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O general aposentado Eduardo Villas Bôas gosta de intervir na vida nacional.
Lembremos as ameaças veladas ao Supremo Tribunal Federal, no julgamento do habeas corpus que daria a Lula a oportunidade de concorrer à eleição presidencial de 2018, com probabilidade de vitória; esse impedimento de Lula abriu o flanco para que Bolsonaro pudesse ser eleito. “General Villas Bôas diz que calculou ‘intervir’ caso STF desse HC a Lula” (ConJur 11/11/2018). Em sua posse, Bolsonaro agradeceu em discurso e reputou a Villas Bôas a sua chegada à presidência da República: “O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui” (O Globo 02/01/2019).
Lembremos ainda a defesa apaixonada dada a Bolsonaro em sua obtusa e terrível postura de desmontar as medidas de prevenção e combate à disseminação da covid 19, quando disse: “pode-se discordar do presidente, mas sua postura revela coragem e perseverança nas próprias convicções”; além de condenar os seus críticos que, com “ações extremadas […], podem acarretar consequências imprevisíveis” (UOL Economia 31/03/2020). As velhas ameaças!
Eis que no dia 10 de julho de 2020 Villas Bôas volta a atacar, dessa vez com reflexões sobre a ausência de um projeto nacional no e para o Brasil e sobre a necessidade de “arregaçar as mangas” para construí-lo (“Carecemos de um projeto nacional”). Sua argumentação é baseada em um antropologismo arcaico e derivado das concepções colonialistas. No centro de sua argumentação está a ideia racial sobre o país, “cuja população contém em si própria riquezas geradas desde 1500, decorrentes da miscigenação…”. O referido general tenta dar coloração mais leve à sua ideologia racial ao atribuir qualidades positivas à miscigenação. Ele sai da conclusão racista de que brancos ibéricos, negros e índios são inferiores, pensamento comum à sociedade brasileira até boa parte do século XX e manifesto também em pleno século XXI pelo general aposentado e hoje vice-presidente Hamilton Mourão, segundo o qual o Brasil “herdou a cultura de privilégios dos ibéricos, a indolência dos indígenas e a malandragem dos africanos” (Estadão 06/08/2018). Villas Bôas, no entanto, mantém as raças como as referências teóricas de seu raciocínio. Sua análise histórica se baseia em saudades de cinquenta anos atrás, quando teríamos “…um senso de grandeza aliado a uma ideologia de desenvolvimento e a um sentido de progresso”.
O general Villas Boas agora pretende ressuscitar o “Brasil, ame-o ou deixe-o”! Argumenta que a partir dos anos 80 nos deixamos “fracionar, inicialmente por interesses alheios travestidos de ideologias e, quando elas fracassaram, permitimos que esquemas mentais alheios a nossa natureza (sic) viessem nos dividir ainda mais…”.
Lembremos que 50 anos atrás é o ano de 1970, tempo do governo assassino de Médici. Momento de um grande desenvolvimento econômico à base do endividamento externo, do arrocho salarial extremo, da expulsão pela fome e pela expropriação de populações camponesas às grandes cidades, onde se viam forçadas a submeter-se a baixíssimos salários, da destruição ambiental e do genocídio indígena. Momento também de estupros, roubos, corrupção, sequestros, prisões, torturas e assassinatos dirigidos pela estrutura e máquina de Estado contra os que ousavam discordar ou não fossem amigos do regime.
Lembremos que amizades nas ditaduras estão acima da lei. Muitas milícias e estruturas criminosas que se organizam nas frestas do Estado sentem ainda hoje imensa saudade desse critério: a amizade como proteção aos seus crimes. Talvez o general aposentado ainda cante em sua cabeça as músicas da Copa de 1970, onde se dizia “todos juntos, pra frente Brasil”, ou da propaganda da Ditadura, na qual se clamava que “esse é um país que vai pra frente”. Parece crer que o Brasil ia para a frente e que estávamos todos unidos. E os que não estivessem nessa “comunidade brasileira” deveriam seguir o lema: “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
Transparecia a ideia de que todos ganhavam com aquele “projeto”. Todos se beneficiavam ou se ainda não viam os frutos era porque seria “preciso deixar o bolo crescer para depois distribuí-lo”. Essa, como sabemos, é a histórica frase de Delfim Netto, ministro à época, uma cópia fajuta da ideia de Simon Kuznets de que, após um período de grande injustiça social, o capitalismo inexoravelmente conduziria à distribuição de renda. Tolice desmascarada com os dados da obra O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty.
Capitalismo não distribui renda. Capitalismo concentra renda, porque concentra capital! E eis que o general Villas Boas agora pretende ressuscitar o “Brasil, ame-o ou deixe-o”! Argumenta que a partir dos anos 80 nos deixamos “fracionar, inicialmente por interesses alheios travestidos de ideologias e, quando elas fracassaram, permitimos que esquemas mentais alheios a nossa natureza (sic) viessem nos dividir ainda mais…”. Um nítido saudosismo do “todos juntos, pra frente Brasil, Brasil!…”, além de expressar uma concepção essencialista da nacionalidade, própria à sua ideia racial de país.
O que houve nos anos 80 que nos teria separado desse mítico Jardim do Éden com que sonha o general à noite? Resposta: as greves operárias, a “luta contra a carestia”, a campanha das “Diretas Já”, a conquista de direitos, enfim, a quebra da mentira de que “estamos todos juntos”. Em outras palavras, houve luta de classes: a luta por melhores salários e contra a trágica distribuição de renda, logo após um longo período em que o grande capital encontrara um terreno extraordinário para a acumulação, facilitada pela matança, pelo Estado, das lideranças sindicais, rurais, de moradores e políticas, além da imposição cotidiana, desde dentro das fábricas, de um rigoroso sistema de controle, vigilância e repressão. Era de fato um Éden capitalista de ausência de direitos e de amordaçamento e eliminação dos que exigiam um pedaço da riqueza, na forma de melhores salários, para as camadas trabalhadoras.
A correção nominal dos salários diminuiriam o sofrimento popular diante de imensa inflação que destruía o poder de compra dessas camadas trabalhadoras, e isso fez surgir, já nos anos finais da ditadura, o Movimento Contra a Carestia. A inflação era provocada pela imensa concentração dos meios de produção e, consequentemente, do mercado em mãos de grandes corporações que, exatamente por isso, podiam manipular os preços conforme seus desejos, elevando seus lucros em uma segunda rodada de exploração, saqueando os salários não mais somente na produção, mas também no consumo. Além disso, havia instrumentos financeiros de proteção aos setores de renda alta. Estes ainda eram financiados pelos mecanismos de correção monetária que os faziam ganhar acima da inflação.
E, por fim, o movimento “Diretas Já”, que trouxe à tona, enchendo as ruas de entusiasmo e vigor, o cansaço doloroso de diversas camadas sociais com a brutalidade, o assassinato, o roubo, o saque de riquezas naturais, a proteção aos capitalistas, a subserviência às corporações e aos desígnios para o nosso comportamento seguir determinados por países dominantes.
Eis os interesses que implicitamente combate o general!
Ele sente saudade da possibilidade de eliminar a discordância pela tortura e morte? Sente saudade dos salários esmagados sem defesa por violência, espionagem e sindicatos fantoches? É esse o especificamente nacional, ó general? A ignorância pode ser de duas naturezas: proposital ou acidental. A proposital é a mais perigosa, pois busca iludir e traz um motivo torpe: o de beneficiar-se com uma situação confusa e perniciosa para manter a dominação perenemente. A acidental é, parafraseando Spinoza, uma ignorância ignorante. As duas acabam produzindo resultados semelhantes: a manutenção da exploração das camadas trabalhadoras em níveis trágicos. Talvez a culpa do ignorante seja distinta, mas ainda assim ele é culpado.
Cremos que o general Eduardo Villas Boas traga as duas. Ele utiliza esquemas mentais do século XIX e início do XX que se fundamentam em raças. Um construto teórico do poder colonial e imperial para dominar mais facilmente as regiões subjugadas. Acha o general que essa “cordialidade do brasileiro” em ser explorado seria uma concepção autóctone? Seríamos imunes a esquemas mentais externos? Não seria a economia brasileira uma parte do capitalismo mundial? O generalato brasileiro, ao golpear o Governo João Goulart, não obedeceu às concepções geopolíticas do Pentágono, o poder bélico americano?
Somos parte do pensamento mundial. As ideias não são boas ou más por sua origem, por sua procedência por países. As ideias são capazes ou não de avaliar a realidade; de transformar ou não a realidade para manter a exploração de classes sobre outras. Mas atribuir certas ideias a “interesses alheios” e, assim, condená-las, erigir o preconceito sobre elas como método de pensamento, tudo isso é primário e manipulatório. Isso confirma a matriz teórica do general. O preconceito não está solto no ar, não é uma estrutura mental autônoma! O preconceito é uma produção de sociedades de exploração. Ergue-se nas sociedades de violência e dominação para manter os poderes dominantes e os ganhos dos que se apropriam do excedente. O general é um defensor da Ditadura! É contra a melhoria dos salários e é um defensor saudoso da extração de mais-valia assegurada pelo porrete e pelo fuzil. Um defensor incondicional do capitalismo! Ainda mais do capitalismo periférico com características ditatoriais.
Ao longo de toda a história brasileira, as Forças Armadas e Policiais estiveram ao lado do poder de classe, seja escravocrata ou posterior, para proteger e assegurar a exploração das camadas trabalhadoras. São garantidores da escravidão, antes gratuita, hoje assalariada.
Eis as características do “projeto nacional brasileiro”! É esse o resgate que o general quer! Quer o retorno do tempo “paradisíaco” da Ditadura sem culpa. Deseja a exploração extrema e violenta das camadas trabalhadoras. Deseja o “projeto nacional” do general ditador Médici e do general frustrado por não ter continuado a Ditadura promovendo novos banhos de sangue, Sylvio Frota, do qual o general Heleno foi assessor. E do qual Bolsonaro foi seguidor.
Talvez o Gal. Villas Boas não saiba, mas seus esquemas mentais bolorentos, apodrecidos, também são externos. Nasceram nas sedes dos impérios capitalistas e conquistaram seguidores fieis que servem de feitores dos poderes imperiais. A escravidão foi mantida com crueldade extraordinária. Os senhores de engenho e de minas usufruíram da dominação. Os proprietários de latifúndio são seus legítimos herdeiros da propriedade da terra. É verdade que estão substituindo o trabalho escravo e de baixos salários por máquinas automatizadas, biotecnologia avançada e química sofisticada, dando a impressão de modernidade. Porém, continuam a ser plantations, estruturas destrutivas do povo brasileiro e da natureza. Um secular poder latifundiário, um sócio-controlador do poder político, judicial e militar. Aliás, toda a crítica do General ao “politicamente correto” é também importada, uma criação da ralé do jornalismo extremo-direitista norte-americano, que inventou até mesmo essa expressão idiota!
Ao longo de toda a história brasileira, as Forças Armadas e Policiais estiveram ao lado do poder de classe, seja escravocrata ou posterior, para proteger e assegurar a exploração das camadas trabalhadoras. São garantidores da escravidão, antes gratuita, hoje assalariada. Exterminadores dos que se revoltaram contra as violências comuns do Império português, do Império brasileiro e da República. A história das tropas são um longo catálogo de massacres, um desfiar de controle cruel das classes dominadas. Sempre estiveram ao lado da injustiça e da dominação, com raríssimas exceções. Mantiveram uma sociedade injusta, cruel, sanguinária. É este o idílico paraíso dos que sonham com sociedades ditatoriais.
Eis, portanto, o verdadeiro projeto a que aspira o general-líder e seus asseclas: exploração incontrolável, violência sem limites, capital divinizado.