaras condições de vida e exploração impostas pelas classes dominantes. A “segurança pública”, fundamentalmente, sempre foi segurança para os exploradores de cada tempo!

Sobretudo a partir da mais recente ditadura militar (1964-1985), com seus esquadrões da morte e grupos de extermínio contra a resistência à ditadura, a luta dos trabalhadores e as populações mais pobres e oprimidas, essa violência e repressão se consolidaram também em milícias e organizações criminosas cada vez mais profissionalizadas nas grandes cidades. Esses grupos evoluíram e se diversificaram, econômica, política e militarmente, disputando crescentemente mercados ilegais e territórios, assim como maior influência no estado, agindo ora como sua “força auxiliar”, ora como concorrente de seu aparelho oficial de repressão.

A cidade do Rio de Janeiro é um caso “exemplar” desse processo, com a crescente presença de mercados ilegais e poderosas organizações criminosas, que controlam regiões urbanas inteiras. Por lá, o poder e a máquina de estado, inclusive a repressiva, são abertamente atravessados tanto por intensas disputas de milícias e facções criminosas quanto por acordos mais ou menos estáveis entre tais forças.

Mapa do controle do crime organizado na região metropolitana do Rio de Janeiro, segundo o Instituto Fogo Cruzado. Desde a pandemia, levantamentos como esse destacam o crescimento do CV e um recuo do domínio miliciano na região. No meio dessa guerra por poder, dinheiro e território, estão os trabalhadores das favelas e periferias.

Mas tal realidade não está circunscrita ao Rio. Aliás, cada vez menos é uma singularidade carioca. Só observar a rápida expansão de facções criminosas, destacadamente o CV e o PCC (Primeiro Comando da Capital), para vários estados e regiões, no campo e na cidade. De acordo com especialistas e a própria experiência de trabalhadores de norte a sul do país, dezenas de milhões de brasileiros já vivem sob o domínio dessas formas de crime organizado, suas regras e interesses, sendo vigiados, ameaçados, cobrados e punidos por esses grupos.

Junto ao avanço do crime organizado, nos últimos anos, após fortes crises econômicas, houve também um crescimento da repressão e da violência estatal “oficial” no país. Trata-se de uma das faces mais importantes da atual ofensiva de classe burguesa, que busca conter pela violência qualquer revolta dos explorados e alcançar um novo patamar de exploração. Um indicador desse crescimento é o número de pessoas mortas por policiais. Na última década, esse número praticamente triplicou (de 2 mil para 6 mil assassinatos anuais), e desde o governo de Bolsonaro se manteve relativamente estável. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, apenas em 2024, ocorreram 6.243 mortes decorrentes de intervenções policiais. Mais de 17 mortes provocadas pelas “forças de segurança” (sic!) por dia no país!

O mais recente massacre no Rio de Janeiro entre fascistas, oportunistas e a resistência independente das massas

Essa chacina policial cotidiana é explicitamente defendida e estimulada pelo bolsonarismo, como uma suposta solução para o avanço do crime organizado. No mais recente caso da chacina da Penha-Alemão, essa força política fascista apoiou explicitamente, a nível nacional, o governo do Rio de Janeiro e segue disputando a opinião pública para que a chacina seja um ponto de inflexão para ainda mais repressão, ainda mais chacinas. Além disso, e mais uma vez demonstrando seu servilismo com os EUA, estão reforçando o artifício e o linguajar de Trump para as recentes ameaças e ataques militares à Venezuela (combate ao chamado “narcoterrorismo”). Tratam-se de abjetos inimigos das classes trabalhadoras, que merecem todo o nosso ódio!

No entanto, como visto, essa ofensiva repressiva e sua consolidação também possui digitais dos governos burgueses petistas. O governo federal de Lula, inclusive, já se uniu a Castro para ambos construírem os próximos passos da política de repressão do estado. Em reunião logo após a chacina, o ministro da justiça de Lula declarou ter o “mesmo objetivo” do governo bolsonarista do Rio de janeiro. Em parceria, os dois governos criaram o Escritório Emergencial de Enfrentamento ao Crime, com atuação conjunta de polícias federais e estaduais, disponibilização de presídios federais, ampliação de ações de inteligência, entre outras medidas. Essa articulação é defendida pelo governo burguês de Lula como um embrião a ser referendado por meio de uma proposta de emenda à constituição, a chamada PEC da segurança, e replicado em toda a federação.

Postagem nas redes sociais de Cláudio Castro, com o ministro da justiça, Lewandowski.

Esse avanço repressivo, pelas mãos dos bolsonaristas e petistas, está longe de ser uma verdadeira solução para os problemas de violência enfrentados pelas massas exploradas – seja porque o reforço do aparato oficial não antagoniza com a expansão das facções e milícias, como se vê há vários anos no Rio; seja porque todo o aperfeiçoamento repressivo contra os criminosos ilegais se volta contra os movimentos, organizações e luta dos trabalhadores. Na realidade, é mais um passo na ofensiva de classe que aprofunda a exploração e a opressão das classes trabalhadoras.

A causa central da expansão do crime organizado está no podre sistema capitalista, que cada dia concentra mais riqueza na mão de poucos, enquanto a miséria se espalha por toda a parte. É a ausência de possibilidades de uma vida digna, de emprego, salário, moradia, educação, saúde, atenção às crianças e idosos, cultura para milhões e milhões de brasileiros que serve de combustível ao crescimento do crime organizado. Sem alternativa de sobrevivência, a “opção” de filiar-se ao crime muitas vezes é a única que sobra à nossa juventude (quando não é forçada pelos criminosos que dominam as comunidades). Isso tudo sem falar nas prisões, depósitos desumanos de “excluídos” desse sistema e verdadeiras escolas de formação e recrutamento para o crime. Ao mesmo tempo, esses milhões de trabalhadores explorados e submetidos a essa vida de miséria precisam estar política e ideologicamente controlados e reprimidos. São um enorme perigo às classes dominantes e eles sabem disso. A violência policial (as chacinas, o medo) e o discurso da “segurança” (“combate ao narcoterrorismo”, “guerra às drogas”) serve a esses interesses.

As soluções concretas para os problemas de segurança que nos afetam dependem da mobilização e da organização coletiva dos próprios trabalhadores, resistindo a essa guerra em curso, contra múltiplos inimigos e táticas de opressão, e apontando a superação desse sistema de exploração. Essa resistência se faz presente hoje de forma pouco organizada e em meio a diversas forças políticas oportunistas que iludem as massas com promessas eleitoreiras e institucionais. Mas, mesmo fragilizada, ela demonstra potência e possibilidade de crescimento.

No caso da chacina da Penha-Alemão, os moradores agiram de forma independente para recolher os corpos e defende-los de tentativas de ocultamento ou alteração. De forma corajosa, expuseram-se publicamente em denúncia ao estado. Organizaram atos não apenas nas proximidades das favelas como foram aos portões do palácio do governo assassinoE ainda seguem na luta e na solidariedade. No dia 31 de outubro, também ocorreram vários atos de solidariedade às favelas e seus moradores, como foi o caso de São Paulo.

Nessa luta por melhores condições de vida nas periferias, contra a constante guerra executada pelo estado e seus rebentos do crime, é preciso não ter ilusões: só a organização e a força dos trabalhadores poderão trazer melhorias para nós; e só um dia derrubando esse regime de exploração e seus chefes legais e ilegais que alcançaremos segurança plena e vida digna para nossa classe!

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