Covid-19: Recolher nossos mortos, juntar os destroços

Victor Hugo Viegas Silva

O que é que devemos fazer, então? Justamente isso que o presidente não é, nem quer ser. Devemos, diante da catástrofe dos mais de cem mil mortos, tornar-nos ajudantes de coveiro.

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O dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer.

Walter Benjamin, Sobre o conceito de História (1940)

Recentemente, chegamos à marca dos cem mil mortos pela covid-19 no Brasil. Foi a oportunidade para amplo debate sobre as perdas que sofremos e de um embate sobre as responsabilidades pelas mortes. Algumas das principais perguntas que se coloca são: trata-se uma catástrofe nacional? Teriam os mortos apenas se tornado números? Teríamos nos tornado indiferentes?

Esse governo sabe o tamanho do estrago do que cometeu e morre de medo da possibilidade de um reconhecimento e mobilização coletiva em torno das nossas perdas – com a lembrança fresca do que aconteceu com o caso de Brumadinho. É o que tentarei demonstrar no texto que segue.

Como se naturaliza uma catástrofe em números?

O governo certamente não é indiferente à questão. A Secretaria de Comunicação da presidência da república colocou como objetivo central de sua estratégia não permitir “transformação dos números em catástrofe”. Isso seria feito por uma “agenda positiva” e acusações contra quem estaria “festejando o vírus”. Conforme disse Bolsonaro em seu facebook:

De forma covarde e desrespeitosa aos 100 mil brasileiros mortos, essa TV festejou essa data no dia de ontem, como uma verdadeira final da Copa do Mundo, culpando o Presidente da República por todos os óbitos.

Fazendo o papel de “porta voz da racionalidade”, Pazuello fala por seu lado que “Não é um número que vai fazer a diferença. Não é 95, 98 ou 101 que vai fazer a diferença. O que faz a diferença é cada brasileiro que se perde”.

Parece que ele está abrindo espaço para uma individualização das mortes. Mas é engano. O que ele está fazendo é abrindo espaço para uma individualidade abstrata que logo se funde na identidade nacional:

Não existe, nesse momento, diferenças partidárias ou ideológicas. Somos todos brasileiros combatendo, dia a dia, da melhor forma nos dedicando para que não haja mais mortos no nosso país. Já perdemos 100 mil brasileiros com nome, identidade e família.

Assim, em sua suposta condolência abstrata, Pazuello apaga a identidade concreta e as diferenças reais em que a pandemia se processa no Brasil. Existem diferenças partidárias ideológicas, existem sobretudo diferenças de classe. Começa com o perfil da vítima: é homem pardo, pobre, morador da periferia, como exposto nessa matéria da Época.

O risco é também desigual. Laura Carvalho, Luiza Nassif Pires e Laura de Lima Xavier comprovaram já no início da pandemia: baixa escolaridade e desigualdades sociais são determinantes para elevação da taxa de transmissão e severidade da covid-19 no Brasil. Locomoção vinculada ao trabalho explica boa parte das infecções de acordo com Raquel Rolnik e um estudo mais recente da Unifesp descreveu que “quantidade de viagens no transporte coletivo explica 80% dos óbitos”.

Não somos, então, todos brasileiros iguais nessa pandemia. E nem mesmo em termos de opções políticas. Trata-se de mortes evitáveis, se levarmos em conta as possibilidades e experiências de enfrentamento da doença inclusive no território nacional.

Vejam, por exemplo, o município de Trajano, onde a meta continua sendo zero mortes após meses de combate bem sucedido. Até mesmo a religião nos diferencia durante essa pandemia. Fiéis da Assembleia de Deus no Brasil foram expostos à aglomerações, enquanto pessoas de orientação do Candomblé e Umbanda tiveram acesso a orientações (à distância, em via digital) da OMS, conforme verificado em estudo da Social Anthropology.

Nunca fomos tão diferentes como durante essa pandemia. Nunca foi tão concreta nossa diferença e nossa existência. Por que esse governo insiste em negar uma coisa tão evidente diante da realidade – a ponto disso influenciar sua proposta de vacinação? Por que o governo e seus partidários insistem tanto, de forma unificada e estratégica, em não oferecer seus pêsames ou decretar um luto coletivo pelos mortos da pandemia? Como é possível que o presidente Jair Bolsonaro ofereça sua solidariedade ao entregador Matheus, por exemplo, mas não a nenhum morto da covid-19?

O central está ali na frase do começo – não permitir a transformação de números em catástrofe. Porque em uma catástrofe, existem vítimas e existem responsáveis a serem investigados. Em uma catástrofe, as vítimas se unem e têm a solidariedade dos demais. O reconhecimento é comum e certamente haverá uma mobilização coletiva contra o responsável. Uma catástrofe nunca gera indiferença. Mas o que é, de fato, uma catástrofe? Qual foi a última grande catástrofe nacional brasileira?

Quando números já viraram catástrofe

Em janeiro de 2019, o Brasil assistia estarrecido as imagens de uma barragem estourando e engolindo tudo à sua frente. A catástrofe que aconteceu ano passado e já gerou uma entrada na wikipédia gerou 259 mortes e o desaparecimento de mais 11. Era a terceira barragem que estourava depois de numerosas declarações da Vale do Rio Doce de que “medidas estavam sendo tomadas”: Itabirito em 2014 e Mariana em 2015. Uma lembrança que vem forte da época de ver as imagens ao vivo era: “De novo? Mas a Vale não tinha resolvido isso?” A sensação de evitabilidade era forte pra ajudar a indignação desde o primeiro momento.

Outro elemento importante foi o registro compartilhado do processo. O registro em primeira mão da coisa acontecendo, a forte impressão de que isso tinha no próprio sujeito que registrava, tudo isso contribuiu para a repercussão em outro sentido – fora do controle de narrativa por parte da Vale do Rio Doce. Então foi possível ver quem fugiu primeiro, quem fugiu depois, quem ficou pra ajudar, quem ficou pra trás. Deu pra ver o processo da catástrofe em sua concretude, os sujeitos em suas diferenças sofrendo cada um as consequências daquele crime coletivo que foi a estruturação precária da barragem.

Exemplos parecidos que tivemos em que o registro foi central para tirar do âmbito da morte individual para o de uma questão social coletiva são os casos dos entregadores Matheus: tanto no que foi agredido no condomínio, quanto no que foi agredido no shopping o registro e o compartilhamento rápidos permitiram que  casos individuais (em toda sua dramaticidade) se tornassem uma questão social. Como este processo ainda está em curso, fica apenas a anotação.

Voltando pra Brumadinho, outro elemento que impulsionava a mobilização e a identificação eram as histórias individuais e os exemplos de solidariedade. Era possível vê-los ao vivo, como um homem que conseguiu salvar duas pessoas e seguiu em busca de sua irmã. A gente podia se ver ali, como se também tivéssemos vivido aquilo. Eram histórias individuais que sintetizavam um drama coletivo, como o do funcionário que usou maçarico pra soltar o amigo, mostrando a criatividade e as dificuldades que existiam pra salvar as pessoas, ou um helicóptero que fez uma manobra arriscada pra salvar uma mulher. As vítimas apareciam assim como: pessoas pelas quais valia a pena correr riscos; sujeitos que tentavam se salvar e salvar uns aos outros; partes de uma coisa maior, coletiva, dignos de empatia por parte da sociedade.

Como aparecem as pessoas que morrem de covid-19 na narrativa hegemônica? Como pessoas que não tem histórico de atleta, fracas, que se descuidaram por questões individuais, que morrem sozinhas sem história, um brasileiro igual a qualquer outro. Como pessoas que ficaram no salve-se quem puder. Há pouca pra nenhuma história de solidariedade. A exceção são os trabalhadores de saúde e os sepultadores (vulgos coveiros). Mas os trabalhadores da saúde estão sofrendo uma enorme hostilização e ostracismo, enquanto são expostos a uma situação de intenso desgaste, medo, hiper-individualização e exposição no trabalho.

Dessa forma, as pessoas mais capacitadas para dar uma dimensão coletiva e um sentido humanitário para a crise que estamos vivendo estão vivendo uma situação de intensa hostilidade e isolamento. Isso não me parece casual. Não é por acaso que um síndico bolsonarista se sentiu ameaçado, em sua noção de que no prédio não haveria pandemia, por um médico que tinha se mobilizado para ajudar pessoas carentes em Marabá, como relatei no Hostilidade na linha de frente. Essa alergia à solidariedade tem a ver com estratégia.

A estratégia já estava delineada desde o começo, como pode se ver em um discurso que Bolsonaro deu pra imprensa em 20 de abril:

Aproximadamente 70% da população vai ser infectada. Não adianta querer correr disso. É uma verdade. Estão com medo da verdade? Houve uma potencialização das consequências do vírus. Levaram o pavor para o público, histeria. E não é verdade. Estamos vendo que não é verdade. Lamentamos as mortes, e é a vida. Vai morrer. Essa é uma realidade, o vírus tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia.  Ô, cara, quem fala de… Eu não sou coveiro, tá certo? Não sou coveiro, tá…? (itálicos meus)

Não foi por acaso que ele se manifestou contra esta singela nota de falecimento da Polícia Rodoviária Federal, falando que não poderia colocar a causa covid pra não gerar “pânico ou histeria”. A polícia individualizou a morte, tornou uma vítima identificável e sujeito de empatia. Tudo que não podia ser feito. A nota começava a gerar condições ou era um procedimento que tornava possível transformar os números em catástrofe.

O que é que devemos fazer, então? Justamente isso que o presidente não é, nem quer ser. Devemos, diante da catástrofe dos mais de cem mil mortos, tornar-nos ajudantes de coveiro.

Contar nossos mortos

Assim noticiou a Reuters:

“Eu acho que ele tinha a doença”, disse Santos em meio aos mais de 1,5 milhão de túmulos no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, onde novas fileiras de covas estão sendo preenchidas com os corpos dos infectados —sabidamente ou não— pelo vírus. O enterro levou 10 minutos, de acordo com as novas orientações para limitar aglomerações e o contágio.

Um enterro de dez minutos no Brasil é uma violência, todo mundo sabe disso. Está aí um dos motivos da apatia. Mas o que acontece com a sobrecarga de trabalho dos coveiros ou sepultadores? Isso pede primeiro um olhar sobre o trabalho deles.

“Carregar cadáveres foi sempre um ato para os estratos mais baixos da sociedade”, reflete Osmair Camargo Cândido, “índios e escravos”.  “Tivemos 750 sepulturas ocupadas em 15 dias. Lembro de um dia que, em um intervalo de três horas e meia, fizemos 43 sepultamentos, sendo que 22 foram de covid”, relembra James Alan, outro sepultador. Essa intensificação tem repercutido na saúde mental desses trabalhadores e em seu isolamento social relativo. Como não desumanizar as mortes, quando nem a pessoa que enterra pode parar um minuto sequer em respeito aos mortos?

É aí que deve entrar a sociedade organizada, os outros trabalhadores. Existem algumas respostas possíveis que explorarei em formato de casos que eu pude experimentar diretamente.

O Cortejo Solidário de São Luiz de Montes Belos

A proposta está sintetizada no depoimento de uma trabalhadora invisível da cidade:

precisamos ser mais empáticos e afetivos com quem perde uma pessoa da família para a covid. Não tem como fazer velório, mas tem como fazer cortejo, tem como esperar junto com a família e com todas as medidas de segurança o sepultamento ser feito. Não tem como fazer visita, mas podemos irmos até a porta e levarmos flores ou simplesmente a presença. A solidão de quem perde um ser amado pode ser amenizada com nosso afeto.

Isso foi feito no caso de Pedro Borges dos Reis, professor aposentado em São Luís de Montes Belos. Primeiro houve uma mobilização coletiva que resultou na escrita de um obituário que pode ser lido aqui, depois que a dor tornou-se pública decidiu-se coletivizá-la em ato transformando-a em cortejo distanciado e seguro, mas presença solidária à família, como pode ser visto nesse vídeo.

A Nota de Saudade da Escola Municipal Recanto do Bosque

Tudo começou com a morte da trabalhadora de biblioteca Rosa Maria. Ela resultou em uma mobilização coletiva para a escrita de um obituário, cujo resultado pode ser lido aqui. Este obituário é particularmente bom exemplo por enfatizar quem era Rosa Maria antes da covid-19, qual seu papel e função na comunidade que agora ficaram vazios, quais as consequências da sua morte para a comunidade que sentirá sua falta. Nesse sentido, o obituário se diferencia da iniciativa Inumeráveis, que apesar de cumprir seu papel de nomear as vítimas, não consegue inseri-las em um contexto e retorná-las como vítimas que precisam ser vingadas. Essa diferença de postura é a diferença entre o historicista que apenas descreve a história numa identificação afetiva com os vencedores e o materialista histórico que, como diz Benjamin, ao modo do anjo da história, busca em nosso presente “despertar os mortos e juntar os destroços”. A nossa postura diante das vítimas do covid-19, nessa que é uma das maiores catástrofes brasileiras da história, deve ser a do anjo da história de Walter Benjamin:

 O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços.

A continuação desse obituário se deu com a continuação do próprio acontecimento. O porteiro da escola, que estava em UTI, também faleceu de covid-19. Isso provocou outra mobilização coletiva que gerou a produção de uma Nota de Saudade em formato de vídeo por parte do coletivo escolar, em que se inseria a morte dessas duas pessoas queridas dentro de uma narrativa em que eles fariam falta, dentro de um antes e de um depois da partida deles, que pode ser acessado aqui.

Conclusão

Em cada época é preciso tentar arrancar a transmissão da tradição ao conformismo que está na iminência de subjugá-la”, dizia Walter Benjamin na “tese” 6 de Sobre o conceito de  História. Pois nós precisamos arrancar o antes, o que representavam as vidas dos que se foram, das garras do poder que quer transformá-las em argumento de conformação com as mortes que virão a acontecer. Precisamos fazer as pessoas poderem sentir-se confortável com expressar a dor e a falta que sentem dos colegas, vizinhos, parentes que se foram. E converter essa falta em busca e prática de solidariedade social.

Acredito que os exemplos que coloquei são passíveis de replicação ou discussão crítica e debate. E penso que o trabalho – crítico­ – de ajudar na recepção da morte aos nossos companheiros de classe, pode ser estratégico em um momento em que as igrejas evangélicas, por exemplo, tradicionais repositórios da solidariedade, neste momento de refluxo se negam a oferecer essa solidariedade em função de sua aliança com Bolsonaro, como pode ser visto nesta matéria. Também pode ser estratégico para enfrentar os setores negacionistas que sustentam a atual correlação de forças em que se apoia o governo Bolsonaro.

É uma oportunidade rara de desenvolver vínculos de solidariedade, identificação e luta coletiva de classe e fazer avançar estrategicamente uma perspectiva de esquerda laica, aberta às experiências vivas e às dores de nossa classe.

Todas as citações de Walter Benjamin são da tradução de Jeanne-Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller publicada em Michael Löwy, Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de História’ (São Paulo: Boitempo, 2005).

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Essa xilogravura inspirada no Angelus Novus de Paul Klee é de autoria de Adriano Ferreira Filho (2014). Técnica: gravura em madeira; dimensões: 14 cm x 14 cm.

As duas fotos estão disponíveis em Fotos púbicas.

Victor Hugo Viegas Silva é jornalista, trabalha na Universidade Federal de Goiás e tem colaborado com A Comuna, além de com outros sites e blogs ligados à luta dos trabalhadores e à reflexão anticapitalista.

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