
“A tendência para o capitalismo de Estado foi brevemente notada por Engels no Anti-Duhring e por Bukharin e outros durante a Primeira Guerra Mundial, depois por correntes dissidentes na União Soviética, particularmente os Centralistas Democráticos, depois por Cliff, James e Dunayevskaya”.
Emiliano Aquino
Sean Purdy
Kevin Murphy é militante socialista estadunidense, historiador do movimento operário e Professor de História Russa na Universidade de Massachusetts, Boston. Durante os anos ’90 realizou pesquisa sobre as lutas dos trabalhadores de Moscou nos anos ’20, tendo acesso aos arquivos públicos russos recém-abertos. Dessa pesquisa, resultou seu livro Revolution and Counterrevolution: Class Struggle in a Moscow Metal Factory (Bergahn Books, 2005), ganhador do Prêmio Memorial Isaac e Tamara Deutscher. Tem várias artigos traduzidos e publicados em português, tais como Podemos escrever a história da Revolução Russa? Uma reposta tardia a Eric Hobsbawm, O movimento grevista pré-revolucionário na Rússia (1912-1916), Trotsky e o problema da burocracia soviética, A história da Revolução Russa de fevereiro de 1917 e As origens e os significados do stalinismo. Essa entrevista, realizada através de e-mails, foi generosamente concedida por Murphy entre os meses de março e maio deste ano. As perguntas foram elaboradas em conjunto e traduzidas por Purdy.
Você pode nos contar um pouco sobre sua própria história intelectual e política? Como você se interessou pela história da Rússia e da União Soviética? Quem foram suas influências e em quais debates você se envolveu? Como isso mudou desde então?
Entrei para os International Socialistas (Socialistas Internacionais, IS) quando era adolescente e trabalhei na indústria automobilística e depois entrei para a International Socialist Organization (Organização Socialista Internacional, ISO). Durante a década de 1970, a “Questão Russa” geralmente definia uma organização socialista – muito mais do que deveria. Assim, li os debates do Socialist Workers’ Party (Partido dos Trabalhadores Socialistas, SWP) dos EUA na New International por Trotsky, Cannon, C.L.R James, Shachtman. Eu inicialmente concordei com a análise do SWP de que a União Soviética era um coletivismo burocrático, mas depois li Cliff e Chris Harman. É uma discussão muito mais ampla do que apenas sobre a União Soviética, é realmente sobre a natureza do capitalismo no século XX. A tendência para o capitalismo de Estado foi brevemente notada por Engels no Anti-Duhring e por Bukharin e outros durante a Primeira Guerra Mundial, depois por correntes dissidentes na União Soviética, particularmente os Centralistas Democráticos, depois por Cliff, James e Dunayevskaya.
Para mim, nenhuma das várias correntes trotskistas nem aqueles que reivindicaram algum tipo de novo modo de produção poderiam explicar adequadamente a dinâmica da União Soviética e como ela se encaixava no sistema capitalista mundial. Ernest Mandel, por exemplo, afirmou após a 2ª Guerra Mundial que os Estados da Europa Oriental eram “estados tampão” capitalistas, então ele decidiu que eram Estados Operários deformados que superariam o capitalismo ocidental. Fui particularmente influenciado pelos argumentos de Harman que desafiavam os zigzagues de Mandel; ele detalhou como as indústrias estatais proliferaram a leste do Elba mesmo antes da Segunda Guerra Mundial; que na competição de armas – arena prioritária para a classe dominante – a União Soviética era igual aos EUA, mas essa priorização significava que a União Soviética estava mal preparada para competir com o capitalismo ocidental na produção de mercadorias em um sistema mundial muito mais integrado. Hoje, a maior autoridade sobre o capitalismo em suas várias formas no último século é Mike Haynes, que está escrevendo um livro fascinante sobre o assunto. Sob o regime de Putin, houve uma espécie de reversão para o capitalismo de Estado e também muitas áreas cinzentas onde a linha entre as empresas capitalistas privadas e estatais é tênue. Os especialistas que analisam isso da perspectiva de dois modos de produção muito diferentes não são muito convincentes, para dizer o mínimo.
Um refrão comum em debates sobre a história russa e soviética é a importância da abertura dos arquivos após a queda da União Soviética no final dos anos 1980 e no início dos anos 1990. Como você avalia a importância da abertura dos arquivos e como eles moldaram os debates historiográficos nos últimos 30 anos?
A revolução arquivística foi enorme porque acabou com os argumentos especulativos “revisionistas” que perpetuaram muitos mitos e mentiras stalinistas. Agora temos a prova de que Stalin foi a força motriz por trás dos expurgos, ordenando a prisão de vários milhões e a execução de 700.000. Sua assinatura é uma nas muitas listas de execução. Também sabemos agora que o impulso do regime à coletivização [da terra] foi uma violenta guerra de Estado contra todo o campesinato, que a dekulakização e a fome que se seguiu resultaram na morte de pelo menos cinco milhões de camponeses. Além disso, agora sabemos que o argumento revisionista do apoio da classe trabalhadora ao regime era falso. Sabemos que a resistência maciça da classe trabalhadora ao stalinismo reverberou em Ivanovo (sabemos disso graças a Jeff Rossman) e esses sentimentos anti-regime reverberaram em Moscou (vejam meu trabalho) e em torno da União Soviética, [como sabemos] graças aos relatórios publicados da [polícia secreta] OGPU para Stalin. Os socialistas que abordamos o stalinismo de forma crítica, quaisquer que sejam as diferenças que possamos ter, fomos justificados pela história. Os documentos estão todos lá – devemos ser bastante tolerantes com as questões de interpretação, mas não com os fatos. Para aqueles que estão em negação, podemos apenas apontá-los para a montanha esmagadora de evidências arquivísticas e encorajá-los a alcançá-los.
Os debates na academia foram amplamente marginalizados em áreas específicas de especialização como os expurgos, a coletivização e assim por diante. Infelizmente, questões interpretativas maiores, como o desenvolvimento do stalinismo, raramente são discutidas – apenas alguns historiadores desafiaram o que o falecido Stephen Cohen chamou de “a tese da continuidade”, a noção de que a Revolução de 1917 levou inexoravelmente ao stalinismo. O estudo mais espetacular publicado desde a abertura dos arquivos é The House of Goverment (2017) de Yuri Slezkine, um estudo sobre duas décadas da elite soviética. No entanto, a estrutura intelectual de Slezkine é descrever os bolcheviques como uma seita religiosa. Mais de vinte estudiosos proeminentes leram o manuscrito, mas aparentemente nenhum deles alertou Slezkine sobre os problemas com esse clichê banal.
As áreas mais impressionantes da pesquisa acadêmica, na minha opinião, têm sido os estudos de coletivização (Lynne Viola), nacionalismo (Ronald Suny e Terry Martin) e várias biografias impressionantes, particularmente os estudos de William Taubman sobre Khrushchev e Gorbachev, que nos dão uma visão sem precedentes das maquinações no interior da liderança soviética. Obviamente, temos que abordar todos os novos estudos de forma crítica, mas agora há muito mais dados empíricos. No entanto, ainda existem lacunas enormes. Foi muito negativa a influência pós-moderna sobre a história russa e soviética, privilegiando tópicos obscuros como automóveis soviéticos e turismo ao invés de análises sobre a classe trabalhadora e questões interpretativas sobre o stalinismo. Desde que os arquivos foram abertos, nenhum estudo inovador da Revolução de 1917 foi publicado e muito pouco sobre a classe trabalhadora soviética (Jeffrey Rossman, Donald Filtzer e eu somos exceções) e, em particular, as mulheres da classe trabalhadora. Estudiosos russos publicaram muitos estudos importantes: o mais interessante para mim foi o estudo de Elena Zubkova sobre a União Soviética após a guerra e a pesquisa de Alexei Gusev sobre vários oposicionistas durante as décadas de 1920 e 1930. Gusev está liderando uma equipe de pesquisa que está analisando os papéis trotskistas recém-descobertos encontrados nas tábuas do assoalho do Gulag do Alto Ural, um material muito fascinante.
Segundo você nos diz, pelo menos parte desses arquivos se constitui de “relatórios publicados pela OGPU para Stalin”. Como você avalia a função para o regime stalinista desses relatórios, dessas informações aparentemente precisas e sobre amplos aspectos da vida política cotidiana? A existência desses dispositivos de controle dos acontecimentos por meio de relatórios e registros revela o que do regime stalinista, mostra o que de sua natureza política e do poder pessoal de Stalin?
Os relatórios da polícia secreta são extremamente valiosos como fontes de nosso conhecimento de resistência e sentimentos populares, especialmente na década de 1920. Escrevi um artigo sobre a atividade de greve durante este período com base em uma análise sistemática dos relatórios detalhados (Kevin Murphy, Greves no início do período soviético, de 1922 a 1932: da militância à passividade da classe operária? São Paulo: Zazi Edições, 2020). Fiquei surpreso ao descobrir que, de 1925 a 1927, menos de um por cento das greves foram resolvidas com a prisão de trabalhadores e quase metade de todas as greves (45 por cento) foram resolvidas pela administração cedendo às demandas dos trabalhadores. Isso corresponde à noção de um “contrato social” durante a NEP, no qual os trabalhadores e o Estado chegaram a um compromisso nas relações laborais. O stalinismo quebrou este acordo e transformou os sindicatos de trabalhadores em órgãos de produtividade. No entanto, muitos trabalhadores resistiram ao stalinismo, principalmente as trabalhadoras têxteis, mas também as trabalhadoras camponesas sazonais, as operárias mais militantes que fizeram greves repetidas no final da década de 1920. O que achei interessante nos relatórios da OGPU foram os resumos regulares sobre as atitudes simpáticas dos trabalhadores à resistência maciça dos camponeses à coletivização. O regime stalinista estava claramente apavorado com uma verdadeira “smychka” (aliança) entre trabalhadores e camponeses resistindo às suas políticas.
O problema com os relatórios da OGPU é que eles se tornam cada vez mais histéricos à medida que entram na década de 1930. Oposicionistas, kulaks, agentes estrangeiros estão supostamente espreitando por toda parte e são a causa de todos os problemas – a polícia secreta acreditou em sua própria retórica. Isso diz muito sobre a dinâmica de “rede cada vez maior” do terror stalinista, mas, como fonte de informações precisas, torna-se problemática. Muitas vezes fui enganado por relatos de greves e atividades oposicionistas em 1933 e 1934. Esses são relatos falsificados: em 1933 praticamente todos os oposicionistas foram encarcerados nos Gulags, no exílio ou capitularam ao stalinismo.
Vários autores marxistas, de orientações teóricas distintas, utilizaram o conceito de totalitarismo ou Estado totalitário para qualificar politicamente a URSS. Depois dos estudos sobre o regime nas últimas décadas, como você considera a validade desse conceito?
Totalitarismo é um termo que o marxista deve evitar. Victor Serge, um dos maiores oponentes do stalinismo, foi um dos primeiros marxistas a usar esse termo, semelhante ao uso do rótulo impreciso de “coletivismo burocrático”. Hannah Arendt e muitos estudiosos da Guerra Fria usaram o totalitarismo após a Segunda Guerra Mundial para tentar ilustrar as supostas semelhanças entre os sistemas nazista e soviético. Claro, durante a guerra eles evitaram usar tal terminologia, só depois eles utilizaram o mesmo modelo teórico, literalmente trocando o soviético pelo nazista. O totalitarismo enfatiza o poder do Estado e do terror em pulverizar e até atomizar a sociedade. Essa ruptura omite a possibilidade de resistência, mas agora sabemos de muitas rebeliões em massa sob Stalin e Khrushchev.
Tony Cliff parece ter sido um dos primeiros, embora não o único, a chamar a atenção para a função econômica – do ponto de vista da acumulação primitiva do capital na Rússia – do trabalho escravo no sistema Gulag de campos de trabalho forçado. No atual estágio de pesquisa historiográfica sobre a Rússia dos anos 30-40, como você enxerga o peso desse trabalho judicialmente forçado no desenvolvimento econômico da Rússia nesse período?
Alguns estudiosos afirmaram que o trabalho escravo do Gulag era um aspecto central do sistema stalinista. Acho que devemos ter um senso de proporção, caso contrário, estaríamos discutindo escravidão de estado ao invés de capitalismo de estado. Em seu auge (1953), o sistema Gulag tinha 2,5 milhões de internos, o que era realmente horrível, mas empalidece em comparação com a classe trabalhadora soviética. Durante o processo de acumulação primitiva da década de 1930, a classe trabalhadora soviética quase triplicou de tamanho para cerca de 30 milhões, a maioria jovens camponeses fugindo dos horrores nas fazendas coletivas. Foi a exploração dessa força de trabalho mal paga e não qualificada que foi fundamental para o desenvolvimento do sistema stalinista.
Como você explica o ressurgimento de stalinismo em alguns setores da esquerda nos tempos de hoje?
O ressurgimento do stalinismo como alternativa entre setores da esquerda internacionalmente está parcialmente enraizado na ascensão da extrema direita, com Stalin historicamente visto como um líder obstinado contra o fascismo. A política do Comintern rejeitou frentes únicas com partidos social-democratas porque, como Stalin argumentou, “o fascismo é a organização de luta da burguesia apoiada no apoio ativo da socialdemocracia. A socialdemocracia é efetivamente a ala moderada do fascismo”. O resultado de tais políticas foi trágico, especialmente na Alemanha. Na última eleição livre, em novembro de 1932, os nazistas receberam 11,7 milhões de votos, menos do que o total combinado dos comunistas (6 milhões) e do SDP (7,2 milhões). Em poucos meses, os principais líderes comunistas foram presos, o Partido Comunista (KPD) foi declarado ilegal e as instituições democráticas da república de Weimer foram liquidadas. Portanto, se examinarmos a história do stalinismo, se lermos os escritos de Trotsky sobre a luta contra o fascismo, a conclusão é exatamente o oposto da descrição heróica ingênua – as políticas de Stalin realmente pavimentaram o caminho para a vitória dos nazistas na Alemanha. Os socialistas deveriam acolher uma discussão honesta sobre a ascensão do fascismo na década de 1930 e as políticas do Comintern e deveriam se engajar em questões interpretativas com aqueles que discordam de nós. Mas, infelizmente, grande parte da discussão sobre o stalinismo continua a ser manchada por distorções gritantes e espantosa ignorância sobre o que realmente aconteceu.
Sean Purdy é Professor de História dos Estados Unidos na Universidade de São Paulo (USP) e militante independente no PSOL. Emiliano Aquino é Professor de Filosofia na Universidade Estadual do Ceará (UECE) e membro do Conselho Editorial de A Comuna.