Francisco Teixeira
Há pouco mais de um ano, falecia Francisco de Oliveira, a 9 de julho de 2019. Neste artigo, o camarada Francisco Teixeira fala sobre sua interlocução teórica com o autor de Os direitos do antivalor, sobre o perfil intelectual, o “marxismo sem cartilha” do sociólogo recifense, enfim, sobre as duas obras que considera centrais ao seu pensamento: Crítica à razão dualista e Elegia de uma re(li)gião. Com esta publicação, todos nós de A Comuna fazemos nossas homenagens ao “mestre da dialética”, como o nomeou outro mestre da mesma ‘ciência’, Roberto Schwarz (Oliveira, 2003); e buscamos mostrar como Chico se inscreve entre os grandes intérpretes do Brasil, como uma vez teve que lembrar Paulo Arantes a um círculo de jornalistas (entrevista ao Roda Viva que recomendamos enfaticamente).

Um marxista sem cartilha
Vi o Chico umas duas ou três vezes. Nunca chegamos a nos falar pessoalmente. Nosso relacionamento foi sempre impessoal; comunicávamo-nos virtualmente, isto é, via internet. Numa comunicação à distância, a lonjura nos deixa mais afoitos. É verdade. Mesmo assim nunca ousei perguntar-lhe se ele era ou não marxista. Se eu o tivesse feito, posso imaginar que sua resposta seria categoricamente negativa: “não, não sou marxista”; tal rotulagem foi recusada pelo próprio Marx, que se dizia não marxista. “Por razões outras, que não as do autor de O Capital, não sou marxista, se isso me impede de pensar por conta própria”, diria ele, com certeza.
A convicção sobre a qual está ancorada essa assertiva não é um ato de adivinhação. Prova de que ele responderia como assim adianto, encontra-se na crítica que dirigi ao seu livro Os Direitos do Antivalor (Vozes, 1998). Referindo-se a três críticas endereçadas ao seu texto, responde, ainda que de forma breve, a cada uma delas na introdução do livro. Quanto à minha crítica, primeiramente, ele lastima que, ao seu modo de ver, “Teixeira critica o uso abusivo e incoerente das categorias e conceitos de Marx em o Antivalor e em A economia política da social-democracia”. Esse tipo de crítica, disse ele, em seguida, “me parece mais exegética, do tipo ‘não foi assim que Marx escreveu e pensou’; decididamente, não sou marxista para manter-me no limites estreitos, ainda que formidavelmente amplos, do que Marx pensou”. Nesses termos, assevera: “Não sou marxista”. Mas, acrescenta que “na melhor tradição do próprio Marx, ele próprio discípulo de algumas das mais importantes vertentes do pensamento ocidental, e nas pistas de Antonio Negri, num de seus mais importantes livros, sou marxista – eis o jurássico – para ir ‘au-delà de Marx’”.
Se, inicialmente, Chico afirma que não é marxista, agora, desdiz o que antes dissera, para então proclamar-se como um pensador marxista. Estaria ele a zombar da crítica que dirigi ao seu trabalho? Chico, “meu Xará”, como gostava de assim se dirigir a minha pessoa, foi um dos intelectuais mais sérios e honestos com que tive o prazer de dialogar. Porque considerou minha crítica meritória, respondeu-me nos termos acima expostos. Com efeito, quando ele diz que não é marxista, na verdade, está criticando um tipo de marxismo de cartilha, onde todos os pergaminhos da história, passada e futura, já estariam decifrados, porque os que assim pensam acreditam que o capitalismo é apenas um capítulo efêmero na evolução geral dos povos.
Eis aí a razão por que Chico de Oliveira se diz não marxista, se por isso se deve entender que a teoria de Marx é um modelo do qual se pode lançar mão para aplicá-lo à investigação de qualquer realidade. Mas, se por um lado o autor de Elegia para uma Re(li)gião se recusa seguir Marx ao pé da letra, por outro, como já foi aqui adiantado, confessa que é marxista, se se entender que o uso que ele faz de O Capital, em particular, não o impede de pensar por conta própria.
Ora, mas é justamente essa exigência que Marx faz a seus leitores. No prefácio da primeira edição de O Capital, depois de se referir à forma valor como a mais difícil de compreensão, afirma que, com exceção dessa parte, primeiro capítulo, “não se poderá acusar este livro de ser de difícil compreensão. Pressuponho, naturalmente, leitores que queiram aprender algo de novo e queiram, portanto, também pensar por conta própria”.
Mas não é nada fácil fazer uso da teoria marxiana, quando se fala de dentro de uma região na qual a obra de Marx não só chegou muito tardiamente, como também suas particularidades históricas exigem que se repense a obra de Marx, a exemplo do que fizera Lênin, a quem se deve, segundo assim entende Richard Morse (1988), a russificação do marxismo, isto é, a nacionalização da teoria de Marx à luz das exigências históricas postas pela Revolução.
Não somente Lênin, pois outros pensadores, tais como Mariátegui, Caio Prado Júnior, Gramsci, também se viram obrigados a nacionalizar a teoria de Marx, a fim de analisar a realidade de seus respectivos países. Daí a razão por que Ricúpero (2000, p. 63) se pergunta
se o marxismo deve ser analisado a partir de certas fórmulas que possuiriam uma validade universal, o que o tornaria uma espécie de modelo aplicável às condições as mais diversas, ou se, ao contrário, só pode ser entendido como resultado da adaptação de uma teoria a realidades particulares.
A primeira alternativa, que considera o marxismo como uma teoria de validade universal, diz Ricúpero, sugere que “ser marxista no Brasil ou no México não passaria, assim, de acaso, significando basicamente o mesmo que ser marxista na Alemanha ou na França”. A teoria se transforma, assim, em “algo exterior a realidade”.
A segunda alternativa parece a mais acertada. A questão não seria mais a de aplicar a teoria à realidade latino-americana, mas, sim, de adaptá-la às exigências histórico-particulares dessa região. Mas isso não resolve de todo a questão. E Ricúpero (idem, p. 64) sabe disso:
Essa maneira oposta de considerar o problema traz consigo, contudo, o risco de desqualificar a teoria a tal ponto que ela se torna irreconhecível e desnecessária. Isto é, se o marxismo fosse capaz de absorver qualquer forma referente às mais variadas sociedades, não mais seria marxismo, nem mesmo teoria, mas apenas a expressão da realidade quase não-mediatizada. Assim, sua maneira de abordagem particular, o que a torna marxista, se diluiria no seu objeto.
Eis aí a razão por que não é nada fácil pensar Marx por conta própria no contexto de uma realidade que não seguiu o mesmo percurso histórico por que passou a evolução do capitalismo na Europa Ocidental. Mariátegui e Caio Prado Junior sabiam disso muito bem.
Se, para Caio Prado Jr., a questão central que se oferece a quem se aventura a pensar a realidade brasileira é o problema dos trabalhadores rurais, então o ponto de partida da análise deve ser buscado na forma assumida pelo projeto de colonização do Brasil. Noutras palavras, o pesquisador deve buscar o sentido desse projeto. Em Formação do Brasil Contemporâneo: colônia (1942), a preocupação central que move a investigação de CPJ é encontrar a essência da colonização. “É isso que se deve”, esclarece Caio Prado (2007, p. 19),
antes de mais nada, procurar quando se aborda a análise da história de um povo, seja aliás qual for o momento ou aspecto dela que interessa, porque todos os momentos e aspectos não são senão partes, por si só incompletas, de um todo que deve ser sempre o objetivo último do historiador, por mais particularista que seja. Tal indagação é tanto mais importante e essencial que é por ela que se define, tanto no tempo como no espaço, a individualidade da parcela da humanidade que interessa ao pesquisador: povo, país, nação, sociedade, seja qual for a designação apropriada no caso. É somente aí que ele encontrará aquela unidade que lhe permite destacar uma tal parcela humana para estudá-la à parte.
Para encontrar o sentido da colonização é preciso pensar o Brasil Colônia como parte de um todo; fora da totalidade, a parte (a colônia) não passa de um elemento disforme e sem vida. Só como momento de uma totalidade é que se pode encontrar o sentido da colonização que, como obra da expansão marítima dos países europeus, aqui, no Brasil, tomou
o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução histórica dos trópicos americanos (idem, p. 31).
Esse foi o sentido que assumiu a colonização no Brasil: grandes unidades de produção voltadas para a exploração dos recursos naturais, cuja única utilidade seria a de servirem de substratos de valores comercializáveis no mercado externo. Qualquer outra atividade não ligada ao mercado era deixada de lado, sem desempenhar papel importante dentro da sociedade colonial; não passaria de atividade marginal.
Eis aí a razão porque, para o autor de Formação Do Brasil Contemporâneo, o Brasil colonial só ganha sentido se apreendido como totalidade.
A dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil
Trinta anos mais tarde, Francisco de Oliveira se depara com uma problemática semelhante a que teve de enfrentar o autor de Formação do Brasil Contemporâneo. Assim como Caio Prado parte do sentido da colonização do Brasil, para entender sua formação e desenvolvimento econômico, Oliveira se defronta com a questão semelhante: encontrar o sentido da dialética do desenvolvimento brasileiro. Seu ponto de partida são as teorias cepalinas do desenvolvimento, que apostaram na industrialização como a única política capaz de superar o atraso das economias latino-americanas. Sem negar a importância da industrialização para o desenvolvimento das forças produtivas, como assim pensavam os teóricos da Cepal, Oliveira apreende o desenvolvimento pós-30 da economia brasileira como uma forma de acumulação de capital marcada por uma dinâmica em que se imbricam, dialeticamente, setores modernos e atrasados da economia. Noutras palavras, o desenvolvimento depende de um extenso crescimento de formas de acumulação não-capitalistas, ou se se preferir, arcaicas.
Tomando como referência os dois grandes clássicos de Francisco de Oliveira – Crítica à Razão Dualista (1972) e Elegia para uma Re(li)gião (1977) – não há dúvida de que ele, nesses dois ensaios, a exemplo do que antes fizera Caio Prado Junior, busca compreender a realidade brasileira a partir da reconstrução de seus elementos, aparentemente desconexos, e procura reconstruir sua unidade como opostos reflexivos, até alcançar a totalidade como síntese do múltiplo existente.
Tomando como referência o primeiro desses clássicos, Crítica à Razão Dualista (CD), a preocupação central de Oliveira é investigar como, a partir dos anos 30 do século XX, se instaura um novo padrão de acumulação no Brasil, qualitativo e quantitativamente distinto do que prevalecera até então. Se se quiser, trata-se de um padrão de acumulação que inaugura o assim chamado nacional-desenvolvimentismo. Mas essa investigação, ao mesmo tempo em que reconstrói o processo de desenvolvimento brasileiro, é também um acerto de contas com as teorias cepalinas, que tinham como principal objetivo a construção de uma nação política e economicamente independente. Para compreender esse padrão de desenvolvimento, Oliveira parte de seus elementos constitutivos básicos e busca encontrar a conexão interna entre eles, para desvendar a dialética de como eles se articulam até se constituírem numa totalidade viva. É aí que ele se apropria da teoria de Marx e a adapta às exigências histórico-particulares da economia brasileira.
Primeiramente, destaca a criação do mercado de trabalho como o primeiro desses elementos, que em conexão com os outros permitem desvendar a dialética do novo modelo de desenvolvimento que nasce pós-30. Num país ainda com forte ranço de relações escravistas de produção, a regulamentação legal da relação entre o trabalho e o capital é um dos mais importantes daqueles elementos, senão o mais importante deles. Como assim explica Oliveira, as leis trabalhistas criadas pelo Estado, até então inexistentes, “fazem parte de um conjunto de medidas destinadas a instaurar um novo modo de acumulação. Para tanto, a população em geral, e especialmente a população que afluía às cidades, necessitava ser transformada em ‘exército de reserva’” (Oliveira, 1987, p. 16). Essa conversão se impunha como uma necessidade, pois, “de um lado, propiciava o horizonte médio para o cálculo econômico empresarial, liberto do pesadelo de um mercado de concorrência perfeita, no qual ele devesse competir pelo uso dos fatores; de outro, a legislação trabalhista igualava reduzindo […] o preço da força de trabalho (ibidem).
Em segundo lugar, mostra a importância da intervenção do Estado na esfera econômica, seja por meio de subsídios, confiscos cambiais, investindo na infraestrutura, criando empresas estatais etc. Finalmente, destaca a importância da agricultura, que passa a cumprir papel de destaque na formação do novo padrão de desenvolvimento. De um lado, do setor exportador de produtos primários, notadamente o café, do qual dependia a criação de divisas para a importação de bens de capitais para a indústria nascente. Daí a importância de manter ativo esse setor, sem fazer dele a unidade central da política econômica. De outro lado, “por seu sub-setor (sic) de produtos destinados ao consumo interno, a agricultura deve suprir as necessidades das massas urbanas, de forma a não elevar o custo da alimentação principalmente e secundariamente os custos das matérias-primas, e não obstaculizar, portanto, o processo de acumulação urbano-industrial” (idem, p. 20).
Ao desvendar a dialética que articula esses elementos como uma unidade que dá sustentação ao nascimento do novo modelo de acumulação pós-30, Oliveira desmonta a concepção dualista de desenvolvimento defendida pelos teóricos do subdesenvolvimento, para quem as economias subdesenvolvidas eram marcadas pela presença de dois setores: um moderno e um outro arcaico, atrasado. Essa crítica aparece com mais força, quando ele demonstra que o setor moderno e o setor atrasado não são simplesmente dois opostos, sem nenhuma relação interna entre eles. Pelo contrário, Oliveira mostra que entre esses tais opostos há uma relação dialética e não de simples oposição.
Com efeito, para criticar a concepção dual de desenvolvimento, Oliveira se apropria do conceito de acumulação primitiva de Marx e o adapta à realidade brasileira, para mostrar como os setores moderno e arcaico se articulam dialeticamente. Ele afirma que esse conceito
deve ser, para nossos fins, redefinido: em primeiro lugar, trata-se de um processo em que não se expropria a propriedade […] se expropria o excedente que se forma pela posse transitória da terra. Em segundo lugar, a acumulação primitiva não se dá apenas na gênese do capitalismo: sob certas condições especificas, principalmente quando esse capitalismo cresce por elaboração de periferias, a acumulação primitiva é estrutural e não apenas genética (idem, p. 21).
Longe de constituir um obstáculo ao desenvolvimento do setor moderno da economia, a agricultura de subsistência desempenha função primordial para o crescimento e desenvolvimento do setor urbano-industrial da economia. A genialidade de Oliveira vai mais longe quando ele nega a tese da chamada “inchação” do terciário, comumente compreendida como obstáculo ao desenvolvimento industrial. Para ele,
a razão básica pela qual pode ser negada a negatividade do crescimento dos serviços […] é que a aparência de inchação esconde um mecanismo fundamental da acumulação: os serviços realizados à base de pura força de trabalho, que é remunerada a níveis baixíssimos, transferem, permanentemente, para as atividades econômicas de corte capitalista, uma fração de valor, mais-valia em síntese. Não é estranha a simbiose entre a moderna agricultura de frutas, hortaliças e outros produtos de granja com o comércio ambulante? Qual o volume de comércio de produtos industrializados […] tais como lâminas de barbear, pentes, produtos de limpeza, instrumentos de corte, e um sem número de pequenos objetos, que é realizado pelo comércio ambulante […]? Esses tipos de serviços, longe de serem excrecências e apenas depósito do exército industrial de reserva são adequados para o processo da acumulação global e da expansão capitalista, e, por seu lado, reforçam a tenência à concentração da renda (idem, p. 33-34).
Em síntese,
o processo de crescimento das cidades brasileiras […] não pode ser entendido senão dentro de um marco teórico onde as necessidades da acumulação impõem um crescimento dos serviços horizontalizados, cuja forma aparente é o caos das cidades […]. Mesmo uma certa fração da acumulação urbana, durante um longo período de liquidação da economia pré-anos 30, revela formas do que se poderia chamar, audazmente de acumulação primitiva (idem, p. 35).
Eis aí a crítica que Oliveira expõe em sua Crítica da Razão Dualista à teoria do desenvolvimentismo. Trata-se de uma crítica demolidora, no sentido de que o subdesenvolvimento deve ser explicado como produto do próprio desenvolvimento capitalista. A apropriação dos conceitos que ele faz de Marx permite que ele vá além deste pensador. Só assim pôde explicar a dialética perversa que dá sustentação a uma forma de imbricação entre setores modernos e o atrasados da sociedade brasileira.
Capitalismo e região
Cinco anos depois de Crítica à razão dualista, vem a público Elegia para uma Re(li)gião, que segue a mesma filiação teórica da obra anterior. Com a diferença de que, agora, Oliveira confessa sua relação com aquele passado que ele criticara no clássico de 1972. Na edição publicada pelo Boitempo, o tom nostálgico do Prefácio deixa transparecer a guerra quimérica dos tempos em que ele e outros jovens se juntaram a Celso Furtado na luta pela modernização do Nordeste. A SUDENE era o veículo dessa modernização. Foi um tempo em que os sonhos de um futuro promissor parecia mais aberto e rico em possibilidades.
Daí o tom melancólico que atravessa Elegia do começo ao fim. Na página de abertura da edição da Boitempo, Oliveira revela a força do sentimento que ainda o prendia ao passado. Saudades? Acredita-se que não. Afinal, é com um fragmento do soneto de Eugênio Coimbra Jr., que ele confessa que a viagem que faz ao seu passado é apenas a de um “homem velho que se vem rever / Na paisagem do tempo de menino/”.
Essa volta ao passado é carregada da emoção e da paixão que o acompanharam até o último dia em que brigou com a vida, contra um presente que parece tomar a forma de um deus Moloch ao qual todas as esperanças de um mundo diferente esfumaça-se, deixando para trás aquele mundo em que ele e outros companheiros de luta juntaram-se a Celso Furtado na construção da SUDENE. Sonho de outrora que terminou em tragédia. Por isso, ele faz questão de abrir o peito e gritar bem alto que
Elegia para uma re(li)gião é, sim, um canto de amor: principalmente, do novo amor. Canta o amor que se foi, pela ausência da pessoa amada. Canta o amor pelos milhões de nordestinos que pereceram, vítimas de um sistema de opressão e opróbrio, e jogaram suas vidas não na inutilidade de desafiar Zeus, mas na audácia do desafio; ao agir assim, legaram ao futuro aquelas circunstâncias de que falava Marx em O 18 de Brumário; nada, nenhum desdobramento do nordeste futuro e do Brasil, poderá passar por cima desse legado […]. Esta Elegia é, pois, o canto de amor da região do futuro e essa região é simultaneamente todo o Brasil e a nova forma de sociedade, isto é, a nação socialista (Oliveira, 2008, p. 130-131).
Sudene: farsa ou tragédia? Melhor que tu, Chico, respondas. Seguindo a toada que vinhas a cantar, dizes que
muitos dos antigos companheiros das jornadas iniciais da SUDENE permanecem no Nordeste, e seguem trabalhando na agência de planejamento regional. Este ensaio pode parecer-lhes algo que, chegando mais de 15 anos depois, esteja a dizer-lhes que tudo foi inútil, que a SUDENE foi uma farsa. Menos pela minha direta participação naquelas jornadas – pois não me considero, hoje, como tendo sido farsante então – e mais pela minha posição teórica, devo explicar-lhes que a SUDENE não foi uma farsa: precisamente porque foi um embate de raras proporções na história nacional, travado pelo tipo de forças sociais que o travaram, a SUDENE foi um empreendimento de uma audácia inédita na história nacional. Ela anunciava um dos dois novos: se os vencedores tivessem sido as forças populares, o Nordeste e o Brasil de hoje seriam muito diferentes; tendo sido vencedores as forças do capitalismo monopolista, chamadas a socorrer combalidos latifundiários e barões do açúcar, essa vitória também mudou o curso da história. A Sudene, na sua ambiguidade, anunciava as duas possibilidades. Não cabe aos que nela continuam trabalhando qualquer sentimento de culpa, de traição. A velha lição volta a dizer, entretanto, que a história quando se repete é farsa e não tragédia (idem, p. 131-132).
A derrota das forças populares abriu caminho para que o planejamento pudesse se apresentar como a solução para os problemas da região. Daí a criação da SUDENE; cabia a essa instituição planejar a alocação dos recursos e assim erradicar a pobreza e a miséria que avassalava o povo nordestino. O Nordeste do Brasil se industrializou. O parque industrial baiano é responsável pela produção de produtos químicos, alimentos, bebidas, metalurgia, automóveis, combustíveis. No Estado do Ceará, destaca-se a produção industrial de máquinas, materiais elétricos, tecidos, calçados e bolsas, alimentos e álcool. A indústria pernambucana se desponta na produção de alimentos, metalurgia, produtos químicos, produção de álcool e refino de petróleo. As principais áreas industriais do Nordeste se concentram em Recife, Salvador e Fortaleza.
Visto da ótica do desenvolvimento industrial, o Nordeste se modernizou e se transformou numa região com uma base produtiva capitalista igual à do centro-sul do país. Com efeito, que diferença existe entre a Grendene localizada na cidade do Crato, por exemplo, e a sua matriz que nasceu no Estado do Rio Grande do Sul, na cidade de Farroupilha (1971)? Por acaso, a base produtiva dessas duas unidades de produção não é a mesma? Claro que é.
Eis aí o que o planejamento realizou no Nordeste: criou uma base produtiva na região semelhante a do centro-sul do país. Mas o nordeste da fome e da miséria permanece inalterado. E não poderia ser diferente. O planejamento, diz Oliveira, “não pode realizar a superação da contradição básica do sistema de produção capitalista, que se instala no coração da própria mercadoria: a antítese dialética entre valor e mais-valia, entre trabalho morto e trabalho vivo, trabalho pago e trabalho não-pago” (idem, p. 140).
Mas por que o planejamento é incapaz de superar a pobreza? Porque, continua Oliveira, o planejamento, no sistema capitalista, limita-se a apenas
realocar no início do ciclo produtivo os elementos da produção capitalista, sua possibilidade torna-se perfeitamente plausível: em síntese, o planejamento num sistema capitalista não é mais que a forma de racionalização da reprodução ampliada do capital. Pode operar, exatamente nesse sentido, na mudança da forma da mais-valia que deve ser reposta para a continuidade do ciclo; para dar um exemplo, que cabe como uma luva no caso do planejamento regional para o Nordeste do Brasil, desde que foi capaz de transformar uma parte da mais-valia, os impostos, e fazê-los retornar sob o controle da burguesia com o capital, o Estado tornou-se capaz de operar uma mudança da forma do excedente que retornou ao processo produtivo. Isso, e somente isso, é o que o planejamento pode fazer num sistema capitalista (ibidem).
Daí a razão por que Oliveira se recusasse a compreender a emergência do planejamento sob “o enfoque dos desequilíbrios regionais”. É dessa perspectiva metodológica, comenta Oliveira, que se fundamentam os diagnósticos que criaram a SUDENE e
que continuam a informar as políticas de desenvolvimento regional no Brasil e alhures, é tão-somente um enfoque que parte de uma base estática, tomando como dados uma certa situação da divisão regional do trabalho para então desdobrar-se na mediação de desvios, como é sobretudo uma abordagem que se centra sobre os resultados dos desenvolvimentos diferenciais inter-regionais e não sobre o processo de constituição desses diferenciais (p.141/42).
Para entender como se dá a constituição dos diferenciais inter-regionais, Oliveira centra sua abordagem do planejamento regional “no exame da divisão regional do trabalho e nas suas mutações, sob o controle hegemônico da produção capitalista no Brasil”. Essa perspectiva metodológica, diz Oliveira (idem, 142), pode
propiciar o entendimento da natureza do conflito que levou à criação da SUDENE, pelo exame do desenvolvimento desigual inter-regional, da desigualdade de caráter e de ritmos dos conflitos sociais nas diversas regiões que polarizaram e expressavam as contradições da expansão capitalista no Brasil, pelo exame dos diferenciais da acumulação global em todo o país e finalmente pela investigação do que é uma região num contexto nacional hegemonicamente controlado pelos setores mais avançados da produção capitalista”. E conclui afirmando que essa abordagem “indica, no final, uma redefinição do próprio conceito de região num sistema de base produtiva capitalista e talvez até uma completa desaparição dessas regiões (p. 142).
Mas, como se dá a criação de regiões dentro de um mesmo espaço social e econômico? Noutras palavras, como Oliveira apreende o conceito de região? Concedendo-lhe a palavra, ele explica que
o que preside o processo de constituição das regiões é o modo de produção capitalista, e, dentro dele, as regiões são apenas espaços socioeconômicos em que uma das formas do capital se sobrepõe às demais, homogeneizando a região exatamente pela sua predominância e pela consequente constituição de classes sociais cuja hierarquia e poder são determinados pelo lugar e forma em que são personas do capital e de sua contradição básica. Enfatiza-se, uma vez mais, que uma região assim tende a desaparecer […] na mesma medida em que as várias formas do capital se fusionam, primeiro pela predominância do capital industrial, depois pela fusão entre o capital bancário e industrial, dando lugar ao capital financeiro, e posteriormente, na etapa monopolista do capital, pela especial fusão entre Estado-Capital (idem, p. 149/50).
Um exame mais devagar do conceito de região aqui exposto deixa transparecer que esse conceito tem uma dimensão política, que é a presença das classes em luta pela preservação dos seus interesses. “Essa dimensão política”, diz o Chico,
não é uma instância separada da econômica; pelo contrário, é ou será da imbricação das duas instâncias que poderá surgir mais completo o conceito que aqui se propõe, pelo menos na tradição teórica do marxismo. O fechamento de uma região pelas suas classes dominantes requer, exige e somente se dá, portanto, enquanto essas classes dominantes conseguem reproduzir a relação social de dominação, ou mais claramente as relações de produção. E, nessa reprodução, obstaculizam e bloqueiam a penetração de formas diferenciadas de geração do valor e de novas relações de produção. A abertura da região e a consequente integração nacional, no longo caminho até a dissolução completa das regiões, ocorre quando a relação social não pode mais ser reproduzida e, por essa impossibilidade, percola a perda de hegemonia das classes dominantes locais e sua substituição por outras, de caráter nacional e internacional” (idem, p. 151-152).
A obra do Chico é imensa, não só em quantidade (outros livros, artigos e entrevistas), mas em seu significado para o pensamento social brasileiro. Espero ter dado, neste artigo, uma mostra suficiente da necessidade e da atualidade de seu pensamento.
Referências bibliográficas
MORSE, Richard. O Espelho de Próspero: cultura e ideias nas Américas . – Trad. Paulo Neves.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
Oliveira, Francisco. Crítica à Razão Dualista. – Petrópolis: Vozes, 1987.
Oliveira, Francisco. Crítica à Razão Dualista; O ornitorrinco. – São Paulo: Boitempo, 2003.
Oliveira, Francisco. Elegia de uma re(li)gião. – São Paulo: Boitempo, 2008.
Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. – São Paulo: Brasiliense, 2007.
Ricúpero, Bernardo. Caio Prado Júnior e a nacionalização do marxismo no Brasil. – São Paulo: Editora 34, 2000.

Francisco Teixeira é membro do Conselho Editorial de A Comuna, pesquisador do pensamento de Marx e da Economia Política, autor de Pensando com Marx (1996), Trabalho e valor (2004) e Marx no século XXI (2008, em parceria com Celso Frederico), dentre outros títulos. Atualmente, anima um canal no Youtube, no qual ministra um curso on line aberto de O capital.