Neopaganismo narcísico e políticas identitaristas: uma ideologia entrópica no vácuo das promessas não cumpridas da modernidade capitalista.

Por Leonardo Lima Ribeiro¹

Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio? (Bertolt Brecht)

Na desvalorização do passado está implícita uma justificativa da nulidade do presente (Antônio Gramsci)

As ideias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante (Friedrich Engels e Karl Marx)

Partindo de forma mais ou menos genérica de uma perspectiva materialista histórica e dialética aos olhos de um marxiano, o presente escrito trata de uma abordagem crítica acerca da gênese de uma ideologia específica. Ela está cimentada enquanto ponto nevrálgico acerca da superestrutura do capital brasileiro, porquanto ajuda na elucidação de casos particulares vinculados às práticas diversas das violências sociais como sintoma do capital.

Embora a presença da dialética e do materialismo histórico aqui esteja pulsante, tomaremos a liberdade de deixá-la explícita nas entrelinhas, uma vez que o texto se volta ao esforço do entendimento do problema da ideologia relativamente à conjuntura internacional que agora se apresenta, respingando inclusive no Brasil. Por meio dessa ideologia, o capital gangrena enquanto repõe novos processos econômico políticos teológicos os quais, inclusive, arrastam e arrebanham inúmeras perspectivas pós-modernas, endógenas ou exógenas ao bolsonarismo. Evidentemente, o texto é produzido em paralelo ao compasso da (re)emergência de uma economia política de guerra mundial, que pauta as reestruturações produtivas inerentes às especificidades de cada país.

Por conseguinte, será necessária a abordagem histórica genética da “questão identitária”, numa tentativa de retomada dos processos pretéritos para compreensão do presente contemporâneo. Urge estrategicamente lançar mão da “questão identitária” sob o prisma da temporalidade histórica e processos econômico políticos.

As premissas críticas que Marx apontaria contra um certo pensamento ideológico do início do século dezenove servem igualmente enquanto tarefa de elucidação do que hoje se segue em termos discursivos, que migraram de A Questão Judaica, Miséria da Filosofia e Ideologia Alemã para possibilidades amplas de análises críticas diversas àquilo que se intitula de identitarismo — conjunto de enunciações e pensamentos mítico-mágicos que emergem do bojo das crises do capitalismo.

Ademais, trataremos do identitarismo enquanto algo que pode ser situado em seus lampejos como uma espécie de produção discursiva que se inicia no século XIX, atravessa numa crescente o século XX e que, a partir dele, ganha politicamente respaldo expansivo internacional no século XXI, tornando-se política ideológica maturada oficial da maior parte do espectro neoliberal amparado pelas corporações e burguesias ocidentais, estejam elas mais para a direita ou mais para a esquerda.

É o esforço expositivo do que está expresso que será logo adiante elaborado.

Prelúdio histórico e processos lógicos causais estruturantes do identitarismo.

Inicialmente, não custa lembrar que as cristalizações ideológicas burguesas são semelhantes aos feitiços inerentes às matrizes teológico-políticas. A teologia política como pensamento cimentado socialmente opera em princípio ao nível de enunciações particulares que, quando hipostasiadas, intentam ser universais, organizadas institucionalmente como divinas. Ou seja, atua como lógica de entidade abstrata aparentemente desvinculada da realidade histórica e dos processos materiais que amparam e dão sustentação aos jogos subjetivos e enunciativos que seguem como efeito.

A intenção é clara, a saber: para construir, aprimorar e distribuir suas ideias, a classe social que possui a tutela do pensamento social dominante em diferentes fases históricas do capital deve operar uma torção interna aos seus próprios pensamentos, de modo a ganharem maior capilaridade social. Ademais, é preciso transbordar ideologicamente o próprio âmbito de classe, estar para além dos seus contornos geográficos, para assim circular nos mais distintos espaços, sem freios ou reticências mais entrópicas, que permitam a ruptura ou questionamento real.

É imprescindível que o pensamento majoritário sobrecodificado socialmente deva simultaneamente anunciar-se, apresentar-se e interpelar os desavisados ao passo que atua como véu para sua gênese estrutural. Trata-se de um jogo matreiro de claro e escuro. O que está esclarecido é fixado e partilhado institucionalmente, o que está obscurecido permanece anônimo em sua dinâmica produtiva.

O processo de produção da ideologia é ocultado, ao passo que as ideias majoritárias são financiadas para serem caracterizadas como órfãs, sem pai nem mãe, sem origem de classe. Assim sendo, o que é articulado discursivamente como majoritário parece se exprimir transcendentalmente, para além de sua gênese, da mesma maneira que a esfera de circulação de mercadorias apaga e esconde de sua superfície as dinâmicas do processo produtivo indexador de trabalhadores super-explorados, com suas energias vitais sequestradas com o objetivo de retroalimentarem a acumulação capitalista e o céu estrelado das aventuras das mercadorias nos espaços de compra e venda.

Pois bem, igualmente uma ou várias ideias dominantes se apresentam socialmente ao passo que parcialmente escondem seu processo constitutivo. No mesmo registro de uma ilusão de ótica, a construção de uma ideologia que se torne majoritariamente consenso social (com pequenas diferenças de grau em relação aos discursos que subsume) deve então pressupor o escamoteio do processo de sua produção enunciativa. Portanto, o fato de que existem donos do processo de manufatura das ideias dominantes de uma época não prescinde da necessidade de os possuidores da dinâmica produtiva de tais ideias se desvincularem dessas mesmas ideias, enquanto seus autores e estrategistas.

Uma das consequências maiores do que aqui está em questão é a de que, sendo efeitos de classe social que detém não apenas a tutela dos meios de produção e da propriedade privada, mas também os instrumentos de enunciação, distribuição e internalização dos discursos via inúmeras instituições, as ideias majoritárias passam a ter características metafísicas e teológicas.

Para a burguesia, não se trata apenas do convencimento de si como classe que se mantém e almeja persistir no poder da detenção dos meios de produção, aquartelada em um sistema lógico e abstrato de pilhagem de inocentes (o capitalismo), os quais são forçados à sobrevivência sob o prisma de suas indexações corporais e mentais ao próprio sistema em questão. Trata-se de algo mais: o capital e, mais precisamente, a pluralidade de setores burgueses, engole corporalmente indivíduos e párias sociais através das dinâmicas do trabalho (D-M-D’), sendo, portanto, necessário sequestrar não apenas seus corpos, mas despedaçar suas almas.

É preciso roubar dos párias sociais a capacidade de enxergarem a totalidade dos processos que envolvem a dinâmica do mundo fabricado relativamente à fase histórica na qual estão a viver. Esmagar e desgastar os corpos não basta, porquanto amputar o espírito é injunção necessária.

Para tanto, ilusões de ótica e distorções perceptivas são mais do que necessárias. Os investimentos para garantia das distorções em jogo não são pequenos, assim como financiamentos diversificados em pesquisas das mais diversas ordens, seja no tocante ao entendimento histórico da psicologia das massas (Gustave Le Bon) em sua relação com as práticas produtivas de labor, de consumo e entretenimento, seja relativamente ao próprio redimensionamento de tais psicologias, a partir da mediação das modificações drásticas nas tecnologias e outros meios de ressignificação dos sujeitos em si e para si.

Trata-se de toda uma economia da atenção e da percepção que, atualmente, atesta que os mecanismos de produção e interpelação majoritária de novas subjetividades é imprescindível para a ideologia burguesa se sustentar como discurso de autoridade. Tal fato se segue porque, quanto mais cruel o mundo do trabalho em seus modos de sociabilidade, maior é a necessidade de os cientistas burgueses e outros asseclas aprofundarem os estudos da alma humana para melhor manufaturá-la em sua “espinha dorsal”. Alterando os modos de compreensão dos agentes sociais a respeito de si mesmos, é possível a construção de mais um esforço na reprodutibilidade de um metabolismo social combalido e em vias de colapso.

Não por acaso, em sequência a uma tradição filosófica clássica (não esqueçamos de Feuerbach) Marx e Engels expressavam em Ideologia Alemã que “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante” (Friedrich Engels e Karl Marx). Não é pouca coisa dizer que tal premissa é ainda mais válida hoje do que ontem.

Nesse sentido, não custa lembrar dos vultosos investimentos em produções majoritárias de pensamento ideológico capitalista (com suas diferenciações de grau). Os investimentos estão continuamente alinhados à manufatura tática de fomento a uma espécie de pensamento mágico, pelo qual o feitiço engendrado encanta subjetividades e, fundamentalmente, sequestra corações.

Aqui, vale dizer que há toda uma tradição fascista ecoando ao fundo. Goebbels (Ministro da propaganda nazista) e Leni Riefenstahl (Cineasta principal do III Reich) não desempenharam primordialmente a tarefa de reconstrução e renascimento da ideologia nazista na alma popular por acaso. O feitiço estético das obras nazistas (vide “Arquitetura da Destruição”), as quais propagam valores subjetivos incondicionais hipostasiados e ligados à depuração das almas que se intentam aristocráticas, maiores e melhores agentes sociais, não teve pouca aceitação por mero jogo do acaso, porquanto se trata ali de a burguesia reacionária manufaturar um paganismo místico anticomunista pelo qual o feitiço de se acreditar puro subjetivamente e sublime territorialmente abraça perversamente as mentes e os corações de inúmeros civis.

Há um vínculo evidente entre irracionalismo, subjetividade e território nacional, através de que desrazão e a grotesca afetividade aprimoram a ideia de conexão entre subjetividade e pátria, sujeitos e objeto (indivíduos assentados em terra natal a ser purificada, sob os auspícios do banimento dos excêntricos e desterritorizalizados). Eis o paroxismo de um dispositivo subjetivo de fixação de uma ideia cristalizada, pela qual a burguesia interpela os sujeitos e cristaliza suas identidades, por meio de suas indexações mediante reorganização dos afetos e colonização das almas.

Assim, constroem identidades esvaziadas de alteridade. Esvaziado da ideia de “outro” o “eu” cimentado é fixado como uma cartilha de valores, por meio de que os agentes sociais esvaziados da premissa básica da ideia de identidade (“a relação eus/outros” e a “passagem dos outros em eu”) fixam seus eus em blocos de ideias inquestionáveis, ao passo em que são meios de retransmissão de discursos temerários, que emergem do âmago de território nacional alemão. Trata-se não apenas de agentes impermeáveis subjetivamente, porquanto se apresentam como indivíduos que se veem transmitindo os valores de seu próprio território. É a terra natal que fala através deles. Sendo assim, sua linguagem é claramente expressa como simbologia telúrica.

Se o eu não pode ser um outro radicalmente diferente, trata-se, por outro lado, de um eu que se anuncia como correia de transmissão das raízes territoriais pelas quais [re]descobre sua gênese constituinte (há uma espécie de platonismo implícito aqui). Nesse sentido, o “eu” é já “território”, daí o caráter de enraizamento que conecta sujeito e objeto na ideologia nazista. Lá onde o agente social alemão se exprime é a voz telúrica que emerge. Uma vez que seu sangue é a seiva da terra natal, em que as raízes estão adensadas e espraiadas, a linguagem nazista emanada é a expressão dessa seiva. Nesse sentido, o “eu” é o outro da terra que se apresenta como imperecível, tal como uma relação mística e metafísica através de que nada deverá lhe mover (nem o sujeito nem a terra), conquanto tudo tente mover, no sentido ideológico de expansão de seus valores coloniais aplicados ao bojo da própria Europa, mais precisamente ao leste do continente (não custa lembrar que os nazistas era eslavofóbicos, não apenas antijudaicos, na garantia de que poderiam melhor avançar sobre a repartição de territórios ao leste e ao sul sem dor na consciência, para além do bem e do mal).

Os velhos nacionalistas, segundo Hitler, nunca teriam compreendido que a germanização se dá somente pela terra/solo, nunca pelos homens. Os outros povos são portanto para os fascistas não nações relativamente subordinadas, que podem submeter ou assimilar, mas uma “raça inferior’ que se diferencia qualitativamente da raça “nórdica” ou “ariana-germânica” chamada a dominar, e que pode ser considerada uma raça humana somente condicionalmente, pois ela não tem absolutamente direito a existência em comparação a raça superior. É por isso que é simplesmente lógico que Hitler ou Rosenberg colocassem sempre a palavra humanidade em citações irônicas, e rejeitassem totalmente a concepção de uma história universal unitária. Para os fascistas hitlerianos, a história geral existia mas apenas se caracterizava no desenvolvimento da “raça superior” (Lukács em Fascismo Alemão e Hegel).

Tal é o pano de fundo da instauração da biologização da cultura, pela qual a relação entre sujeito e solo emite sinais a partir dos quais indivíduos sentem redescobrir beligerantemente suas essências, transformando-as em entidades ahistóricas. O escamoteio da história do desenvolvimento do pensamento e da cultura que dele emerge promove a hipóstase ahistórica da cultura e essencializa a subjetividade, amparada em sua conexão com a terra prometida para os eleitos capazes de acesso aos enunciados da terra. A cultura segue em direção à terra, e a terra sustenta as enunciações como garantia da formação de um povo. Em tal patuá, no qual geografia e discursividade se encontram quase que como eixos indiscerníveis, é que podemos afirmar que o nazismo é um dos meios a partir de que a biologização da cultura se torna o reforço de formas de pensamento imperialistas e racistas ulteriores. É delas que trataremos mais adiante.

Como já se pode antever, o que aqui está em jogo é que, independentemente do aprofundamento histórico acerca da situação pela qual a ressentida Alemanha passava pós-primeira guerra com a erosão de Weimar, tanto quanto ao largo de se tratar do freio de mão anticomunista que caracterizava o nazismo no interior da Alemanha, cabe dizer fundamentalmente o seguinte: a partir da breve caracterização acima expressa é possível qualificar que o nazismo é uma espécie de ideologia burguesa de nova ordem, a qual não está desativada nos dias de hoje.

E mais, trata-se de uma ideologia que podemos classificar como ponto de partida gerador do que hoje conhecemos como identitarismo. O nazismo é o pai do identitarismo e suas variáveis (de direita e de esquerda hodiernamente). Cumpre claramente a tarefa de escamotear sua origem genética, ao passo em que agentes sociais e corpo telúrico específico produzem um nó estrutural imagético que confere garantia àquilo que chamam de “eu” identitário enraizado.

A ideia de vínculo entre sujeito e raiz territorial ficcionada mitologicamente é o elemento fiador de um eu cristalizado mórbido e aquartelado. É o espelho de uma autoimagem impermeável e intrinsecamente beligerante, continuamente à procura da proteção de si na guarida da terra prometida a ser reconquistada.

Proteger, ressuscitar, procurar e resgatar essa terra é o que permite o encontro de si para consigo, daí o objetivo evidente de se manter firme e forte na tarefa de cuidar de tal território como parte de um exército de seres depurados, purificados. Trata-se de algo que não deixa de remeter aos escritos do primeiro testamento, com apologia a um Jeová punitivista incorporado ao coração dos povos em disputa. A ênfase no resgate do punitivismo beligerante identitário se segue como missão sagrada de novos povos autoproclamados eleitos, e que, enxergando narcisicamente apenas sua autoimagem, desejam ser tão cruéis e abastados como o renascido Império Romano no compasso do gesto sacrificial do Cristo apátrida, embora posteriormente tal império desse sequência aos mesmos objetivos em nome dele. Tal é o ponto fundamental que devemos esclarecer daqui para frente.

A questão identitária estadunidense

Como já se percebe, um ponto importante que deve ser objeto de insistência é o seguinte: a matriz do discurso identitário advém da extrema direita, não estando vinculado historicamente à luta dos proletários e outros párias sociais na toada do percurso cujo horizonte é o da emancipação humana, seja numa perspectiva mais universalista, seja num horizonte mais particularizado (como a luta contra o racismo ou contra a opressão contra a mulher, etc.). Mas, para se aprofundar o que aqui está em jogo, é ainda preciso persistir na abordagem de desdobramento dessa ideologia no percurso que se segue após a derrota dos nazistas.

Durante o pós-guerra, é preciso enfatizar que o identitarismo, ou seja, a negação da alteridade como aspecto constituinte da identidade de alguém, dá vazão aos mesmos princípios há pouco anunciados, conquanto reimpulsionados pelos ianques. Sem negar as premissas antes expressas, toda a herança nazista ecoa no célebre american way of life, não por acaso, inclusive por dentro do que hoje se plasma como esquerda politicista e biologista cultural. Ou seja, não se trata apenas do famigerado trumpismo e bolsonarismo que ecoa sob as configurações históricas que sobreviveram à segunda guerra mundial, com resquícios do futurismo de um Marinetti ainda mais tosco, com seu culto à guerra e a velocidade nas dinâmicas urbanas espaço-temporais (claro, levamos em consideração que o sublime Vladimir Maiakovski é exceção ao caso do futurismo, conquanto já no contexto revolucionário soviético).

Para tratar disso ainda vale persistir no somatório de quatro expressões que demarcam a cimentação do identitarismo fascistoide no pós-segunda guerra: [1.] identitarismo enquanto teologia política beligerante impulsionada pelo Estado Burguês; [2.] pensamento mágico que opera irracionalmente por imagens; [3.] biologismo cultural que vincula os sujeitos e suas essências abstraídas aos seus territórios nacionais, algo radicalmente anti-internacionalista; [4.] ações nostálgicas de resgate do passado ficcionado, embora transposto ao presente passível de sua crônica realização. São essas as quatro expressões que persistem unidimensionalmente no pensamento ideológico identitarista, o que permite sua conexão genética com matrizes de pensamento advindas do nazifascismo.

O somatório das quatro enunciações em questão está implícito na indústria de manufatura de variadas ideologias estadunidenses, com selo de exportação mundial. A legitimação de sua hegemonia ao redor de todo o globo advém como meio de pensamento hollywoodianizado, que reforça a pressão pela abertura de mercados em diversos países. A ideologia cimentada pelos ianques no pós-segunda guerra não apenas supõe a famigerada ideia de que os ianques são como figuras divinas que salvam o planeta de catástrofes e de terroristas.

O que está em jogo é a necessidade de interpelação de um público consumidor das ideias financiadas de cariz neocolonial (“em vez de necessariamente mandar o exército para ocupar um território se pode encaminhar a Madonna ou Michael Jackson”, como magistralmente afirma Ariano Suassuna). A ideia é a de fazer com que os povos estrangeiros tenham lampejos da experimentação latente do american way of life. O sucesso dessa experiência como estratégia de propaganda internacional, dissimulando a exportação de bens culturais dos autotintulados vencedores antissoviéticos dos pós-guerra, dá o aval estrangeiro para que o mercado de produtos estadunidenses seja não apenas aceito passivamente, mas com a deliberação passional e inconsciente dos receptores de seus produtos culturais expressos.

Não por acaso, Hollywood, Disney e outras indústrias do entretenimento sempre são rearticuladas e amparadas enquanto política de Estado Nacional, sob orientação militar. Trata-se da indústria do entretenimento como laboratório de recodificação de uma subjetividade ocidental, mais ou menos global em diferentes países. O êxito não foi pequeno.

Ademais, para justificar guerras e abrir os mercados na garantia da circulação antissoviética das mercadorias, é necessária a produção de mecanismos de conquista dos corações e mentes dos povos estrangeiros, com imensa capilaridade no Ocidente, e para além dele. Sem dúvida, trata-se de algo que começa a falhar após a derrota do exército dos EUA relativamente ao Vietnã do Norte, com ondas de protestos dentro de seu próprio território. Em complementação, não se deve deixar de lembrar das estratégias imperialistas clássicas por parte burguesia ianque, dentro de seu próprio território e enquanto prelúdio que anuncia o que há pouco está elucidado. A partir daqui é necessário lembrar de Edward Bernays, especialista em relações públicas e nada mais nada menos do que sobrinho de Freud.

A questão identitária estadunidense (mais algumas considerações)

A junção de psicanálise com relações públicas a serviço do imperialismo é, como se pressupõe, bombástica. Ao fim da primeira metade do século XX, Bernays é cooptado pelo governo dos EUA em período de guerra fria, como muito bem está expresso no documentário o século do ego. Partindo de métodos goebbelistas e com distorções no freudismo, Bernays (estudioso de Le Bon e participante do neoliberal colóquio Walter Lippman) dá sequência à tática por meio de que Hitler, para obter apoio popular, compraria as classes médias com produção e venda barateada de carros como o fusca, sob os auspícios da Volkswagen. Para além da venda do produto propagandeado, Goebbels (ministro de propaganda) e Riefenstal (diretora de cinema oficial do terceiro Reich) já somariam forças na fabricação da psicologia das massas do nazifascismo.

É justamente daí que Bernays parte, sob o financiamento do imperialismo das corporações estadunidenses. O monopólio da indústria e, mais precisamente, de fábricas como a Ford sobre a organização e relação entre indivíduos como modo de sociabilidade, necessita parcialmente persistir no pós-guerra por meio das engrenagens que lubrificariam o monopólio das ideias (Como adendo, não custa lembrar que o burguês Henry Ford era antissemita. Escreveu um livro com grande circulação nos âmbitos nazistas, intitulado de Judeu Internacional: International Jew). O fordismo, a indústria do cigarro e o hollywoodianismo permanecem alinhados no decorrer imediato do pós-guerra: três vetores subsumidos aos objetivos estratégicos de interpelação e produção de subjetividades inerentes à “sociedade civil” estadunidense.

Pois bem, nesse contexto Edward Bernays se utiliza de premissas freudianas para dar continuidade às táticas do imperialismo no pós-guerra. Sob patrocínio do imperialismo, Bernays contribui enormemente para reatualizar os mencionados princípios identitários nazifascistas acima enunciados, em meio à indústria cultural que havia se tornado imprescindível para produção de disputas ideológicas no âmago da Guerra Fria. Para tanto, supõe o inconsciente e a afetividade como meio irracional para arrebanhar massas amorfas, e instalar o artificioso desejo popular em relação ao cigarro e ao consumo de carros. Com estudos acerca do inconsciente popular das massas despolitizadas, Bernays empreende técnicas de gestão pública sob o prisma hitlerista que persiste na indústria do consumo no pós-1945. Como, no auge desta época enfatizou magistralmente Baudrillard em Simulacros e Simulações:

O que estamos a viver é a absorção de todos os modos de expressão virtuais no da publicidade. Todas as formas culturais originais, todas as linguagens determinadas absorvem-se neste porque não tem profundidade, é instantâneo e instantaneamente esquecido. Triunfo da forma superficial, mínimo denominador comum de todos os significados, grau zero do sentido, triunfo da entropia sobre todos os tropos possíveis. Forma mais baixa da energia do signo. Esta forma inarticulada, instantânea, sem passado, sem futuro, sem metamorfose possível, precisamente por ser a última, tem poder sobre todas as outras. Todas as formas actuais de actividade tendem para a publicidade, e na sua maior parte esgotam-se aí. Não forçosamente na publicidade nominal, a que se produz como tal — mas a forma publicitária, a de um modo operacional simplificado, vagamente sedutor, vagamente consensual (todas as modalidades estão aí confundidas, mas de um modo atenuado). Mais geralmente a forma publicitária é aquela em que todos os conteúdos singulares se anulam no próprio momento em que podem transcrever-se uns nos outros, enquanto que o que caracteriza os enunciados «pesados», formas articuladas de sentido (ou de estilo) é não poderem traduzir-se uns nos outros, tal como as regras de um jogo.

Com o sucesso tático de Bernays, o identitarismo segue sendo continuamente reformatado, embora preservando os pilares que fundamentam seu princípio constituinte (biologismo cultural afetado; pensamento mágico dado por meio de imagens que operam aos sobressaltos lógicos; teologia política; nostalgia do passado no presente por meio de novos bens tecnológicos como meios de prática ativa de reinstauração do passado no presente).

A necessidade da contínua reconfiguração do identitarismo assume aos poucos uma formatação mais depurada na década de 60 do século XX, aplicada com mais precisão aos setores socialmente descontentes com o fato de não participarem da partilha do usufruto dos bens culturais burgueses. O intuito é o de um domínio do espectro total das massas voltadas à inclusão social pelas vias do consumo e do entretenimento despolitizador.

Com o objetivo de colonizar a revolta dos oprimidos e descontentes seria então necessária a aplicação dos meios de alienação e arrebanhamento dos brancos de classe média àqueles grupos que não se sentiriam representados pelas simbologias culturais e direitos econômicos que serviam de paradigma de pertencimento social, civilizacional.

Tal processo também é parido no âmago dos órgãos estatísticos e sob o guarda-chuva de grandes bancos, que precisariam fazer escoar os créditos e amparar o consumo do excedente de mercadorias, em complemento da ressignificação de sua autoimagem. A superprodução que faria a curva de acumulação decair em função da falta de consumo deveria ter como compensação resolutiva a abertura de flancos de mercado voltados aos setores que antes não teriam o direito do acesso aos bens diversos manufaturados pelo capital.

A explicação disso está ancorada simultaneamente a um segundo elemento objetivo. A necessidade de achatamento salarial dos trabalhadores formais, com vida anteriormente mais estável, permite que a burguesia lance mão da tática de pressão para demissões em massa, sob o prisma da contratação de indivíduos antes não vinculados formalmente à dinâmica do trabalho. Na forma de crise mirando a retomada de seu respiro lucrativo, o capital pressiona os salários para baixo, forçando desemprego de inúmeros trabalhadores formais, que já pressentiam os lampejos avant la lettre da derrocada do Wellfare State na década de 60.

De modo complementar, é orquestrada a contratação de trabalhadores com salários mais baixos, com a perspectiva da ascendência social voltada ao mundo do consumo e aquisição ou (re)produção adaptada dos bens culturais que seguem como dele fazendo parte. É justamente nesse momento que as minorias sociais sobem ao palco da democracia burguesa e se apresentam parcialmente vencidas pela burguesia, mas empoderadas como formas de vida alternativas com maior poder de barganha por direitos sociais no epicentro do capital.

A burguesia europeia e norte-americana opera em velocidade cada vez mais acende a desestabilização de classes trabalhadoras com salários mais altos, antevistas como uma espécie de elite assalariada. Demite em massa trabalhadores com salários maiores e oferece em troca “maiores” oportunidades de contratação de setores mais vulneráveis da sociedade. Ao longo da década de 60, as burguesias ocidentais reconfiguram a dinâmica do trabalho, pressionando ardilosamente os salários para baixo, seja na Europa e seja nos EUA.

Mas para legitimar o que está em questão astúcias estéticas e publicitárias são empreendidas. Para se vender o paraíso capitalista para as minorias oprimidas em complemento ao inferno que posteriormente produziria os “white trashs” descartados, reacionarizados e neonazificados seria necessário o reforço ideológico e estético relativamente aos setores antagônicos. Assim, novos artifícios interpelariam agentes sociais aos descaminhos de formas de vida alternativas que fossem indexadas ao sistema.

Apesar da resistência dos maoistas dos panteras negras, de Malcom X, Martin Luther King e tantos outros mais aguerridos, cabe dizer que o imperialismo e seus órgãos de espionagem capitalistas vencem a queda de braço no tocante à disputa material e ideológica que visa a hegemonia produtora de consensos sociais. Os governos de Lyndon Johnson, o mesmo que deu aval para a instauração do golpe de 1964 no Brasil, e, em seguida, Richard Nixon, ao aparelhar o FBI sob a batuta de John Edgar Hoover, foram emblemáticos nesse sentido —lembrando que as décadas de 50 e 60 podem ser antevistas segundo o prisma da instauração de ditaduras para reorganização social neoliberal em párias sociais e países subalternos alinhados geopoliticamentee aos EUA.

Ao assassinarem friamente muitos dos mais aguerridos combatentes das minorias vinculadas a uma perspectiva socialista e comunista, os mecanismos estatais da contrarrevolução preventiva e suas engrenagens de segurança, vigilância e controle social conseguiram impor sem maiores dificuldades o ritmo do desmonte de uma práxis revolucionária no âmago do pensamento crítico dos que ficavam pelo caminho. Em complemento passa a ofertar a promessa de um paraíso trabalhista de antemão decadente, que emerge sucateado enquanto único meio de vida possível no bojo da sociedade distópica ianque.

Não esqueçamos que é precisamente neste ponto nevrálgico que o imperialismo produza relações públicas e fortaleça a indústria da propaganda, sob o prisma de técnicas de psicologização despolitizadora pelas vias do entretenimento de massas.

Mais uma vez, A CIA, O FBI e outros órgãos do Estado burguês ianque massacram preventivamente os grupos que são antevistos como focos motivadores de revoluções mais aguerridas no bojo dos EUA e de outros países, ao passo em que oferece às massas sobrantes a promessa de um sonho americano readaptado às realidade locais acima ou abaixo do globo terrestre – conquanto o racismo, o machismo e a homofobia evidentemente persistam numa estrutura topológica imperialista de distribuição dos tipos sociais, como Clóvis Moura bem analisa de modo sofisticado no contexto de O Racismo Como Arma Ideológica de Dominação.

Assim, trata-se de um elemento complementar que advém do imperialismo ianque e seus monopólios culturais, os quais, em seguida, abduz setores mais alternativos, respingando fundamentalmente no pós-maio de 1968. Uma tática que deveria ser aplicada como infalível, tendo em vista a quantidade razoável de revoluções que pululavam pelo globo sob a influência soviética, tal como a revolução chinesacubanaargelinavietnamitacoreana, etc (certamente, não cabe aqui a abordagem da natureza específica de cada revolução, desvelando suas contradições e limites inerentes).

Ao mesmo tempo, seria preciso criar uma clivagem perceptiva entre tais revoluções e os setores alternativos que com elas se identificavam, com o específico objetivo de aquartelar o imperialismo e seu público sob a perfumaria do desvio ideológico, através do distracionismo hedonista acoplado ao consumo de massas. A tarefa maior seria então forçar a mão na ideia de que o hedonismo como política de consumo egocentrado e beligerante na esfera da concorrência das subjetividades deveria objetiva e preventivamente ocupar o lugar das revoluções críticas da economia política burguesa, que anteveem a necessidade de os proletários do ocidente se organizarem sob o horizonte da tomada do poder e sob a perspectiva de transições socialistas. Assim, como o próprio pantera negra Fred Hampton (O poder em qualquer lugar onde haja povo) e o revolucionário psicanalista antilhano Frantz Fanon (Pele Negra e Máscaras Brancas/ Condenados da Terra) elucidaram muito bem a partir de diferentes contextos históricos e distintas nações, há toda uma história de contrarrevoluções preventivas que emerge a partir do prisma específico de estudos institucionalizados de psicologização da massas consumidoras, com lampejos de nazifascismo ressoando como herança histórica no consumismo e hedonismo desenfreado enquanto forma de ação irracional coletiva capitalista (vide, nesse sentido, o papel funcional e complementar que as pornochanchadas desempenharam em período de ditadura militar brasileira, ao passo em que o magistral cinema novo enquanto movimento cultural era amordaçado e desmontado).

Uma associação entre irracionalismo contemporâneo e configuração incipiente de conduta identitária na primeira metade do século XIX.

Antes de elaborarmos a sessão final do presente escrito cabe aqui uma digressão precisa: associar o identitarismo que hoje é presente com base no que acima está escrito com o grupo de escritores de esquerda que Marx criticou ainda em vida no século XIX.

Num histórico de média duração e para além das características que vinculam o identitarismo ao modus operandi pelo qual a extrema-direita produz enunciações teológico-políticas, é preciso uma complementação: não se deve deixar de atentar para algumas semelhanças que, na espessura de seus espectros e escalas de expressão, o identitarismo possui com o “hegelianismo de esquerda” enquanto efeitos da decadência do pensamento de Hegel.

Primeiramente, assim como o hegelianismo de esquerda seria demarcado a partir de um conjunto de enunciações subjetivistas despotencializadoras de Hegel (embora se designando como mais avançado), o identitarismo é, igualmente, melhor elucidado quando compreendemos que é efeito subjetivista que cristaliza nas consciências individuais os tempos cujos contornos do tecido social são regressivos. Ou seja, o identitarismo é a expressão cultural e política de uma fase de regressão histórica transversal às falsas promessas humanistas não realizadas pela economia política burguesa, ou seja, é uma forma de expressão que pode ser antevista como espelho das ruínas do colapso involutivo do capitalismo, tanto quanto é refluxo das revoluções socialistas embargadas.

O agravante é que hoje em dia o refluxo identitário se converte em meio de contenção da comunicação dos trabalhadores sob o prisma de negação narcísica de um universalismo indexador de multiplicidades de explorações nas mais diversas esferas. O subjetivismo decadente é a expressão de tempos em que os indivíduos implodem afogados nas abstrações da solidão, ou mesmo sobrevivem ilhados em tribos embriagadas de si mesmas, cujo vínculo de alteridade com as diferenças se torna impossível. Algo que está muito bem demonstrado aqui, na clareza e precisão do discurso de Terezinha Martins, em uma das lives da Tv A Comuna:

O identitarismo em tempos aparentemente pós-modernos, com erosão das promessas que a modernidade não foi capaz de cumprir é também algo inusitado, a saber: uma espécie de anacronismo analítico que não se percebe como conjunto de ideias pré-marxianas, de cariz positivista, neohegeliano e protonietzschiano. É, portanto, muito semelhante às linhas culturalistas neohegelianas de esquerda e de direita, as quais desaguam em formas ilógicas de raciocínio subjetivistas atávicas para além do bem e do mal, escamoteando a materialidade histórica dos processos econômico políticos e diversas lutas de povos oprimidos enquanto parâmetro para estabelecimentos de critérios objetivos da realidade para constituição de proposições factuais.

Tal atavismo subjetivo e relativista cujas potências selvagens e instintivas da vida passam a ter maior valor do que a razão objetiva cujo sujeito é atravessado pela realidade dos fatos recrudesce paulatinamente em configurações discursivas reacionárias a partir de 1848, após as derrotas sofridas pelos trabalhadores na proposição das revoluções iniciadas no mesmo ano.

Todas essas ideias foram em parte enfraquecidas e deformadas, em parte diretamente combatidas pela filosofia reacionária desde 1848, e particularmente na era imperialista. Na época do imperialismo, surge um pseudo-historicismo reacionário em uma mistura de empirismo rastejante e de um misticismo subjetivista. Bem que a concepção de mundo nacional-socialista explore todos os resultados da destruição reacionária do historicismo, a destruição passada do historicismo autêntico não lhe é o bastante. Os nazistas consideram essa questão como tão essencial que o próprio Rosenberg intervinha a todo momento e proclamava claramente o caráter inconciliável de uma concepção da história universal, mesmo se ela é, de forma reacionária, enfraquecida e a concepção de mundo do fascismo hitleriano: “Nós acreditamos que não há uma verdadeira história universal no sentido da ciência racial e da psicologia, o que quer dizer que não há história segundo a qual todos os povos e todas as raças fossem levadas à uma fusão sistemática única. Segundo a qual deveria haver um projeto de cristianização de todas as raças, ao passo de que tudo isso serviria a humanização da pretensa humanidade. Nós acreditamos ao contrário que a história de cada povo representa por si só uma esfera vital.” Ou em outro trecho: “Nós acreditamos hoje que não existe história universal propriamente dita, mas somente a história das diferentes raças e povos.”(György Lukács em Fascismo Alemão e Hegel)

Após a ascensão do sobrinho de Napoleão ao poder, e ao passo que Guizot havia mandado fuzilar mais de 3 mil revolucionários e ordenado o exílio dos sobrantes em colônias francesas, a burguesia segue organizando o pensamento de extrema direita, de modo cada vez mais intenso em níveis nacionais, seja enfrentando novamente os trabalhadores revolucionários da Comuna de Paris (1871) seja atravessando a segunda metade do século XIX e convergindo com o fascismo e o nazifascismo, já na primeira metade do século XX.

Ademais,

o fato de basear uma construção da concepção do mundo em termos de filosofia da vida em biologia não possui nada de novo no período imperialista. O que é novo é o cinismo com o qual Krieck rejeita ciência e a biologia ela mesma, — ao contrário de seus predecessores, que tentaram ininterruptamente, através de reinterpretações, de conservar pelo menos a aparência de cientificidade — e é também sua nova concepção de mundo “baseada na biologia”, que é fundamentado de fato no nada das intuições sugeridas pela filosofia da vida. Ele se exprime muito claramente quanto a este “fundamento” da nova concepção de mundo: “ ‘Concepção biológica do mundo’ significa, entretanto, alguma coisa de essencialmente diferente que fundar a concepção do mundo sobre a disciplina científica ‘biologia’ já existente. O conceito de ‘vida’, no plano da concepção de mundo, diz respeito à totalidade, o conceito de ‘vida’ no sentido da disciplina científica ‘biologia’ é na melhor das hipóteses uma participação no conjunto, quando ele não é simplesmente derivado de um mecanismo universal.” Krieck explica então quais são as características dessa nova ciência fundamental à vida: “Não podemos nunca ‘explicar’ a vida por um princípio mecânico, assim como a totalidade não pode sê-lo por sua parte. Mas o engendramento, o nascimento e a morte são acessíveis por quem viveu: enquanto etapas do desenvolvimento de sua própria vida e da vida dos outros, são objetos do vivido e portanto são acessíveis por intuição. E a partir do vivido, intuição e compreensão se entendem em retorno ao universal.” A “performance” filosófica de Krieck consiste portanto simplesmente no fato que ele promove o comportamento empírico do irracionalismo moderno, que tornou-se trivial há tempos, no ramo da ciência biológica fundamental, e que por outro lado, com menos incômodo que seus predecessores, considera suas “experiência de vida” como categorias da realidade objetiva. Após ter portanto por esta via, a via da “vivência” do engendramento, o nascimento e a morte, apreendido a essência do universo, ele pode a partir daí deduzir o que quiser. O meio do conhecimento biológico é naturalmente a visão, a intuição… “o ‘sentido’ é sempre compreensível, mas nunca explicável… Aquele que se aventura a dar uma resposta sobre o ‘porquê’ ou ‘para quê”, este finge ter lugar no conselho da criação” (Essas últimas palavras são uma alusão irônica ao prefácio de Hegel à Ciência da Lógica. G. L.). A ciência biológica fundamental de Krieck se diferencia da filosofia geral da vida, não somente pela grande ousadia com a qual ele tira suas conclusões apodíticas de pressupostos inexistentes, mas também pelo fato que no local vago pelo pretenso aniquilamento da compreensão e da razão, da racionalidade e da ciência, não é uma imagem expressamente subjetiva que aparece, mas sim a propaganda nazista transposta em termos filosóficos e transfigurada em concepção de mundo. Nos o notamos principalmente na forma como ele determina o sujeito de sua intuição biológica. Segundo ele, não é o ego individual que é o sujeito do conhecimento, “mas todo o processo de conhecimento é carregado — enquanto fenômeno parcial do processo vital — tanto pela estrutura social, nacional, racial, histórica, como condição, como elemento determinante do modo de adquirir conhecimento e do produto deste conhecimento, da verdade em si. É aí que reside, na base, o conhecimento global.” O critério da exatidão da intuição é portanto para Krieck a adequação com o programa do partido nacional-socialista, com sua interpretação de dado momento dada pelo “Führer”. A essência da intuição consiste de fato em projetar uma imagem do ser humano que corresponde às exigências nacionais racistas. “É na imagem que o homem tem de si mesmo que verifica-se a biologia universal. Essa imagem se assenta em uma antropologia política nacional racial. Essa antropologia toma o lugar da filosofia fora de uso. Esta nova doutrina não somente deveria tomar o lugar da filosofia, mas também da religião. Na obra Mein Kampf, Hitler ainda aborda as religiões com diplomacia e restrições, e promete demagogicamente uma liberdade geral da religião. Mas após a tomada de poder por Hitler, Krieck já expressa bem mais abertamente que as velhas religiões devem dar lugar a concepção de mundo nacional-socialista. “Deus fala conosco… diretamente no reavivamento nacional”. O fundamento desta revelação é evidentemente a raça. Mas mesmo nessa concepção de mundo pretensamente baseada na biologia, a raça resta uma simples fórmula demagógica. Krieck, ele mesmo diz que a raça não é uma coisa, que não tem nada de material, “mas que ela é lei de orientação e de cultura, enteléquia, princípio formal. O ‘sangue’ é desta lei uma expressão simbólica imagética. (György Lukács em Fascismo Alemão e Hegel)

A aristocracia rebelde vinculada ao pensamento schopenhauriano e nietzschiano é emblemática nesse sentido. O nietzchianismo à sombra de Ernst Kriek foi um dos pensamentos instrumentalizados pelo terceiro Reich através da irmã do próprio Nietzsche (um adendo: Nietzche era muito próximo de Bruno Bauer, antissemita convicto cujas premissas hegelianas decadentes foram imprescindíveis para confecção de obras como o Anti-Cristo, de Nietzsche).

Na literatura hodierna, o identitarismo atualiza inconscientemente e distorce não apenas premissas neohegelianas pré-marxistas, porquanto é atravessado por uma longa herança histórica pela qual os neohegelianos mencionados e pensadores eugenistas convergem como fiadores da produção posterior da literatura filosófica que, em síntese excludente de todo e qualquer vestígio de Hegel, será o ponto de partida para a justificação de perspectivas antissemitas e antieslavas (embora o vínculo de Marx, inicialmente hegeliano de esquerda, com o insuspeito Feuerbach seja evidente e possa ser compreendido como algo a parte do que aqui está em discussão). De todo modo, cabe ressaltar com Luckácz o seguinte, para reforço da precisão do diagnóstico crítico:

Notamos claramente o porquê da dialética científica de Hegel lhes ser insuportável, porque essa concepção de mundo vê nela — quase com as mesmas palavras do velho Friedrich Schlegel, que tornou-se reacionário – um princípio satânico, o princípio do mal, do anti-alemão, do anti-racismo. Os neohegelianos fizeram tudo que esteve ao seu alcance para enfraquecer o caráter progressista e racional do hegelianismo, a fim de adaptar a filosofia hegeliana as necessidades reacionárias do período imperialista. […Mas], para o fascismo alemão essa adaptação não era suficiente. Como bem disse Dimitrov em seu tempo, “não é a substituição ordinária de um governo burguês por um outro, mas a troca de uma forma de estado de dominação da classe burguesa… por outra forma dessa dominação, a ditadura terrorista declarada.” Para essa ditadura, o fascismo hitleriano precisa de uma atmosfera espiritual na qual, no plano teórico, toda sensibilidade pela ciência e pelo controle científico dos fatos e das leis que o regem sejam aniquilados, na qual, no plano moral, todo resquício da alta consciência humanista do povo alemão foi esquecido, na qual o arbitrário absoluto do bando de aventureiros e de criminosos liderados por Hitler podem reinar sem partilha. Como os planos do hitlerismo em matéria de política interior e exterior só poderiam ser realizados em tal atmosfera, era absolutamente necessário o nascimento de uma filosofia correspondente, uma filosofia que não podia, nem em aparência, ser conciliada em nenhum ponto com a filosofia hegeliana.

Não é surpreendente que, já no século XX, movimentos minoritários em defesa um retorno em massa à África, como aqueles encabeçados por Marcus Garvey e em articulação política com a KKK (Ku Klux Klan), não sintam o menor receio de tomar como horizonte a assertiva: Nós fomos os primeiros fascistas, sendo sequestrados pela dinâmica consciente ou inconsciente, por má fé ou ingenuidade, pelos Labirintos do fascismo, como já sugeriu com vigor analítico de tese João Bernardo, tanto quanto Asad Haider, em Armadilhas da identidade.

Trata-se de uma pesquisa história não tão silenciosa, porquanto Lukács (Destruição da Razão), Losurdo (Nietzsche, o Rebelde Aristocrata), Harvey (A condição pós-moderna), Jameson (Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio), e alguns outros já apontaram nessa direção. De todo modo, trata-se de se passar por cima de Marx e das experiências revolucionárias enquanto memória histórica. Algo que se dá através da operação de uma lacuna na produção do pensamento histórico, sob pressão da hegemonia que mescla hegelianismo em decadência e negatividade rebelde fascistoide, ambos vinculados hoje em dia ao ianque como cultura do consumo de massas “alternativas”, “personalizadas”.

Tal tradição segue ainda mais forte no século XX, após a dominação estadunidense generalizar-se no pós-Guerra e no decorrer da Guerra Fria. Por conseguinte, dá um segundo impulso ao neohegelonietzchianismo amoral de cariz pós-estruturalista, sob encomenda da CIA. O objetivo é recodificar o currículo universitário, para que auxilie na reconfiguração acerca do que significa ser de esquerda enquanto ponto de partida de organização da juventude.

O conceito de esquerda passa a estar em disputa nas universidades norte-americanas, inglesas e francesas e, aposteriori, internacionalmente. Para enxotar o marxismo seria então necessária uma blietzskrieg reacionária internacionalista no âmbito intelectual imanente às torres de marfim universitárias, não apenas na esfera do consumo de entretenimento das massas. De algum modo seria preciso fundir as duas esferas, consumo de massas e estudos universitários. Essa fórmula permitiria erodir com mais ímpeto as experiências históricas revolucionárias, tanto quanto auxiliar como barreira de contenção dos trabalhadores de maio de 1968, em favor dos circuitos hedonistas dos afetos e barricadas do desejo.

Nada como uma boa terapia de choque contraditoriamente reacionária e hedonista para desbancar a disciplina revolucionária e a dialética inerente ao materialismo histórico enquanto meio de rigor na ação organizativa que daria vigor no enfrentamento ao status quo. Contra a dialética e a práxis emerge uma hermenêutica prática dos desejos. Tal chave de ação desejante é somada à vontade de potência iconoclasta de apaniguados acadêmicos, apologistas do tempo presente, um conjunto de agoras, instantes sobre instantes cujo conteúdo é o fluxo dos desejos como pseudodiscurso contra o poder instituído na sua forma biopolítica.

Trata-se da clara expressão do tempo do aqui e do agora, esvaziado de futuro e indagador da história, mas positivista na afirmação das pulsões mais selvagens e indomáveis. Trata-se do percurso de confecção de uma epistemologia curricular universitária cínica, vinculada à necessidade de esmagar o marxismo no ocidente como norte para ação de derrubada do poder. A tarefa maior comportava o seguinte objetivo: erodir a herança socialista e comunista nos eixos da baliza de conduta e organização política. Eis a operação de resgate nietzschiano da transvalorização de todos os valores, fomentado pelas academias ocidentais financiadas.

É então aí que pós-estruturalismo e a miséria da razão estruturalista sobem ao palco, sob as orientações dos órgãos de vigilância e controle social internacional. Não por acaso, a CIA prepara todo o terreno, porquanto exerce um trabalho preciso de desmantelamento do léxico da esquerda de tradição socialista e comunista, tal como de antemão era compreendida. No limite, era até necessário comprar grupos de pesquisa universitários, financiando docentes e suas produções bibliográficas para emergência irônica de uma esquerda conservadora adestrada, cujo partido Democrata pudesse chamar de sua. Quem Pagou a Conta? Ora, a CIA na guerra fria da cultura, já diria Frances Stonor Saunders.

Mais uma vez: tal hegemonia ideológica universitária foi produzida na década de 60 do século XX para recodificar o pensamento da esquerda na Europa e EUA, em complemento às dinâmicas do entretenimento e das trocas mercantis com Bernays, atualizadas no registro histórico de literaturas filosóficas, geográficas e psicológicas que recodificariam e cristalizariam uma nova espécie de psicologia das massas no pós-guerra. Em seguida, gera barricadas do desejo antissoviéticas com paroxismo em 1968, objetivando através da CIA a compra das subjetividades juvenis numa posição de apolitização e emergência dos desejos: esfera de reafirmação da rebeldia universitária. Nesta equação, expande-se consequentemente para todo o globo ocidental na virada do século XX.

A partir do final da primeira metade do século XIX até agora se torna atestável uma história silenciosa do desarme ideológico da esquerda revolucionária nos termos expressos. O agravante é o complemento da teologia política como parte do léxico identitário que se formata no percurso da história de desarme dos oprimidos. Para tanto, são operacionalizados ao mesmo tempo para perseguirem livros e linguagens que sinalizam o mínimo exercício racional do pensamento histórico como meio de aquisição de experiências pretéritas: algo semelhante ao que Ray Bradbury já exprimiria em Fahrenheit 451 (obra adaptada para o cinema por François Truffaut).

Reparem, trata-se aqui de afirmar, portanto, que o identitarismo tem apreço por ser contra qualquer tipo de experiência literária e prática de auto-organização histórica que não parta da volatilidade das libidos em complemento com o hedonismo mercadológico. Essa premissa está contida nos marcos de uma era ideológica demarcada por políticas com horizontes de expectativas futuras decrescentes, pela qual os agentes sociais são transmutados subjetivamente e esteticamente em espectros mercantis beligerantes do capital “maleável e plástico” presentista ausente de futuro revolucionário em perspectiva.

Aqui, o agravante é o de que os sujeitos afirmam a si mesmos ao passo que são flexibilizados no labor para exercerem sem muitas esperanças o multitarefismo que demarca idealmente o pano de fundo do cárcere dos regimes de superexploração, sob a seguinte premissa: “sou um só, mas me expando como muitos outros para, com salários mais baixos, desempenhar múltiplas funções laborais: unidade de subjetividade beligerante juvenil, mas multiplicidade laboral que redistribui a mim mesmo na topologia de muitos outros papeis estéticos gamificados e labores sociais”. Unitas multiplex ideológica e esteticamente empoderada no aqui e no agora, na toada concreta da reafirmação silenciosa da superexploração e esvaziamento de si pela falta da alteridade, ou seja, de si mesmo na diferença. Homo homini lupus, homem é lobo de outro homem, tanto quanto de si mesmo. Mirando-se no presente como infinito por necessidade e aparente sensação de infinitude envaidecida, decai despotencializado pela ausência da presença dos outros em vida, já que agora também são seus inimigos.

No limite e num espectro geopolítico mais amplo, não é por acaso que tanto identitáristas de direita (trumpistas e bolsonaristas alinhados aos setores republicanos) e de esquerda (democratas, obamistas, bidenistas, setores psolistas e alguns outros) demonstraram não poucas vezes que, apesar de aparentemente antagônicos, são, por exemplo, assertiva e cronicamente sinófobos, antivenezuelanos, sionistas, antiárabes, antipalestinos, russófobos e, inclusive, claramente anticomunistas.

Como está mais do que evidente, há uma relação promíscua simbiótica entre imperialismo, identitarismo, racismo geopolítico e anticomunismo, perpetuando uma conjuntura beligerante que implanta condições de recrudescimento de um tecido social cujo conteúdo é semelhante ao de uma espécie de fascismo internacional. Não se trata de mera coincidência ou espelhamento arbitrário entre passado e futuro.

No domínio do espectro total da política burguesa ocidental, e ao se tratar do tópico em questão, ambos (democratas e republicanos) são geopoliticamente racistas em suas cruzadas imperialistas, tanto quanto atuam com a mesma agenda identitária, com o objetivo de servirem como meio de distribuição e defesa preventiva de um pensamento único tanto no interior dos EUA quanto, em efeito cascata, no interior de países neocolonizados subjetiva e economicamente, operando claramente como correias de transmissão de reprodução ideológica.

Estando tudo dominado, precisam aquartelar o Ocidente e dobrar a aposta no tom beligerante que segue numa crescente internacional antioriental, na garantia de compra de apoio popular para operarem em defesa do “Capital do Oeste” contra o “Capital do Leste”. Independentemente das fusões, monopólios e oligopólios do capital internacional as burguesias mundiais estão em disputa porque algumas delas se sentem realmente mais puras de alma, e, para tanto, precisam recorrer a apoios beligerantes teológico-políticos massificados. Quanto mais o império “romano-ianque” implode maior a aposta na guerra sob amparo do apoio identitarista abduzido pela Reuters. É precisamente aqui que o [anti]orientalismo e as xenofobias europeias continentais antiimigração operam numa lógica racista identitarista pró-ocidente e nacionalista unívoca, atuando, portanto, como meio uníssono de desorientação pedagógica da classe trabalhadora na toada do internacionalismo universal proletário humanista.

Efeitos estruturais e rebatimentos sobre a realidade conjuntural

Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras, mas só há duas nações — a dos vivos e dos mortos (Mia Couto, “Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra”)

“Não pode haver amizade aonde encontramos a crueldade, a deslealdade, a injustiça. Quando os maus se reúnem há uma conspiração, não uma sociedade. Não se amam, mas se temem. Não são amigos, mas cúmplices (Étienne de La Boétie).

Muitas nações, inclusive a brasileira, parecem ainda estarem situadas no século XIX, quando falamos de problemas relativos às teologias políticas que foram engendradas há 2 séculos atrás, apesar de suas variações. Identitarismo vem daí. Ressalte-se que uma leitura marxiana séria do identitarismo tupiniquim ainda não foi feita a partir do seguinte prisma analítico: identitarismo como negação da identidade enquanto princípio fundado na articulação da passagem intersubjetiva de eu nos outros, enquanto escalonamento plural e múltiplo de experiências humanistas (eu/outros) para constituição de uma comunidade superior. Partindo dessa premissa, irônica e ardilosamente reafirma as opressões em suas mais diversas esferas, bem como intensifica ardilosamente as explorações capitalistas, lá mesmo aonde diz combatê-las (decerto em função de sua gênese histórica na síntese entre extrema-direita e hegelianismo decadente de esquerda, bem expressos nas sessões anteriores). Tal pensamento mágico nada de braçada no Brasil, conquanto turbinado pelo imperialismo e pelas novas tecnologias, já que o Deep state ianque é até os dias de hoje a principal correia de transmissão do ardiloso legado em questão.

E mais, desvelar o caráter teológico-político do que aqui está em jogo é necessário. A nova religião – politicamente organizada pelo imperialismo o qual encadeia política, econômica e ideologicamente os estados nacionais numa relação de interdependência para o monopólio dos meios de produção do corpo e da mente dos indivíduos – é muito forte no Brasil neocolonizado econômica, política e ideologicamente. Algo que se multiplica diferencialmente por meio do identitarismo, de direita e de esquerda.

Em decorrência do expresso, cabe dizer que amiúde emergem linchamento sociais, na medida que, com suas bravatas, voltam-se claramente contra o esforço orientador de escuta ativa de párias sociais no tocante a tópicos unificáveis como: [1.] relação entre racismo, misoginia e homofobia como expressões ou dobradiças ideais indexadas ao capitalismo decadente do qual padecemos; [2.] relação entre mais-valia e condições desumanas de vidas desnudadas para além de tribalismos com cartilhas reprodutíveis e unidimensionais com evidente cariz neopentecostal (inclusive na subjetividade daqueles que dizem negá-lo por exprimerem léxicos aparentemente distintos); [3.] D-M-D’ e suas complexas formas de expressão vitais, dadas pela articulação diferencial entre produção, distribuição e circulação de mercadorias, principalmente as mercadorias humanas, ou seja, mercadoria força de trabalho sob a opressão lógica da matemática do tempo de trabalho socialmente necessário, que implica em autoconsumo e abate dos trabalhadores em um espectro político mais amplo, os quais produzem mercadorias ao passo que se autoconsomem — consumo produtivo autofágico — na finitude vital que se escorre pelo ralo; [4.] disputas, vigilâncias e perseguições no âmago dos espaços de trabalho, criando um evidente clima de colapso da solidariedade entre os pares explorados, atuando, portanto, como milícias linchadoras fascistizadas e subornáveis para perseguição de dissidentes, sob a guarida de interesses organizacionais teológico-políticas, seja na esfera pública ou na privada.

Muito para além do desconhecimento dos famigerados jacobinos negros e François-Dominique Toussaint L’Ouverture, não é um acaso o agravante de que se afirmam nesta toada justamente com o objetivo de, ironicamente, desempenharem o papel de sonegadores históricos, ocultando experiências revolucionárias socialistas e marxistas extremamente significativas, relativamente às lutas pelas libertações nacionais em solo africano. Nesse sentido, desconsideram, ou melhor, desprezam não apenas a existência de tais revoluções em seus léxicos, mas figuras da grandeza de Amilcar Cabral (Guiné-Bissau), Samora Machel (Moçambique), Thomas Sankara (Burkina Faso), Agostinho Neto (Angola), Kwame Nkrumah (Gana), Govan Mbeki (Transkei), Patrice Lumumba (Congo), Walter Rodney (Guiana), etc.

Ademais, feministas revolucionárias extraordinárias, como Nadejda Krupskaya, Eleanor Marx, Clara Zetkin, Alexandra Kollontai, Olga Benário, Lyudmila Pavlichenko, Kiseliova, Bulatova, Morozova, Afeni Shakur e tantas outras são simplesmente desconsideradas, impedidas de circular por meio de enunciações nos espaços de organização popular sob domínio institucional pequeno-burguês identitarista. A razão do desprezo sofisticadamente elaborado é muito evidente: impedir o conhecimento da existência dessas mulheres para, com isso, apagar sua relação endógena com a luta de classes revolucionária e seu papel histórico de enfrentamento do nazismo, do racismo e do machismo através de uma práxis comunista – objeto geopolítico de cancelamento no território nacional.

Tocar nesses tópicos é a máxima heresia anticapitalista. Portanto, erodir e impedir as condições da circulação do que está em jogo supõe uma força tarefa policialesca pró-imperialista. Tal é o papel do identitarismo, a saber, atuar por procuração como cão de guarda cultural em defesa dos interesses dos EUA, lançando mão de linchamentos presenciais e virtuais em diversos países. A missão reacionária é cristalina: apagar os rastros históricos e literários dos múltiplos registros revolucionárias da oralidade popular, registros de pessoas que não tinham receio de se designarem comunistas ou nacionalistas, sob a perspectiva de transições socialistas (Não apenas não tinham receio de se designarem como tal, porquanto seus vínculos com a URSS, China, Vietnã e Cuba eram expressos como virtudes).

A título de nota, cabe por fim ressaltar, por exemplo, que, quando citados nos meios alternativos acadêmicos, revolucionários, escritores e artistas como Frantz Fanon, John Steinbeck, Frida Kahlo, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Jorge Amado, Gabriel Garcia Marquez, Ernest Miller Hemingway e outros mais não podem ser lembrados como indivíduos que circularam pela China, Vietnã, Cuba e/ou URSS. É estritamente cerceado em espaços públicos de esquerda ou direita o compartilhamento da história integral desses imensos agentes sociais humanistas. Trata-se do apagamento de suas histórias em larga medida, reduzindo-os estritamente aos enunciados de obras disponíveis.

Ademais, no Brasil, esquecemos que um grande problema ainda não enfrentado é o de quando aqueles que se consideram finitos intuem serem infinitos. Absolutizam a sua existência e fazem permuta entre ela e o infinito. Daí nascem os piores afetos e sentimentos: soberba, vaidade etc. Não custa aqui remeter ao ensaísta cético Michel de Montaigne em seu Ensaios, Livro II: Capítulo “Apologia de Raymond Sebond”:

De todas as criaturas, a mais frágil e miserável é o homem, mas ao mesmo tempo, como diz Plínio, a mais orgulhosa. Ele se sente e se vê colocado na lama e no esterco do mundo, amarrado, pregado à pior parte do universo, (…) e eis que por sua imaginação se alça acima da órbita da lua e supõe o céu a seus pés! Pela vaidade mesma desta imaginação iguala-se a Deus, atribuindo-se as próprias qualidades divinas que ele mesmo escolhe. Separa-se das outras criaturas, distribui as faculdades físicas e intelectuais que bem entende aos animais, seus companheiros.

Como deveria se pressupor, o encontro parcial com a infinitude da vida em seus processos complexos e paradoxais implica, por outro lado, a precisão do abandono provisório de si, num ato prévio de despersonificação o qual intenta colocar a autoimagem narcísica de lado, ao passo em que outras vidas tomam conta de nosso lugar efêmero.

A despossessão egóica assume uma forma mais ou menos madura aí, ou seja, pela afirmação da alteridade que nos atravessa, e pela qual o “eu” não deve ser substancializado ou projetado para a eternidade em posição de combate no tocante aos pares.

Obviamente, o inverso desse pressuposto era denominado pela filosofia e por grandes revolucionários como, por exemplo, “hipernarcisismo”, apontando que os sujeitos poderiam ser capazes das piores atrocidades nas vésperas de se afogarem demasiadamente em sua própria imagem egocentrada em estado suicidário. Em nome de uma verdade subjetiva particular, intentam e intentarão dobrar o mundo ao molde de sua imagem e semelhança, encabeçando desserviços reacionários e antirrevolucionários.

Preocupado com tais efeitos como meio de embarreiramento da continuidade de lutas revolucionárias relativamente às ações populares, figuras insuspeitas como Ho Chi Minh já denunciavam com vigor o expresso em Da moralidade revolucionária. Então, nesse caso, toda imagem da verdade projetada por um sujeito que se quer absoluto é julgada criteriosamente por muitos pensadores e revolucionários como falsa e passível de crítica, porquanto é reduzida a uma projeção de delírio imaginário autoblindado e ensimesmado, pelo qual os indivíduos se confundem com a imagem de uma divindade, criada a partir de si.

A confusão entre efeito (criações de si) e causa (si mesmo), criador (eu) e criatura (minhas projeções fantasmáticas), gera e reafirma a persistência da autoposição egóica dos indivíduos que, em seus delírios, pensam-se eternos, mesmo lá onde dizem se colocar como singelos representantes de algo maior. A representação de algo atesta a autoposição de si mesmo. Ao fingir-se apequenado fantasia uma grandeza, para em seguida ver-se submetido a ela no intuito de amordaçar inocentes.

Daí uma das fontes de problemas culturais e históricos, pela qual a afirmação de algo imaginado como sendo absolutamente verdadeiro admite a construção de gatilhos que possuem como alvo tensões entre etnias e povos diversos (intra e extraterritoriais), que pretendem mutuamente se colonizar por se verem enquanto mais verdadeiros ou mais puros do que outros (tal projeção parece ter nas posses e propriedades privadas os meios de reafirmação da constatação da ideia de que se é superior por decreto de lei transcendente, mesmo que se trate da afirmação de que são as divindades imaginárias que comandam as vidas privadas).

Nada de novo até aqui, porquanto, como muitos já sabem, o que está expresso acima significa dizer que, em função da falta de uma dúvida cética a respeito de si, os indivíduos contemplam seus reflexos com a soberba dos deuses que criaram, e pensam assim ser mais puros do que aqueles com os quais não concordam, o que engendra problemas que ainda hoje estão de pé (vide a ideia de rebaixamento do outro em função de ser pobre ou ter algum defeito corporal, julgado assim pelos assoberbados pelo fato de que não possuem a “verdadeira” divindade no coração. Não agradeceram o suficiente aos seres divinos para merecerem uma vida melhor. Nesse caso, dizem, sua doença e pobreza estão legitimadas).

No Brasil, esse tipo de raciocínio é mais comum do que se pensa. Circula em grande escala. É como se jamais tivéssemos sido contemplados com qualquer espécie de conquista de bens culturais minimamente modernizantes, que permitisse o impedimento da infâmia medievaloide pré-cartesiana (o que não significa dizer que tudo que é pré-moderno deve ser enterrado como lixo histórico).

O apagamento da cultura e da história em seus diversos matizes, a caça psicótica às conquistas (contraditória, claro) do iluminismo filosófico como passo basilar de humanização da civilização brasileira caiu por terra.

A certeza empedernida acerca de si, agora em expansão com o boçalismo ultra high-tech mediado pelas redes sociais e metaversos, bem como princípios finitos de apaniguados tomados como absolutos são fontes de exclusão e de apologias que recrudescem seitas tropicais neopagãs (independentemente de se intitularem ou não de cristãs). Propagam-se como meios de transmissão de novas tábuas divinas, conquanto sob outros registros semânticos.

No limite, como diria Marx, a humanidade aqui ainda continua a cair na mesma cilada de sua pré-história, segundo a qual o jogo dos instintos mediados por sensações histéricas de acesso à verdade criam destacamentos sociais protofascistas por todos os lados. Produzem assim castas de seres que se sentem mais eternos e especiais, quando o que ocorre é apenas a falta de ceticismo e indagação criteriosa a respeito dos limites de suas próprias crenças.

Por óbvio, o que aqui está sendo dito não é original, nem pretende ser. Trata-se apenas da reafirmação de algumas premissas basilares que serviram como elementos de amparo das investigações e pesquisas que originaram o renascimento e a modernidade como vetores encarados aqui como passo inicial para a aquisição de (não sem violência e paradoxos) lampejos de humanismo.

Se o esquecimento disso agora se segue a todo vapor, em contexto de fase de regressão histórica hiperbolizada do capital em colapso, tanto quanto voltado à ascensão da economia das guerras mundiais, só resta dizer que, ironicamente, da luz da modernidade capitalista emerge uma nova espécie de obscurantismo tupiniquim.

A regressão civilizatória com a qual nos deparamos no presente momento permite apontar que, dos escombros do moderno implodido por não cumprir a totalidade de suas promessas, se seguiu a era do tecnofeudalismo, em torno do qual o egocentramento e o escravagismo se espraiaram no contexto da produção de tipos sociais decadentes, os quais propõem claramente a apologia do esvaziamento das lições da história que anunciariam mínimos lampejos de emancipação humana.

Na era da caça às palavras e articulação ordenada da linguagem, surge o bodejo e o grito ensandecido de clãs, somados ao cinismo que consta como parte da falência civilizatória da crítica acerca das próprias condições em que agora nos arrastamos como “anjos” despedaçados, abortados após voos revolucionários serem massacrados por todos os lados.

Junto com a queda se segue a erosão da história das lutas humanistas que miram um futuro para além do niilismo presentista que nos asfixia na medida da unimensionalidade dos eternos instantes do agora e seus avisos de incêndio, que soam como alarme pelo qual a ansiedade e a depressão tomam conta e dão a toada das histerias ocidentais.

A história foi pilhada (por vezes reafirmada equivocadamente) como meio de conhecimento de processos humanos minimamente civilizados, à exata medida da reafirmação da soberba e da imbecilidade que opera como regime ideológico anárquico feito para o capital engendrar os novos primatas do pós-século XX. O diagnóstico de Pearl Jam em Do the evolution não era de todo errado:

Em essência, é justamente o expresso que demarca a conjuntura a partir da qual emerge o pós-modernismo e a subsequente crise da linguagem como meio basilar de troca e partilha de experiências humanas significativas. O preço disso é justamente o dos engarrafamentos dos indivíduos dentro de vácuos subjetivos, átomos esvaziados de energia vital dialógica. Algo que cineastas como Jean-Luc Godard, compreenderam com grande perspicácia em Adeus à Linguagem.

Eis um ponto de partida para, não por acaso, entendermos o que significa a hodierna idiocracia social e demencialismo cultural que abduziu a sombra das maiorias ruidosas enquanto espectro ideológico subjetivo que demarca clivagens de identidades beligerantes, as quais agora se preparam para a páscoa dos mortos de humanidade como desesperança e meio de entretemor generalizado, em nome de uma entidade não muito bem conhecida, mas que todos dizem conhecer muito bem, principalmente ao se olharem nos espelhos quebrados por falsas imagens das quais dependem para se sentirem vivos.

Um dos meios de enfrentarmos o que está em questão neste escrito é através do jornalismo crítico da economia política, tanto quanto por meio de um exercício herético de rememoração que produza um enfrentamento histórico organizado na disputa da hegemonia ideológica. Para tanto, urge trazermos e darmos impulsionamento dos não abduzidos pelo identitarismo ao palco.

Nota:

  1. Leonardo Lima Ribeiro é Mestre em filosofia (UECE), graduado e especialista em Comunicação Social, com ênfase prática em cinema e publicidade voltada ao jornalismo sindical. Também é designer, diagramador e editor do site da revista A Comuna; gestor de conteúdo digital do canal TvAComuna; membro do comitê editorial de publicações da revista. Autor dos livros Necropolítica do Capital e Ciência Intuitiva e Suprema Liberdade na Ética de Spinoza. Possui uma diversidade de ensaios e artigos publicados em revistas especializadas e, também, de forma independente. Foi professor e orientador de estágio no ensino básico nas escolas profissionalizantes do Governo do Estado do Ceará (Curso de Multimídia), bem como já foi docente universitário (Universidade Estadual do Vale do Acaraú).

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