Contra o “Campismo”,  a favor do Imperialismo

Por Mário Maestri

!Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay!

Provérbio imemorável castelhano

Valério Arcary acaba de se pronunciar em forma axiomática e telegráfica contra uma vitória militar russa sobre os USA e a Otan para apresentar, a seguir, uma espécie de despedida das revoluções de “outubro” em favor das revoluções de “fevereiro”. Isso, quando as burguesias  nacionais perderam, há muito, qualquer poder e disposição de garantir regimes efetivamente democráticos, cabendo, definitivamente, sua efetivação aos trabalhadores, no contexto de reorganização socialista da sociedade.

Fomos, meu amigo Arcary e eu, companheiros de militância no século passado. Em 1979, com diversos outros companheiros, afastei-me da Convergência Socialista, a vovó do atual PSTU, horrorizado com a direção,  rústica e oportunista, daquela organização e da Liga Internacional dos Trabalhadores, desde Buenos Aires, por Nahuel Moreno (1924-1987). O líder argentino e seus prepostos pontificavam sobre o Brasil sem saber com quantos estados era formado. 

Valério seguiu militando na Convergência e se transformou, merecidamente, por longos anos, em um dos porta-vozes  de fato do PSTU. Em julho de 2016, pouco mais de setecentos militantes romperam com a secção morenista brasileira, formando, com alguns aportes externos, o Movimento por uma Alternativa Independente e Socialista (MAIS) e, a seguir, o grupo Resistência. 

Ainda que em forma tardia, foi um importante passo adiante, provando que nem toda a militância do PSTU seguia acreditando que a terra fosse plana e que tínhamos um encontro marcado na esquina com a greve insurrecional e a revolução socialista. A declaração de ruptura do MAIS propunha: “Acreditamos que as dificuldades enfrentadas pelos revolucionários neste início de século 21 encontram sua explicação mais profunda no impacto reacionário da restauração capitalista na URSS, leste europeu, sudeste asiático e Cuba”. Saudei publicamente aquele e outros indiscutíveis avanços, esperando que fossem seguido de diversos outros. [MAESTRI, 2016.]  Lamentavelmente, a dissidência fracassou em se tornar um pólo de atração para a militância trotskista, em particular, e marxista revolucionária, em geral. 

Eleitoralismo e Identitarismo

O grupo Resistência se enfurnou no PSOL, abraçou o eleitoralismo, o identitarismo, recuou de suas posições iniciais e terminou aderindo à candidatura pró-burguesa e pró-imperialista de Lula e Alckmin. Valério Arcary seguiu sendo porta-voz, no mínimo oficioso, do MAIS e, logo, da Resistência, tendência do PSOL. Se não expressa toda sua organização, expressa certamente uma sua porção significativa. O que nos leva a tecer as presentes considerações sobre artigo seu apenas publicado.

Mesmo tendo saído do PSTU, o morenismo segue agarradinho em Arcary. Como comprova, mais uma vez, seu artigo publicado, em Opera Mundi, de 10 de março, “O campismo não é uma boa bússola”.   Procurando nadar sem se molhar, Arcary encerra a discussão que inicia sobre a guerra na Ucrânia, escrevendo não mais do que umas três linhas sobre aqueles sucessos. 

Após fulminar  como “campista” todo militante de esquerda que apoie um sucesso militar russo, que propõe como um “desenlace [não] progressivo”, Arcary define a atual ordem na Rússia como “um regime bonapartista com impulsos imperialistas”. E, sem qualquer outra explicação, abandona o tema, por digressões sobre os tempos passados e contemporâneos, que desembocam na apologia da luta pela “democracia burguesa”.

Sintetizando. Valério toca microscopicamente o conflito na Ucrânia; explica longamente o que seria o “campismo”; empreende explanação sobre os últimos cem anos para sugerir as “revoluções democráticas” [sic] como a tarefa atual dos “revolucionários”, após a eclipse da era da luta pela vitória da revolução socialista. No presente comentário, seguiremos a ordem de abordagem do  articulista.

  1. A Guerra da Ucrânia, alguém viu a Guerra da Ucrânia?

Arcary aborda a guerra na Ucrânia, como o aprendiz de natação que não se quer molhar. Coloca e retira, rapidamente, a pontinha do pé na água da piscina. A definição minimalista da Rússia como “regime bonapartista com impulsos imperialistas” mais confunde do que esclarece. Se ela não é imperialista, por que, meu bom Jesus, decidiu-se a enfrentar os USA e aliados, economicamente dezenas de vezes mais poderosos! A Rússia é uma potência média, com um PIB próximo do Brasil, país que rasteja  no cenário mundial.

Não desejando a vitória militar da Rússia, o articulista sugere que prefere a sua derrota pelo imperialismo ianque e a Otan! Pois, no mundo dos fatos objetivos e não fantasmagóricos, essas são as duas únicas possibilidades que se apresentam, em graus diversos. Pois propor e acreditar em uma insurreição geral dos trabalhadores contra a guerra é digno apenas do PSTU. Arcary divaga sumariamente sobre o geral, para não enfrentar as razões distantes e próximas do conflito na Ucrânia. 

Sequer sugere os motivos nos quais se apoia para propor o caráter regressivo de uma vitória russa. Não confirma nem nega o avanço da Otan em direção das fronteiras russas, apesar das promessas feitas a Gorbachov, em 1991. O que não impediu um avanço da Otan, a passo acelerado, apertando o cerco militar às fronteiras russas. Em 1999, a Otan engoliu a República Tcheca e a Hungria; em 2004, a Bulgária, a Estônia, a Lituânia, a Letônia, a  Romênia, a Eslováquia e a Eslovênia;  em 2009, a Albânia e a Croácia; em 2017, o Montenegro e, em 2020, a Macedônia do Norte. Não se pronuncia sobre o caráter do golpe pró-imperialista de 2014 na Ucrânia, que concluiria o cerco da Rússia por armas atômicas, obrigando essa última à rendição, pois em situação indefensável. 

Não afirma nem nega que, antes do golpe de 2014, o governo russo apresentou, por anos, a exigência de que a Otan se mantivesse longe de suas fronteiras e respeitasse a neutralidade da Ucrânia. Nem que, após 2014, o bloco imperialista desrespeitou os tratados de Minsk I e II, de 5 de setembro de 2014 e 11 de fevereiro de 2015, para melhor armar a Ucrânia, como confirmaram cinicamente Angela Merkel e François Hollande, que haviam sido os garantes daqueles tratados. Acordos que garantiam o retorno à Rússia da península da Crimeia e a autonomia das repúblicas populares de Donbass, após plebiscitos controlados internacionalmente. Aquelas regiões de  populações em maioria de cultura e fala russas, viviam aterrorizadas com a possibilidade de viverem sob a nova ordem fascistizante ucraniana. Em 2 de maio de 2014, as milícias neonazistas ucranianas haviam queimado vivos, na Casa dos Sindicatos, em  Odessa, 42 manifestantes e sindicalistas contrários ao golpe de Estado USA-OTAN, enquanto a um senhora americana, Vitoria Nuland, distribuia pãesinhos para os manifestantes ucranianos. As milícias facistizantes repetiam o o que haviam feito, suas ancestrais, durante a II Guerra Mundial, sob as ordens dos alemães na Ucrânia, quando, entre outros genocídios, assassinaram cem mil ucranianos-poloneses, em movimento de limpeza étnica. 

Até o Último Ucraniano

Valério não discute, também, se é verdade que, apenas não aceitas as suas reivindicações,  Moscou empreendeu, em 23 de fevereiro de 2022, o fracassado cerco de Kiev, com o exclusivo objetivo de forçar o governo ucraniano a reconhecer a autonomia do Donbass e a nova situação da Crimeia. As negociações entre Kiev e Moscou, iniciadas em 28 de fevereiro, na Bielorrúsia, e retomadas, em 29 de março, na Turquia, que avançavam em direção a um acordo geral, foram torpedeadas sem dó pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, decididos a dessangrar a Rússia, lutando, se fosse necessário, até a última gota de sangue ucraniano, o que têm sido feito até agora. Outro importante objetivo dos USA era e é consolidar e radicalizar sua hegemonia política e economia sobre a  Europa e, sobretudo, a Alemanha.  

O conflito na Ucrânia não é um sucesso localizado, perigoso apenas devido à possibilidade de degenerar, como sugere Arcary, em  um conflito atômico, algo mais do que improvável. Trata-se de fenômeno muito mais grave. Vivemos ali, atualmente, a culminância da ofensiva do imperialismo estadunidense para restabelecer, através da guerra, preferivelmente indireta, sua hegemonia declinante sobre o mundo, questionada pelo dinamismo do imperialismo chinês, definido como o seu inimigo principal, a ser abatido, após vergar a Rússia. 

A derrota da Rússia significará a imposição de limpeza étnica no Donbass, na Novaya Russia, na Crimeia, já em curso na Ucrânia “livre”, desde 2014, e prometida por Zelensky para os territórios a serem “reconquistados”. E, sobretudo, a vitória imperialista acelerará o ataque à China, que, isolada, sem a Rússia, caso derrotada,    permitirá que se abram as portas do mundo à imposição, sobretudo, mas não apenas, nos países periféricos, de  ordens autoritárias e semi-fascistas, com o advento do prometido  “Novo Século Americano”.

A derrota do imperialismo USA na Ucrânia não é e não avança a revolução. Nem significa um novo tempo de equilíbrio estável, de multipolaridade internacional, como alguns incautos acreditam. No mundo real, a vitória russa garante apenas a independência nacional desse país, livrando-o da ordem semi-barbárica em que mergulharia, certamente, no caso de uma derrota, lançando sua população, trabalhadores e a própria nação em situações ainda mais duras do que as conhecidas na Era Yeltsin [1991-1999], após a destruição da URSS.

Sobretudo, a vitória russa enfraquecerá o imperialismo USA hegemônico e seus aliados-subordinados, diminuindo a pressão que exercem sobre praticamente todo o mundo. E, enfim, criará melhores condições, sempre transitórias, para uma eventual  recomposição do mundo do trabalho em direção à revolução socialista, contra todos os capitalismos. Ela garantirá, portanto, um pouco mais de tempo para a recomposição de forças favoráveis a uma revolução socialista necessariamente internacional. Revolução que, mesmo sendo, hoje, uma possibilidade muito frágil, é a única esperança para que o mundo não afunde na barbárie.

2.  A Denúncia Pró-imperialista do “Campismo”

Vejamos, agora o que é o medonho “campismo”, com o qual Valério golpeia sem dó os seus desamores políticos. O nosso articulista, em  outro artigo, define em forma mais detalhada como “campistas” todos aqueles que, no passado, acreditavam “que o mundo” estivesse “dividido em dois campos: o capitalista e o socialista, irreconciliáveis e em luta, sendo este último, presumidamente, a retaguarda estratégica das lutas de classes contra o imperialismo.” [ARCARY, s.d.] Os “campistas” apoiariam, portanto, todas as ação do governo da União Soviética, como favoráveis ao avanço da revolução socialista.

Valério propõe que  o “campismo” teria sido a “visão de mundo dominante da esquerda ao longo dos últimos setenta anos [sic]” e, no Brasil, dos militantes do PCB e daqueles que dele se separaram  nos “últimos 40 anos” [sic]. Cronologia difícil de interpretar, pois o abandono do  internacionalismo pela defesa dos interesses imediatos da URSS surgiu há quase cem anos, com a consolidação da burocracia ‘soviética´. E a dispersão do PCB iniciou-se  com a vitória do golpe de 1964, há quase sessenta anos.

A definição de “campismo” peca no geral e no particular. Desde a hegemonia da ordem capitalista, no século 19, o mundo sempre  esteve -e segue estando- dividido em dois campos dominantes em oposição irreconciliável: o mundo do trabalho e o do capital. E a URSS e os Estados de economia nacionalizada e planificada, mesmo pernetas, se encontravam, objetivamente, no campo do trabalho. Assim sendo, seus avanços ou recuos, fortaleciam ou enfraqueciam as forças da revolução.

Isso, apesar do caráter parasitário, nacionalista e liquidador de suas direções burocráticas. Camarilhas que, impulsionadas pelo dinamismo da economia nacionalizada e planificada da URSS, ou obrigados a defendê-la, podiam terminar impulsionando ações que fortaleceram os trabalhadores e a revolução, sempre no contexto geral de seu conservadorismo.  São exemplos o apoio à Revolução na Coréia, em Cuba e no Vietnã; à guerra de libertação em Angola, em Moçambique, na África do Sul, etc. Poderíamos também elencar as infinitas e terríveis ações contra-revolucionárias da burocracia dita soviética, que terminaram levando à destruição da URSS.

Em Defesa da Revolução

O caráter progressivo da URSS, a necessidade de sua defesa incondicional e a imprescindibilidade da luta pela “revolução política” para o restabelecimento do poder soviético foram questões elucidadas por León Trostky, quando de seu último combate teórico, registrado no magnífico livro Em defesa da Revolução. [TROTSKY, s.d.] A natureza da URSS, como roca-forte contra o capitalismo, apesar da ação deletéria de sua direção parasitária, comprovou-se, em forma negativa,  com a sua destruição, nos anos 1989-91, devido ao ataque ininterrupto, desde 1917, do grande capital internacional.. 

Sobretudo, a destruição da URSS foi evento que lançou o mundo em uma era contra-revolucionária, que se mantém até hoje.  Sucesso epocal que Valério minimiza e encerra, em 1995, não sabemos também o por que desta data. “Se a situação mundial aberta após 1989/1991 foi uma situação reacionária, pelo menos até 1995 – como foi também reacionária a situação mundial nos anos 30 […].” Qualquer outro tropeço sofrido pelo mundo do trabalho no século 20 não pode ser comparado ao desastre abismal da dissolução da URSS. 

Era incorreta a divisão do mundo em dois pólos, a URSS e o imperialismo, enquanto a contradição inconciliável dava-se entre o mundo do capital e o do trabalho, abarcando o último, como proposto, o dito “mundo socialista”. Essa grave incorreção não foi um erro de avaliação política. A ejeção da URSS do mundo do trabalho e a apresentação de seu confronto com os USA como simples disputa pela hegemonia mundial, ao modo da geopolítica, justificou uma indiscutível adesão subjetiva e objetiva à ação do imperialismo por parte de organizações em geral se reivindicando do marxismo-revolucionário. 

Do combate à burocracia stalinista e pós-stalinista passou-se, de mala e cuia, ao combate à URSS, definida, muito logo, não mais como “estado operário degenerado”, mas como Estado capitalista, imperialista, totalitário, de capitalismo de Estado, etc. [TROTSKY, 1974] A verdade e a salvação estariam em um terceiro campo, abstrato, puro, imaterial. Um mundo habitado por vanguarda revolucionária de escolhidos entrincheirada na luta contra a tirania e os tiranos e em favor de democracia no geral, ou seja, a democracia burguesa. É nesse sentido que se enquadra a prática, há décadas, com variações não substantivas, das tendências morenistas, mandelistas, lambertistas, etc. e o  presente artigo de Valério Arcary. 

Retrocesso do Mundo do Trabalho

Essa derrapagem analítica e de classe foi abraçada pelas tendências desviantes do marxismo-revolucionário apenas citadas, rendidas aos preconceitos anti-comunistas e democratizantes, fortíssimos sobretudo nas classes médias radicalizadas, quando dos tempos áureos do capitalismo, após a II Guerra Mundial. Pressões que se acirraram após a vitória histórica da maré contra-revolucionária assinalada pela “Queda do Muro”, devido ao retrocesso geral político, ideológico, programático do mundo do trabalho e de suas  organizações, partidos, sindicatos, militantes, intelectuais, etc. Um retrocesso político, ideológico, programático que tem se desdobrado, nos últimos tempos, em uma adesão avassaladora, de organizações reivindicando-se da revolução, às  políticas identitárias propostas pelo imperialismo ianque e europeu. [MAESTRI, 2020.]

Sobretudo tendências que se reivindicam trotskistas se aliaram objetiva e subjetivamente à contra-revolução, ao participarem dos ataques, primeiro aos estados operários, propondo que combatiam as suas direções burocráticas e parasitárias. Muito logo, passaram ao ataque direto à URSS, às ditas Repúblicas Democráticas, etc., desqualificados como “estados operários”. Ainda em 2016, Martin Hernandez, dirigente morenista radicado no Brasil, propunha, delirando, que a dissolução da URSS  teria ensejado “´revoluções em série, como nunca se havia visto na história´, responsáveis pelo arrasamento dos ´regimes burgueses (sic), ditatoriais, dos partidos comunistas´.” [MAESTRI, 2016.] E todos aqueles que não participavam dessa visão pró-imperialista, apoiando os “estados operários”, sem deixar de combater suas burocracias,  foram execrados  de “campistas” e de stalinistas. 

O morenismo, o lambertismo, o mandelismo e outras agrupações menores festejaram a vitória dos fundamentalistas islâmicos sobre a Revolução Afegã, de 1978, e o apoio que recebeu do Exército Vermelho; apoiaram, nos anos 1980, o Solidariedade, Walesa, Soljenítsin, e toda a escumalha contra-revolucionária, definidos como sindicatos, movimentos, dirigentes e intelectuais revolucionários. Chegaram às raias do orgasmo quando da vitória do grande capital e do imperialismo sobre a  URSS, a RDA, a Iugoslávia, as  “Repúblicas Democráticas”, etc. Vitórias definidas como o início da “revolução política” ou, simplesmente, como a deposição de ditadores e o retorno à sagrada democracia burguesa.

Foram definidos de “campistas” aqueles que propuseram que a destruição da URSS e a restauração capitalista do proposto “mundo socialista”  constituíram processos de restauração capitalista e derrota histórica do mundo do trabalho, para além da dissolução das suas direções burocráticas, parasitas que infeccionavam corpos sadios. Avaliação sobre o caráter da dissolução da URSS que Arcary e seus companheiros de dissidência do PSTU mantiveram até 2016, quando se separaram publicamente dela. Foi, necessário, portanto, que a terra realizasse 25 vezes uma revolução completa em torno do sol para aceitarem o “heliocentrismo”. Posição agora que  Arcary abandona.

Morte ao Tirano!

A funcionalidade do anátema “campista” seguiu e se fortaleceu após dissolução da URSS e dos Estados ditos do “socialismo real”. Então, prosseguiu-se apoiando os ataques do imperialismo ianque, transitoriamente todo-poderoso, à independência nacional de estados rebeldes aos seus desígnios. E todos que se levantavam na defesa das nações agredidas seguiram sendo acusados de “campistas” retardatários ou anacrônicos, como propõe Arcary.

Seguiu-se justificando a defesa do ataque imperialista a nações como o Afeganistão, a Sérvia, Cuba, a Nicaragua, a Venezuela,  a Síria, etc., como combate a seus pretendidos “ditadores”. “Tiranos” que reprimiam, segundo parece pelo gosto do poder,  “movimentos populares insurrecionais”, que, muitas vezes, encerrados os sucessos, sequer necessitaram se dissolver no ar, pois jamais haviam se solidificado no mundo real, a não ser como fantasias criadas para justificar o apoio à ação imperialista. Movimentos não raro inventados,  criados e dirigidos pelo imperialismo, como nas inúmeras “revoluções coloridas” das últimas décadas.

Não apenas o PSTU e a LIT festejaram, com fogos de artifício, o  monstruoso  assassinato de Khadafi pelo imperialismo. E calaram-se, a seguir,  sobre o desaparecimento no éter da insurgência popular proposta;  sobre a liquidação da independência nacional Líbia; sobre a transformação do país em uma não-nação, aberta ao saque de todos os imperialismos; sobre a terrível situação dos seus habitantes, em um território que conheceu o restabelecimento de mercado de negro-africanos escravizados. 

Nada se disse, igualmente, do resultado das revoluções ditas democráticas, com a derrubada de seus tiranos, na Romênia, na Albânia,  na Polônia, na RDA, nos países  ditos “socialistas”. Ou das mesmas “revoluções” no  Haiti,  no Brasil, no Paraguai, no Iraque, no Egito, nas  Filipinas,  na Indonésia, na Ucrânia, etc., apresentadas  como grandes vitórias sociais e democráticas. Questão que nos leva ao terceiro e certamente mais importante tema do artigo de Arcary.

3. As Revoluções de  Outubro pertencem ao Passado

Aqueles e outros movimentos são apresentados por Arcary como gloriosas “revoluções políticas”, categoria estranha ao marxismo, onde as revoluções são necessariamente sociais e estruturais. Revoluções que Arcary propõe terem sido impulsionadas por “mobilizações de massa”, “com milhões de pessoas na rua”, derrubando odiadas “ditaduras”. Movimento que jamais vê como associados ou utilizados pela contra-revolução imperialista, nos últimos tempos, através das “revoluções coloridas”. E, sobretudo, nosso articulista não discute a eventual permanência e mesmo degradação das condições de vida das populações envolvidas nessas “revoluções democráticas”, quando elas não assumem um caráter realmente popular, na perspectiva de transformações sociais profundas.

Perpassa o artigo de Arcary a sugestão de uma natureza diversa substancial, qualitativa, e não apenas quantitativa, entre os regimes capitalistas dirigidos por “tiranos” e a opressão democrático-burguesa tradicional. Através das “revoluções democráticas”, ditaduras capitalistas conheceriam uma nova essência ao cederem lugar a regimes democráticos. Haveria, assim, uma diferença de qualidade, estrutural, entre o Estado nazista, levada ao poder pelo capital monopólico alemão, e o Estado alemão atual, governado democraticamente pelo mesmo capital monopólico. 

Valério magnifica as “revoluções democráticas” nos tempos atuais, outra invenção do morenismo, apagando a continuidade essencial da ordem capitalista, entre um regime autoritário e sua metamorfose em uma ordem democrático burguesa,  ainda que esta última, em geral, seja mais favorável à organização e à luta dos trabalhadores. Propõe, nos fatos, a obsolescência do revolucionário socialista em favor do revolucionário democrata! Na defesa do abandono da determinação das diversas formas e graduações de institucionalização pelas  relações e modos de produção, Valério empreende uma apresentação histórica profundamente contraditória dos tempos passados e presentes. 

Uma Época Revolucionária teria se iniciado, em 1917, se mantendo até hoje, devido à crise “crônica” do capitalismo. No que, no geral, não é incorreto, pois a contradição entre o trabalho e o capital se mantém, no essencial, desde a Conspiração dos Iguais, em 1796, quando os trabalhadores se constituíram, por primeira vez, objetiva e subjetivamente como classe antagonizada à ordem burguesa. A gênese desta contradição nos diz, porém, pouco, sobre os avanços e recuos da produção capitalista e os ciclos da luta de classe mundial. Arcary parece ignorar a retomada do dinamismo e da acumulação capitalista no pós-guerra, impulsionada entre outros fenômenos pela revolução tecnológica, realidade que sofreria forte golpe nos anos 1970 e e, 2007-2008. Ou será que Valério segue acreditando, como o PSTU, que as forças produtivas materiais deixaram de crescer nas décadas que antecederam o último grande conflito mundial?

Uma Era das Sombras

Sobretudo, como proposto, nosso articulista dá escassa importância à vitória histórica da contra-revolução capitalista mundial, assinalada pela destruição da URSS, em 1991. Derrota que encerrou a Era Revolucionaria aberta com a II Guerra Mundial, dando lugar a uma Era Contra-revolucionária, sob a qual vivemos ainda hoje. Para Valério, aqueles sucessos seriam apenas uma “situação reacionária” que teria se concluído já em  1995, não sabemos por quê.

E, ao registrar que, há duas gerações não temos uma vitória socialista,  sugere o eventual esgotamento da capacidade revolucionária do proletariado como um “tema” importante a ser discutido. O  que é correto. Entretanto, não aborda diretamente essa hipótese, ainda que a subscreve, em forma obliqua. Sugere, efetivamente,  como tarefa histórica contemporânea, a luta pelas tais “revoluções democráticas”, tout court, portanto, burguesas. E essa “possibilidade de revoluções”, não qualificadas, deve ser a estratégia de uma “esquerda” que ele define como “anticapitalista”, e não socialista. 

Valério Arcary conclui com uma declaração de confiança nas revoluções de “fevereiro” contra os “tiranos”, pois “não sabemos se novos outubros virão”. Uma aparente incerteza em revoluções socialistas que logo assume sua verdadeira dimensão. Ele propõe, efetivamente, que Outubro teria sido algo próprio ao passado, mantendo-se, hoje, apenas, “como a causa mais elevada do tempo que nos coube viver”. Verbo conjugado no pretérito perfeito, no passado. Quando, ao contrário, devemos conjugá-lo no presente do indicativo – “cabe”. O que definiria  Outubro como a “causa” a ser por nós perseguida, com unhas e dentes, contra ventos e marés, já que é a única alternativa ao desastre civilizacional em que nos encontramos. 

O combo pró-burguês e pró-imperialista

O revolucionarismo genérico, abstrato, democratizante de Arcary, em que o socialismo surge como causa de um tempo já vivido e superado, apresenta-se sob formulações axiomáticas e metafóricas, que jamais revelam claramente sua natureza. O sentido profundo do proposto por Arcary se materializa, entretanto,  em forma límpida, no apoio decidido do meu caro amigo e ex-companheiro que, com sua tendência, aderiram à proposta política colaboracionista e seguem sustentando o governo  pró-burguesia e pró-imperialista de Lula-Alkmin. 

Valério e sua tendência não lançaram a revolução, pela borda, no amanhã. A lançaram ao mar, sem boia, no aqui e no agora. Queimaram sem vacilar as caravelas, em viagem sem retorno, ao abraçarem o projeto eleitoral do imperialismo e da burguesia. E, outra vez, a justificativa foi a defesa da “democracia” contra a eventual reeleição democrática, em 2022, do “tirano” Bolsonaro, eleito quase democraticamente, em 2018. O que impede de ser definido como “ditador” ou “tirano”, apesar de sua vontade em assumir tal posição. E a  terrível ameaça, o chupa-cabra do fascismo brasileiro, que serviu de justificativa para o desbunde geral pró-burguês e pró-imperialista, se encontra, hoje, atolado em Miami, sem forças políticas que lhe permitam desembarcar em Guarulhos com a certeza de não ser enviado a seguir para a  prisão.

No frigir dos ovos, Arcary e sua tendência despediram-se de Outubro, sem navegar em direção a Fevereiro.  Esta última revolução,   uma miragem, em tempos de um capitalismo senil, cavalgando com os cavaleiros do Apocalipse, para obterem um eventual rejuvenescimento por algumas décadas, à custa da reorganização barbárica do mundo. Apoiaram e elegeram simplesmente o combo Lula-Alckmin, burguês e imperialista, que, no substancial, em forma civilizada, segue pela mesma  estrada dos dois governos golpistas anteriores. Tudo sob a ordem democrática.

Bibliografia citada

ARCARY, Valério. Notas sobre internacionalismo e campismo Valerio Arcary, https://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicacoes/gt7/sessao3/Valerio_Arcary.pdf

MAESTRI, Mário. PSTU: O significado de uma ruptura.  Correio da Cidadania, 13/07/2016. https://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11820:pstu-os-significados-de-uma-ruptura-&catid=72:imagens-rolantes

MAESTRI, Mário. O Identitarismo Negro Está Comendo a Esquerda por uma Perna. Contrapoder, São Paulo, 31 de outubro de 2020. https://contrapoder.net/colunas/o-identitarismo-negro-esta-comendo-a-esquerda-por-uma-perna/

TROTSKY, Leon. Em defesa do marxismo. São Paulo : Proposta Editorial, s.d. 

TROTSKY, Léon. La nature de I’U.R.S.S. Paris: François Maspero, 1974.

* Agradecemos a leitura da linguista italiana Florence Carboni.

* Mário Maestri, 74, brasileiro e italiano, é historiador e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, RS, Brasil. E-mail: maestri1789@gmail.com

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