Eu sei o que a história dirá (mas isso não é um consolo)

Carlos Magno Fortaleza

Em cem anos, os livros de história registrarão o resultado de nossas escolhas. As mortes serão resumidas a frios algarismos.

Eu não quero que ninguém morra.

Isso deveria ser óbvio, mas nos dias que correm é preciso reafirmar compromissos básicos. A dificuldade de apreender a grandeza da catástrofe só pode ser entendida como um pacto coletivo de autoengano.

Ouço críticas às medidas de restrição de mobilidade. Pergunto-me se meus concidadãos não recebem notícia sobre a Alemanha, Itália, Reino Unido, Áustria e Nova Zelândia. Se não leem que Israel, Holanda e Suécia, países que apostaram inicialmente em políticas de saúde mais “liberais”, voltaram atrás e estão impondo duras ações.

Eu tenho sim empatia pelas pessoas que perdem seus empregos. Por todos aqueles que passam por privações decorrentes da pandemia. Especialmente por aqueles a quem falta oxigênio e pelos que se afogam dentro de si próprios, mesmo nas melhores UTIs. Penso: não seria o momento de exercitarmos novos parâmetros de relação social e econômica? Ou temos argumentos suficientes para deixar a saúde pública aos ventos da seleção natural?

Conheço a história das pandemias. A peste negra (século XIV) matou metade da população europeia, e um dia terminou (apesar de ter voltado várias vezes). A gripe espanhola fez mais de 50 milhões de vítimas entre 1918 e 1919. Também ela teve um fim, e novas pragas a sucederam.

Em todas essas catástrofes – fossem elas chamadas cólera, varíola, peste ou influenza – houve recomendações sanitárias. Quarentenas, isolamentos e, quando possíveis, vacinas. Houve aqueles que as apoiaram e os que deliberadamente recusaram as evidências. O livro A Bailarina da Morte , de Lília Schwarcz e Heloísa Starling, mostra o quanto a negligência e a manipulação política contribuíram para que a gripe espanhola devastasse o Brasil.

Em cem anos, os livros de história registrarão o resultado de nossas escolhas. As mortes serão resumidas a frios algarismos. Haverá capítulos cheios de notas de rodapé para que os leitores do futuro entendam conceitos de fake news , pós-verdade, robôs em redes sociais eletrônicas – e como eles afetaram nossas vidas.

A vida é agora.

Podemos fazer algo por ela. Ou escolher disseminar bravatas grosseiras na internet . Não podemos esperar o veredito da história, ainda que ele seja previsível.

Carlos Magno Fortaleza é médico infectologista e professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).

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