Emiliano Aquino
“Este elemento sóbrio, em si mesmo sem-destino – o Nome – , não conhece outro adversário senão o destino” (Walter Benjamin, Passagens, O 1,1,).

Este conjunto de quatro quadros – que forma um imenso painel – se intitula Massacre de Sabra e Shatila, atualmente em exposição permanente no Tate modern museum de Londres. Foi pintado pelo artista plástico iraquiano Dia Al-Azzawi entre 1982 e 1983, nos meses que seguiram o massacre de Sabra e Shatila. É conhecido como a “Guernica moderna” – o que constitui, pelo menos à primeira vista, um estranho epíteto, quando apenas poucas décadas separam no tempo os dois crimes e um mesmo rio de sangue os une historicamente na contrarrevolução contínua do século XX: o massacre de Guernica já foi inteiramente moderno. Mas há algo mais, e talvez seja a isso que o apelido do quadro se refira: como a Guernica, ele não tem profundidade; as três dimensões são reduzidas a duas.
Isso merece duas ou três palavras.

A bidimensionalização dos objetos sólidos Picasso a experimenta pelo menos desde 1912, em O violino – quadro de desenho e colagem (veja ao lado). O pintor espanhol desmonta o objeto tridimensional, reduzindo-o a um mesmo plano. Este gesto, no período cubista, tem uma intenção programática de crítica da profundidade metafísica, de desauratização dos objetos pintados e, portanto, também de um distanciamento do realismo pictórico, mostrando que as coisas são feitas e desfeitas.
Em Guernica, contudo, parece haver uma inversão de sentido: a técnica experimentada desde 1912, parcialmente atualizada, se presta agora à denúncia da objetualização dos corpos humanos, sua redução a objetos bidimensionais desmontáveis. Presta-se, enfim, à denúncia da produção técnica da morte. (Não posso deixar de mencionar a apresentação histórica cuidadosa desse corpo desmontável na arte moderna por Eliane Robert Morais. [Desculpem a referência comercial, não encontrei nenhum pdf gratuito na rede]).

O pequeno vilarejo de Guernica, no país basco, não deveria ter mais de 6-7 mil habitantes, quando aviões de guerra alemães, sob a bandeira nacional-socialista, o bombardearam 45 anos antes do massacre de Sabra e Shatila. Os nazistas pretendiam testar seus aviões de guerra e abrir caminho para os franquistas, que chegaram à cidade alguns dias depois. (Desde há muito tempo os armamentos com que o Estado de Israel alimenta a repressão estatal em todo o mundo é testado nos corpos palestinos). Em Sabra e Shatila, o exército israelense não chega depois, ele antecede aos falangistas do Exército do Sul do Líbano e abre-lhes o caminho para cerca de 40 horas contínuas de destruição, estupros, torturas e assassinatos: um horror em estado puro, concentrado. Entre a noite de quinta-feira (16 de setembro) e manhã do shabat (18 de setembro), os soldados sionistas ficaram entre a proteção ao massacre e a participação nele: “nas noites de quinta para sexta e de sexta para sábado se falava hebraico em Shatila”, conta Jean Genet o que ouviu de um jornalista libanês.
Genet esteve em Shatila destruída em 19 de setembro, dia seguinte ao último dia do massacre. Seu relato intitulado Quatro horas em Shatila é, digamos assim, terrível:
O primeiro cadáver que eu vi era o de um homem entre cinquenta e sessenta anos de idade. Ele teria cabelos brancos iluminados por uma ferida (feita por um machado, pareceu-me) não tivesse ele o seu crânio rachado em dois. Parte de seu cérebro enegrecido estava espalhado pelo chão, próximo da cabeça. O corpo estava estendido sobre uma poça de sangue escuro coagulado. O cinto estava aberto, um único botão segurava as suas calças. As pernas e os pés do homem morto estavam à mostra, enegrecidos, roxas e azuis; talvez ele tenha sido apanhado de surpresa durante a noite ou na madrugada. Estaria fugindo?
Paremos por aqui: citações não substituem a força da narrativa: sua beleza, seu terror. Mas há algo nela que nos interessa se queremos bem abordar o painel de Al-Azzawi. Genet escreve num misto de descrição realista (como a que vimos acima) e livre associação de imagens, palavras, ideias – ele quer com isso ultrapassar, não a narrativa escrita (que, pelo contrário, parece esforçar-se para manter), mas os limites da reportagem, especialmente a fotográfica e a televisada (que talvez deem forma e limite a toda reportagem escrita).
Uma fotografia tem duas dimensões, assim como a tela da televisão; ninguém pode caminhar através da imagem. De uma parede da rua até a outra, dobrado ou arqueado, com os seus pés apoiados contra uma parede e as suas cabeças pressionando a outra, os corpos pretos e inchados sobre os quais eu tinha que passar eram todos de palestinos e libaneses. […] Algumas vezes uma criança morta bloqueava as ruas: elas eram tão pequenas, tão magras, e os mortos tão numerosos. Provavelmente o cheiro é familiar para as pessoas mais velhas; ele não me incomodava. Mas havia tantas moscas. Se eu levantasse o lenço ou o jornal árabe colocado sobre uma cabeça, eu as perturbaria.
Vem um parágrafo.
Em seguida, outro, bem pequeno.
Diz assim: “A fotografia não captura as moscas ou o cheiro branco espesso da morte. Também não diz os saltos a dar ao passar de um cadáver a outro”.
Picasso estava em Paris quando pintou Guernica. Ele apoiou-se nas fotografias que viu publicadas no jornais, nas reportagens que informavam sobre o massacre do vilarejo basco. “A pintura, um óleo sobre tela, foi realizada a partir de 36 fotos que retrataram as dolorosas consequências da tragédia”, informa Liane Olesques. No quadro, Picasso retira daquelas imagens a dimensão tridimensional, desfaz delas toda a sedução realista e reduz sua realidade a apenas duas dimensões: a dor e a morte. Imagens fotográficas diversas são recortadas e coladas, porém numa transcriação pictórica, como bem observou Olesques: “o artista não se utiliza da colagem propriamente dita, mas de uma simulação da técnica”. Como no Violino, até mesmo matérias de jornais estão ali – “coladas”.
No relato de Genet, a fotografia, de antemão, se desmonta em palavras, como os corpos estão desmontados pela violência. Em um sentido bem diferente, aplica-se aqui a expressão de Benjamin: “mímesis da morte”.
Amor e morte. Estas duas palavras são rapidamente associadas quando uma delas é escrita. Eu tive que ir até Shatila para entender a obscenidade do amor e a obscenidade da morte. Nos dois casos um corpo não tem nada mais a esconder: posições, contorções, gestos, sinais, até mesmo os silêncios pertencem a um mundo e ao outro. O corpo de um homem de trinta a trinta e cinco estava deitado de bruços. Como se o corpo todo não fosse nada além de uma bexiga no formato de um homem, ele ficou tão inchado com o sol e com as substâncias da decomposição que suas calças estavam justas como se elas estivessem prestes a se rasgar nas nádegas e nas coxas. O único pedaço do rosto que eu consegui ver estava roxo e preto. Logo acima do joelho podia ver-se um ferimento profundo com o tecido rasgado. A causa do ferimento: uma baioneta, uma faca, um punhal?
“Os corpos não têm mais nada a esconder: posturas, contorções, gestos, sinais, até silêncios”. Em Sabra e Shatila, os corpos foram quebrados, cortados, perfurados – desmontados, como o estão, de outra forma, no painel de Al-Azzawi. Um/a jornalista do Art daily descreve-o assim:
Sabra e Shatila mostra o massacre por meio de uma série de cenas fragmentadas unidas para criar uma narrativa que invoca a crueldade implacável e a brutalidade da guerra e do sofrimento humano. Gritos silenciosos e mãos estendidas em desespero permeiam a composição; o uso cuidadoso do vermelho sangue e os corpos fragmentados de humanos e animais reforçam o horror da matança.
Este resultado é fiel ao processo de produção. Segundo Maymanah Farhat, “os desenhos resultantes foram produzidos como microcomponentes de um todo maior e cobriram a largura de seu estúdio em Londres”. A foto abaixo mostra os pedaços dos quadros. Sobre eles, Al-Azzawi relata ao Art Daily:

Eu tinha na época um rolo de papel e, sem nenhum esboço preparatório, surgiu-me a ideia da obra. Tentei visualizar minha experiência anterior de caminhar por este acampamento, com seus pequenos quartos separados por uma via estreita, no início dos anos 1970.
Como todos nós, Al-Azzawi viu sobre o massacre inicialmente pela TV, pelos jornais. Contudo, decisiva para sua produção pictórica teria sido, além de suas próprias lembranças, a leitura do escrito de Jean Genet, segundo nos informa o mesmo Art Daily: Azzawi, “que frequentemente usou referentes textuais na construção de obras, ficou profundamente comovido com o relato do massacre de 1982 do escritor francês Jean Genet, que também descreve apropriadamente a cena apresentada em Sabra e Shatila”. É como se a narrativa não jornalística de Genet – não sei se poderíamos chamá-la de poética ou literária – possibilitasse o trânsito à produção pictórica, não fotográfica ou televisada, de imagens.
Mas isso, na verdade, não é o mais importante. Essa busca ilusória por aquilo de onde provém o processo criativo não importa, sendo até mesmo um obstáculo para o conhecimento do que mais importa: a constelação comum ao escrito de Genet e à figuração de Al-Azzawi (que não pode ser concebida como adaptação pictórica do relato do escritor francês). O importante parece ser o que observa Maymanah Farhat em sua descrição do processo criativo de Al-Azzawi e seu resultado: “Esses fragmentos (ou vinhetas, melhor dizendo) estão organizados de maneira semelhante à estrutura narrativa quebrada da escrita de Genet sobre o assunto – exceto que na obra de al-Azzawi não há saída e nenhum espaço para pausa”.
Ao invés da proveniência de Massacre de Sabra e Shatila a Quatro horas em Shatila, Farhat ressalta a emergência em ambas da mesma “estrutura narrativa quebrada”, ressaltando, contudo, a diferença: os quatro quadros do painel de Al-Azzawi – dois laterais em pé, dois centrais deitados – constituem um círculo infernal, do qual não se sai, cuja visualização não tem um fim, no qual a vista não tem descanso. “Não há saída e nenhum espaço para pausa”.
A palavra de Jean Genet e a imagem de Dia Al-Azzawi são duas ruas que se entrecruzam. No poema de Mahmoud Dawish esse lugar tem um Nome: “Sabra – o cruzamento de duas ruas em um corpo”. E sabemos: esse corpo dilacerado pode chamar-se também Shatila.
O direito de cópia da imagem do quadro de Al-Azzawi pertence ao Tate Modern Museum e, assim como a do pintor, se encontra publicado em https://www.jadaliyya.com/Details/27284. A de Guernica encontra-se em https://www.infoescola.com/pintura/guernica/ e a do Violino em https://pt.wahooart.com/@@/8XYPL6-Pablo-Picasso-violino.
Emiliano Aquino é membro do Conselho Editorial de A Comuna e do Centro de Cultura Proletária (CCOP). Atualizado às 20:45 de 19/09/2020.
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