Por Mário Maestri
Em 24 de fevereiro, sexta-feira, completou-se um ano do ingresso das tropas russas na Ucrânia e o início do confronto naquele país entre a Rússia e a Otan, sob a direção intransigente dos Estados Unidos, com o apoio geral da União Europeia, com destaque para a Inglaterra e a Polônia. Trata-se de um bom momento para discutirmos as raízes do conflito militar; os principais sucessos desse 365 dias de confronto e tentarmos alguns prognósticos sobre os desdobramentos desses sucessos, a médio e a longo prazo.
As raízes mais diretas do conflito são antigas. Em 1989-91, a dissolução da URSS e a restauração do capitalismo nos países de economia nacionalizada e planejada permitiram o avanço militar, através da Otan, do imperialismo estadunidense e europeu sobre antigas repúblicas populares do Leste da Ucrânia e nacionalidades que haviam integrado a URSS. Tudo desobedecendo as promessas feitas pelo governo estadunidense à Rússia, quando da explosão da URSS.
Com as tropas e ogivas atômicas da Otan encostadas às fronteiras russas, não restaria a Moscou outra saída do que a rendição e o retorno aos tempos de Yeltzin (1991-1999), ou coisa pior. O objetivo imperialista era radicalizar a dissolução nacional da Rússia, para proceder a uma literal colonização globalizada das riquíssimas terras agrícolas e dos fabulosos recursos em matérias-primas dessas regiões da Euro-Ásia. Uma provável ocupação e gestão neofascista de perfil ainda indeterminado. Algo semelhante, talvez, a gestão atual do Haiti ou, no passado recente, do Afeganistão.
Um Reino Contestado
Em 1989-1991, a chamada “Queda do Muro” parecia inaugurar a promessa do “Novo Século Americano”, com o domínio absoluto dos USA sobre o mundo, secundado por seus aliados domesticados. Entretanto, o homem põe e deus dispõe. A China se metamorfoseou de quintal privilegiado das inversões do capital mundial em dinâmica nação imperialista e a Rússia empreendeu recuperação capitalista, em busca de autonomia nacional, ainda que relativa. Esses movimentos puseram um bastão na roda dos planos de colonização da Euro-Ásia e interromperam o unipolarismo ianque, no contexto da crescente perda de hegemonia mundial dos USA em relação à China.
Reagindo à nova realidade, o grande capital imperialista estadunidense reconheceu a China como a principal ameaça ao seu domínio sobre o mundo. E aceitou a atual impossibilidade de vencer um confronto direto ou indireto com a China e a Rússia unidas, em um momento em que as duas nações estreitavam laços de todos os tipos, para se protegerem do mesmo inimigo. Em consequência, o imperialismo estadunidense optou por vergar militarmente a Rússia, por primeiro, para a seguir, realizar a mesma operação contra a China, possivelmente com uma provocação em Taiwan.
O conflito na Ucrânia busca materializar a primeira etapa da estratégia geral do imperialismo estadunidense na busca da recuperação e consolidação da hegemonia sobre seus inimigos, seus aliados e o mundo. Objetivo apenas possível pela via armada já que o dinamismo do imperialismo chinês não é a causa da estagnação da economia estadunidense, tendo apenas iluminado a decadência ianque. A perda de vitalidade do imperialismo estadunidense nasce das entranhas de seu modo de produção e de sua formação social em crise, na era senil do capitalismo. Enfermidade degenerativa que tem como única solução, por um médio e longo prazo, a rapinagem ininterrupta de crescentes espaços sócio-geográficos mundiais.
O cerco militar da Rússia pelos USA e a Otan avançou em direção de sua conclusão com a promoção da “revolução colorida” ucraniana de fevereiro de 2014. A vitória daquele golpe de Estado entregou uma enorme população e região, com longas fronteiras com a Rússia, a um governo títere pró-imperialista e extremista de direita. Controlando o governo da Ucrânia, o imperialismo passou a preparar o seu ingresso na União Europeia e a rearmá-la fortemente, já articulada nos fatos com a Otan.
O golpe de Estado pró-imperialista na Ucrânia supunha inevitável resposta defensiva de Moscou, que se deu através da recuperação da Crimeia, de população de língua e cultura russa dominante, historicamente parte da Rússia, e o apoio às repúblicas populares de Donbass, Donetsk e Lugansk, com em torno de cinco milhões de habitantes. O sul da Ucrânia –Novaya Russia– é povoado por uma população em maioria de fala e cultura russa, que passou a conhecer uma forte repressão não apenas cultural por parte do novo governo de Kiev.
Construindo uma Identidade
A nova ordem ucraniana pró-imperialista e de extrema-direita empreendeu a construção de identidade nacional calcada na russofobia. Foi elemento central dessa literal invenção da nova identidade a tradição romantizada da ocupação da Ucrânia soviética pelos alemães, durante a II Guerra, apoiada amplamente por milícias ucranianas nazistas e filo-nazistas. Stefan Bandera (1909-1959), o líder do colaboracionismo ucraniano com o nazismo, responsável por terríveis massacres contra ucranianos de raízes judias e polonesas, foi e continua sendo cultuado por Kiev. Em torno dessa tradição foram criadas as milícias Azov e outras declaradamente neonazistas.
Também as populações ucranianas de fala e cultura russa do sul ucraniano, coração da industrialização do país na era soviética e centro da resistência à ocupação nazista, conheceram sucessivos e terríveis massacres promovidos pelas milícias ucranianas colaboracionistas. O que motivou, em 2014, amplas insurreições populares e operárias contra o golpe de Estado e a nova ordem, com o surgimento das Repúblicas Populares de Donbass, ancoradas, ao contrário, em recordações positivas da Era Soviética.
Procurando uma estabilização e solução negociada da nova situação, a Rússia promoveu os tratados de Minsk I e II, de 5 de setembro de 2014 e 11 de fevereiro de 2015, assinados pelo novo governo ucraniano, que tiveram como garantes a França e a Alemanha. Angela Merkel e François Holande, que referendaram por seus países aqueles acordos, nos últimos meses, reconheceram impudicamente que, com eles, pretendia-se dar mais tempo para o armamento de Kiev a fim de empreender a tentativa da recuperação total das repúblicas de Donbass e da Crimeia. Ou seja, havia a clara decisão de Otan e dos USA de servirem-se da Ucrânia para atacar a Rússia.
Desde 2015, prosseguiram incessantes ataques contra as repúblicas populares do Donbass e outras iniciativas de assédio contra Moscou, que reivindicava incessantemente, sem qualquer resultado, discussão geral sobre medidas que garantissem a segurança da Rússia e da Europa. A consigna geral dos políticos e generais dos USA e da Otan era “Delenda est Rússia”.
Operação Militar Especial
Em 24 de fevereiro de 2022, infantaria e tropas russas mecanizadas ingressaram no território ucraniano, procurando cercar a capital Kiev. Tem sido criticada, à saciedade, a inconsequência militar, tático-estratégico dessa operação. Em geral se lembra que não se ocupa cidade de quase três mil habitantes, a população da Grande-Porto Alegre, sem realizar um banho de sangue e, sobretudo, com escassa infantaria, mesmo com um significativo número de tanques, arma imprópria ao combate urbano.
Jamais houve intensão de ocupar Kiev e muito menos a Ucrânia como um todo, como tem sido proposto. A operação militar tinha um objetivo diplomático. Ela buscava obrigar o governo de Kiev a uma negociação que tinha como pauta central o reconhecimento da incorporação da Crimeia à Rússia, a independência das repúblicas de Donbass, que acabavam de ser reconhecidas como Estados independentes por Moscou, e o retorno da Ucrânia ao seu tradicional status de neutralidade. Nada disso comprometia a autonomia e a situação territorial então vigente da Ucrânia.
As negociações iniciadas em 28 de fevereiro, na Bielorrúsia, e retomadas, em 29 de março, na Turquia, foram torpedeadas sem dó pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, decididos a aproveitar a oportunidade para dessangrar a Rússia, lutando, se fosse necessário, até a última gota de sangue ucraniano, o que têm sido feito até agora. Volodymyr Zelenski, comediante televisivo, optou por se transformar em artista global, sob o papel de comandante militar patriótico, mesmo à custa da destruição de seu país. À frente de um governo fantoche e profundamente corrupto, não possuía qualquer autoridade para enfrentar o rolo compressor de Washington e Londres.
Lula ama Zelensky e a China quer a Paz
Desde então, não houve qualquer iniciativa real de paz, para além das operações midiáticas, como a da Itália, que participa com destaque do financiamento da ofensiva da Otan contra a Rússia. Ou a proposta aparentemente ingênua de Lula da Silva, com o objetivo para lançar cortina de fumaça sobre o abandono do Brasil do bloco de países neutros, ao votar na ONU pela condenação da Rússia, promovida pelo imperialismo estadunidense e pela Otan. Ação procedida de reunião televisiva com Zelensky. O Brasil foi o único participante do Brics a votar contra a Rússia na ONU.
A iniciativa chinesa de paz constitui, nos fatos, uma proposta de trégua e de negociações, apontando para um eventual congelamento do conflito. Proposta bloqueada, nos fatos, por além das declarações retóricas, por Zelensky, boneco de ventríloquo dos USA e da Otan, que exige como condição mínima para negociação uma rendição total da Rússia. Ou seja, uma fantasiosa entrega da Crimeia e de todos os territórios da Nova Rússia liberados, para um governo fascistizante que interdita qualquer oposição política de fato e promete limpeza étnica dos territórios ucranianos da língua, de costumes e de populações de origem russa.
A proposta de paz da China preocupa enormemente os USA. Ela pode ser um forte elemento de pressão pelo fim de um conflito que lhe causa perdas econômicas. E, mais ainda, pode se tratar da ante-sala de uma mudança substancial do comportamento chinês sobre a guerra. Sobre essa questão, voltaremos a seguir.
Um Indiscutível Erro de Avaliação
É indiscutível o erro de avaliação dos serviços russos de informação sobre a factibilidade da operação de cerco e pressão sobre Kiev para que o governo ucraniano negociasse acordo de neutralidade e reconhecimento da situação da Crimeia e das Repúblicas Populares de Donbass. O que ensejou um enorme fracasso político para a Rússia, com sérias perdas de material e de tropas, sobretudo de paraquedistas, helicópteros e aviões, quando da tentativa, em 24 de fevereiro, de ocupação do aeroporto perto de Kiev.
A Rússia, que avançara operação militar limitada para forçar o recuo do cerco e assédio do país pelos USA e pela União Europeia e o retorno da Ucrânia à neutralidade, terminou enfrentando uma resistência e ataque geral indireto promovido pelo imperialismo ianque e seus aliados europeus no território ucraniano. Confronto para o qual Moscou se preparava havia muito tempo, ao compreendê-lo como inevitável, sem possivelmente esperar enfrentá-lo naquele momento.
Um movimento russo de defesa contra a pressão que apenas crescera com o passar das décadas foi apresentado pela grande mídia e governos imperialistas estadunidenses e europeus como uma agressão de Putin para conquistar a Ucrânia, por ambições hegemônicas e territoriais. Nos USA e na Europa, foi descrito como um ataque traiçoeiro de uma nação imperialista eslava, a um país semi-desprotegido. O que exigia resposta dura dos países democráticos ocidentais unidos na Otan, organismo proposto como essencialmente defensivo.
A apologia da russofobia justificou a interrupção não raro estatal de toda crítica à ação da Otan e apresentação das explicações russas das causas do conflito. A intoxicação anti-russa chegou às raias do ridículo com o ataque e atos e propostas de proibição de compositores e autores clássicos russos do século 19! O objetivo, muitas vezes confessado, era destruir de uma vez por todos a milenar ordem “autocrática russa”, agora sob o comando de Putin, o tzar do século 21, o chupa-cabra da vez da grande mídia imperialista.
Em abril, as tropas russas, atolada em um cerco de Kiev já sem qualquer sentido, pois cerradas as portas às negociações, tomou uma nova direção. Elas deslocaram-se para o sul da Ucrânia, em direção dos territórios das Repúblicas de Donbass e da Novaya Russia. Nessa segunda fase da guerra, as tropas russas obtiveram conquistas territoriais significativas, com a libertação parcial de Donetsk e total de Luhansk e de todo o litorais do mar de Azov e de parte do mar Negro, assim como de regiões ao longo da fronteira russo-ucraniana.
Tropas Diminutas
No geral, mesmo modificando a orientação militar, Moscou manteve o perfil inicial da sua ofensiva, definida como uma “operação extraordinária” e não uma guerra contra a Ucrânia. Tratava-se de uma iniciativa que envolvia tropas limitadas, com a participação destacada da milícia privada Wagner, de soldados tchechenos, etc. Durante toda essa primeira parte do conflito, as tropas russas serviram-se sistematicamente da enorme superioridade da sua artilharia, de seus recursos missilísticos e de sua força aérea para causar enormes baixas às tropas ucranianas, com perdas extremamente diminutas.
Calcula-se que as tropas russas, somadas às das repúblicas separatistas, não superavam os 170 mil homens, com tropas das forças armadas e da defesa territorial ucranianas, na ativa e na reserva, em torno de 900 mil homens. O perfil da operação era determinado pela própria natureza atual das forças armadas russas. Após a debacle de 1991 e a Era Yeltzin, com os recursos reduzidos, procedeu-se uma radical redução quantitativa das forças armadas, conjugada a um importante modernização tecnológica. O governo russo se dava, assim, tropas ágeis, super-treinadas e aparelhadas, destinadas a enfrentarem intervenções limitadas.
Desde o início dos combates, o objetivo militar russo foi o esgotamento e a destruição das tropas ucranianas, caminho para uma posterior conquista e defesa de territórios. Objetivo que, como também veremos, parece estar se concretizando. Ao contrário, o governo de Kiev é obrigado a lançar incessantes ofensivas pontuais, muitas delas sem qualquer objetivo ou estratégia militar, para manter as populações do país e sobretudo das nações europeias na proposta certeza de uma próxima vitória final, pouco inexequível.
Em agosto de 2022, o armamento massivo exterior da Ucrânia e um forte esforço de recrutamento permitiram importante ofensiva ucraniana, com as tropas russas recuando e entregando territórios não estratégicos para não encetar, sem tropas de reserva, um embate que lhe motivaria muitas baixas. Apesar de recuperar importantes territórios, sob o permanente ataque da artilharia russa, os batalhões de assalto ucranianos, treinados a toque de caixa, teriam sofrido milhares de baixas.
A Rússia se Prepara para a Guerra
A modalidade de modernização tecnológica de tropas profissionais restritas mostrou-se não funcional a um confronto de tropas nacionais crescentemente simétricas. Segundo parece, sob pressão, em setembro de 2022, Putin e o alto comando russo decidiram convocação parcial de trezentos mil reservistas, que passaram a ser treinados intensivamente, antes de serem enviados para a frente de combate. O que registra o caráter então limitado das tropas russas. As poucas baixas e o uso das tropas profissionais garantiram um amplo apoio inicial da população russa à operação. A convocação de reservistas e baixas mais elevadas motivarão uma maior tensão na sociedade e oposição à guerra, ainda que limitadas. Em verdade, segundo um levantamento idôneo realizado de 21 a 28 de fevereiro, com margem de erro de dois pontos para mais ou menos, 2023 registra um aumento do apoio à guerra entre a população – 77%. Reagindo ao aprendido na Ucrânia, a Rússia prevê um aumento de 30% de suas tropas regulares.
Em resposta à passada ofensiva ucraniana, a Rússia realizou e segue realizando campanha de ataques cirúrgicos, com mísseis e drones sobretudo, dos meios de transporte ferroviários e do complexo eletricitário ucraniano, neutralizando a economia do país, seu sistema de transporte, o fornecimento de armas e sobretudo de munição das áreas de combate. Essa operação se associa à destruição sistemática das tropas e das eventuais reservas de combatentes ucranianos. Referendos sancionaram a incorporação de Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporizhzhia, ainda não totalmente controlados, aos territórios russos, cerrando a possibilidade de sua devolução à Ucrânia.
Nos últimos meses, a situação militar desequilibrou-se novamente em favor da Rússia, com as tropas aumentadas e fortalecidas pelos reservistas, que em geral ainda não entraram em combate; com as suas necessidades em munição e armamento abastecidas incessantemente pelas reservas da antiga URSS e a indústria bélica estatal russa (reservas que os serviços secretos estadunidenses e ingleses afirmaram que estariam esgotadas há meses). O que tem permitido a retomada da ofensiva russa, com algumas pequenas vitórias, o cerco quase final da cidade estratégica de Bakhmut, e uma quase certa ofensiva geral para a primavera.
Sobretudo, a economia russa mostrou inesperada resiliência às sanções gerais do ocidente e as interrupções das trocas comerciais impostas pela União Europeia e os Estados Unidos, que esperavam pôr por terra a economia russa em alguns poucos meses. Esperava-se uma queda do PIB em 2022 superior ao 10% e ela foi de 2,2% – o mesmo recuo esperado para 2023, segundo o FMI. As reservas russas são imponentes e sua dívida internacional, pequena. O fracasso do cerco econômico à Rússia deveu-se, sobretudo, a uma inesperada decisão de uma grande quantidade de países extra-europeus de não se incorporarem às sanções imperialistas, seguindo comprando sobretudo o petróleo e o gás russos. Com destaque para a China e a Índia, nações continentais, de insaciável sede de combustíveis.
Morrer pela Otan
Ao contrário da Rússia, a Ucrânia encontra-se exangue. Seu exército foi destruído e reconstruído diversas vezes. O voluntariado inicial de nacionalistas, neonazistas, aventureiros e extremistas internacionais esgotou-se sob a chuva da artilharia russa. As tropas militares profissionais foram dizimadas nos primeiros meses. Os quase 44 milhões da população ucraniana encolheu com a maciça fuga para o exterior e a ocupação russa de boa parte do sul do país. Tropas de jovens com poucas semanas de treinamento, literalmente caçados no país, são enviadas para uma morte quase certa, crescendo o número de desertores.
A idade mínima e máxima para a convocação ao serviço militar foi abaixada e aumentada, respectivamente. Discute-se a possibilidade inverossímil de obrigar as dezenas de milhares de jovens e adultos em idade militar refugiados na União Europeia a retornarem à força para irem morrer na frente de combate. Aumenta o número sobretudo de poloneses nos serviços de apoio e como voluntários nas tropas ucranianas, onde poucos acreditam em possibilidade de vitória.
A grande mídia ocidental celebra o anúncio do envio de tanques Leopards e Abrams, nos próximos meses, pouco funcionais ao combate em curso, de impossível manutenção e conserto na frente de combate, como capazes de virar o jogo em favor dos ucranianos. Em verdade, para tal, seriam necessário milhares de tanques, de aviões, de mísseis de longa distância, treinamento de dezenas de milhares de soldados no exterior, etc. para reequilibrar o confronto.
Em 5 julho de 1943, na batalha de Kursk, na Rússia, próxima à fronteira Ucraniana, na II Guerra, os alemães atacaram os russos com 2.700 tanques. A Otan promete em torno de trezentos tanques, ao longo de 2023. O treinamento básico para manejar o Leopoard II é de dois meses e meio. A Otan propõe aprontar os ucranianos em um mês e mandar combater tanquistas russos com longos meses e anos de preparação. Prometem igualmente preparar a toque de caixa mecânicos ucranianos capazes de manter em funcionamento essas máquinas refinadas.
A Derrota da Alemanha
A promessas de Leopards II, Abrams, mísseis de maior alcance, aviões, etc. procuram, por um lado, galvanizar as desmoralizadas tropas ucranianas, que perigam entrar em dissolução, e, por outro, seguir encantando com a promessa de vitória próxima e total a população estadunidense e europeia, vergastada por inflação que corrói os salários e o custo de vida, tudo explicado como resultado da invasão da Ucrânia por Putin.
Entretanto, até agora, a operação imperialista Usa alcançou em forma indiscutível alguns sucessos. Os pouco mais de 73 bilhões de dólares, enviados sobretudo sob a forma de armas, são em enorme parte empréstimos ou doações à Ucrânia que não saem dos USA, alimentando a indústria bélica do país. Sobretudo, os USA realizaram verdadeira descontração da economia europeia a seu favor, pondo fim à era de energia barata, possibilitada pelas importações de gás e de petróleo russos. O que obriga a Europa a comprar, a preço mais elevado, o gás e o petróleo estadunidenses. A diferença do preço da energia está determinando uma deslocalização industrial tendencial da Europa em parte em favor dos USA.
Sobretudo, os USA obrigam a Alemanha, a locomotiva econômica e industrial europeia e mundial, ocupada desde a II Guerra por tropas estadunidenses, a um verdadeiro harakiri, ao romper laços com a economia russa. Washington já não mais necessita temer o surgimento de uma “Terceira Via”, ou “Terceira Potência Mundial”, ao lado dos USA e da China, com uma colaboração íntima e complementar entre a Rússia e a Alemanha. Projeto por anos perseguido por Putin, acolhido por inércia benevolente por Angela Merkel e pelo grande capital alemão, mas vetado terminantemente pelo imperialismo ianque. Essa aliança poria fim, possivelmente sem qualquer conflito, à hegemonia estadunidense. Apenas ao ver fechada a porta dianteira europeia, a Rússia se dirigiu à saída dos fundos, a China.
E se a China Entrar na Guerra?
O futuro da guerra da Ucrânia está em aberto. O peso do financiamento do Estado e guerra ucraniana cresce a cada dia. A Europa aprofunda-se na crise econômica, social e política, com a tendência do crescimento da oposição ao financiamento do conflito externo. A mesma tendência se consolida nos USA, onde cai o desemprego, mantém-se a inflação -7%-, e cresce a taxa básica de juros -4,5-. O que fará aumentar o desemprego. Tudo com eleições presidenciais previstas para 2024, com a esperança dos democratas de enfrentá-las com uma vitória e o terror de chegarem a ela com uma derrota.
A Rússia parece não ter maiores problemas em enfrentar mais um ano de guerra, sobretudo apoiada pela China, se necessário. O que não parece ser possível sobretudo para a Europa e para os USA. E, ainda mais, para a Ucrânia. O imperialismo estadunidense parece apostar no fornecimento de armas modernas, com destaque para mísseis de medio alcance, capazes de atingir os territórios da Rússia, para forçá-la a concessões. E promete, para as populações ucraniana, europeia e estadunidense, uma ofensiva de Kiev na primavera. A iminente conquista russa da cidade estratégica de Bakhmut assinala o caráter mais do que improvável dessa ofensiva.
Tudo aponta para que os USA, negando-se a aceitar uma eventual vitória russa, empreendam uma aceleração e um transbordamento do conflito, através da intervenção semi-direta e a seguir direta de tropas da Otan -sobretudo polonesas-; da extensão geográfica do conflito à Bieolorrúsia; do bloqueio de Kaliningrado; do bombardeamento ucraniano de territórios russos, etc. Se tiver as condições políticas para tal. A radicalização da guerra aprofundaria a crise econômica em que o mundo mergulha. Algo que desagrada, profundamente, como vimos, a China.
Uma Oportunidade única
Uma intervenção mais proativa da China na guerra, ao lado da Rússia, se daria em situação de fragilidade militar relativa dos USA e da Otan, incapazes de vergar as tropas russas após um ano de confronto. Uma oportunidade talvez única para que a China intervenha, também em forma indireta, no conflito, apoiando a Rússia em forma crescentemente enfática, através do fornecimento de armas, no apoio econômico e industrial, etc.
Como os USA usam a Ucrânia para debilitar a Rússia, a China, sob o assédio crescente estadunidense, poderia, eventualmente, servir-se do conflito, sem participar dele diretamente, para levar o imperialismo ianque e a Otan a uma derrota que aliviaria, talvez por anos, a pressão que exercem sobre o antigo “Império do Meio”. Uma operação que, no melhor dos casos, permitiria enfrentar a questão da ilha de Formosa em melhor posição, com os USA debilitados externa e internamente por um fracasso na Ucrânia.
Atualmente, o governo Biden tem ameaçado a China com duras sanções no caso de apoio militar à Rússia, que reconhece não se materializou até agora. O que pode tratar-se de movimento de intimidação procurando prevenir um eventual ativismo chinês, que se daria, eventualmente, após fracassar a proposta de paz chinesa, que os USA e a Otan se negam a aceitar. Possivelmente a direção chinesa discute o custo-benefício de apoiar mais firmemente a Rússia, ultrapassando a “grande linha vermelha” imposta por Biden, para abandonar a posição até agora defensiva diante do imperialismo ianque, em difícil situação na Ucrânia
A Esquerda e a Guerra na Ucrânia
A grosso modo, a esquerda que se reivindica do marxismo tem se dividido entre três posições: o apoio incondicional ao imperialismo estadunidense, como defesa à Ucrânia agredida pela Rússia; uma defesa incondicional da Rússia, sem preocupação com os desdobramento posteriores do conflito; a proposta de “derrotismo revolucionário”, devido ao caráter inter-imperialista da guerra.
O apoio à ação imperialista contra a Rússia tem sido justificado pela defesa de uma agressão da Ucrânia pela Rússia imperialista, com objetivos de conquista territorial e econômica. A definição, no sentido leninista, da Rússia como Estado imperialista, tem sido meramente declarativa. Procede-se sobretudo como se a história tivesse iniciado em 23 de fevereiro de 2022 e a Rússia não sofresse há décadas a pressão do imperialismo ianque e de seus aliados.
Não raro, essa posição constitui continuação de uma apoio sistemático e automático a outras ações imperialistas que antecederam e sucederam-se à própria dissolução da URSS e à restauração capitalista nas “Repúblicas Populares”. Nas últimas décadas, não poucas organizações reivindicando-se do marxismo-revolucionário que agora apoiam a resistência ucraniana, apoiaram os ataques imperialistas à Iugoslávia, à Sérvia, ao Iraque, ao Irã, à Cuba, à Venezuela, à Síria, à Líbia, etc.
Revolução Fantasmagóricas
No Brasil, essas organizações apoiaram em forma mais ou menos aberta o golpe de 2016 no Brasil, defendendo-o como disputa inter-burguesa, crise do governo petista, etc. e não como ataque à população e à nação brasileira. O apoio à agressão imperialista da independência e das populações das nações agredidas é apresentado como defesa de “revoluções” e “movimentos” populares fantasmagóricos contra ditadores e regimes ditatoriais sanguinários. Após os sucessos, silencia-se absolutamente sobre os resultados das eventuais vitórias totais e parciais das operações imperialistas.
A colaboração consolidada, não raro por longas décadas, com o imperialismo e a contra-revolução não pode ser definida como um simples erro de interpretação política. Impõe-se a discussão a respeito das bases políticas, ideológicas e sociais sobre as quais ela se assenta. Ela certamente expressa posição conservadora de importantes setores “democráticos” das classes médias.
E trata-se, igualmente, de um comportamento que abre um largo espaço para um financiamento imperialista da ação dessas organizações. Financiamento logicamente não direto, mas através de múltiplas mediações – aceitar contribuições de “organizações democráticas” para apoiar politicamente a “resistência popular” em Cuba, na Nicarágua, na Líbia, na Síria, na Ucrânia, etc. Apoios justificados como financiamento do “partido” ou de “organizações” que se autoproclamam revolucionárias.
Entre Putin e o “Derrotismo Revolucionário”
Não raro, para alguns partidos e organizações, o direito de defesa nacional da Rússia, sob o assédio permanente e crescente do bloco imperialista ianque, se confunde com uma defesa acrítica da ordem putinista. A eventual vitória russa é igualmente apresentada como a ante-sala de uma nova era de equilíbrio mundial multilateral. O direito de defesa do Estado nacional russo não dissolve o caráter conservador e contra-revolucionário da ordem capitalista russa, sob a direção de Putin, e o prosseguimento, após o fim da guerra, dos conflitos mundiais inter-imperialistas.
Tem sido também defendido a consigna do “derrotismo revolucionário”, isto é, o abandono das armas pelos soldados russos e ucranianos. Oblitera-se o fato que a realidade atual é qualitativamente diversa à da I Guerra Mundial, quando Lenin levantou essa genial palavra de ordem contra uma guerra inter-imperialista. Naquele então, abria-se uma Era Revolucionária, com forte impulsão revolucionária e partidos operários marxistas em praticamente todas as grandes nações europeias – Rússia, Alemanha, França, Itália, Áustria, etc. E havia a certeza que a guerra mundial aprofundaria a crise social e política.
Atualmente, ingressamos, há décadas, em era conservadora, sob o forte avanço da contra-revolução, sem que exista na Rússia, na Ucrânia, na Europa ou no mundo, partido operário revolucionário de alguma expressão. E a guerra na Ucrânia não é uma guerra inter-imperialista. É, ao contrário, uma agressão contra a independência nacional da Rússia, terceirizada pelos USA e pela Europa imperialista. O “derrotismo revolucionário” não pode ser visto como uma chave mestra a ser usada em todas e quaisquer situações. Foi uma elaboração nascida da tal análise concreta de uma situação concreta
Um confronto mundial
A esquerda que se reivindica do marxismo, em especial a do Brasil, enfrenta os sucessos atuais na Ucrânia como um fenômeno sobretudo regional. Quando muito, alerta para uma mais do que improvável aceleração do conflito com uso de armas atômicas estratégicas. Não equaciona os acontecimentos no contexto do conflito entre o bloco imperialista USA no ataque agora aberto à Rússia e proposto, para possivelmente um período não distante, à China.
O conflito atual pode resultar em sequelas de consequências fulcrais para a história mundial, em geral, e das classes trabalhadoras, em especial. Não é de se descartar o congelamento do conflito, com a Rússia ocupando parte da Novaya Russa, incorporada oficialmente ao Estado-mãe. Uma paz armada que postergaria o confronto, com a aceleração da corrida armamentista. O que resultaria em uma derrota parcial, mas significativa, do bloco imperialista ianque.
Entretanto, uma derrota cabal da Rússia, com a recuperação pelo regime títere ucraniano do Donbass, da Crimeia, etc., seria a ante-sala para uma explosão nacional russa e o advento de qualquer coisa assemelhado à Era Yeltisin, sob uma ordem de viés neofascista se alastrando sobre toda a Euro-Ásia. A eventual derrota da Rússia aceleraria certamente a agressão contra a China. Uma vitória USA sobre a Rússia e a China avançaria em forma substancial a construção de uma ordem hegemônica estadunidense sobre a Europa e o mundo de perfil igualmente semi-fascista. Novas formas de exploração exigem novas formas de dominação.
Ao contrário da derrota da Rússia, o fracasso dos USA e da Otan na Ucrânia não terá possivelmente efeitos estratégicos. Ela possivelmente atrasará ou interrompirá, por alguns anos, a agressão contra a China, abrindo período de equilíbrio hemostático no confronto inevitável entre os imperialismo estadunidense e chinês. Esse período de paz armada permitiria melhor situação para um eventual avanço e organização dos trabalhadores. O mundo do trabalho é, efetivamente, o único capaz de pôr fim, através da reorganização racional do mundo social, a um conflito inter-capitalista e inter-imperialista sem fim que pode comprometer a própria existência da sociedade. Cada vez mais, se abre diante de nós a alternativa “Socialismo ou Barbárie”.
Porto Alegre, 4.03.2023
Agradecemos a leitura da linguista italiana Florence Carboni
Texto da apresentação atualizada do programa …. em …. Em associação com o arquiteto italiano Gregório Carboni Maestri
Clique acima para ler e ouvir o audiotexto do artigo de Mário Maestri.
Live com MÁRIO MAESTRI e GREGORIO CARBONI MAESTRI, a qual deu origem ao presente escrito.