Dandara dos Palmares nasceu em Porto Alegre

Por Mário Maestri

Em 21 de maio, no jornal A Tarde, Luiz Mott verteu bilis e fel ao comentar o uso, na Bahia, de Dandara dos Palmares como exemplo paradigmático de heroína negra. Em verdade, em 2019, ela fora consagrada como tal ao ter seu nome inscrito no chamado  “Livro de Heróis e Heroínas da Pátria”, por decisão soberana do Senado, que não prima pela escolha cuidadosa dos homenageados. Três anos antes, 6 de fevereiro fora definido no calendário do Rio de Janeiro, por lei estadual, como o  Dia  de  Dandara  e  da  Consciência  da  Mulher  Negra.   

A razão da rabugice de Luiz Mott é simples e pra lá de justificada.  Dandara dos Palmares e os três filhos que teria tido com Zumbi jamais existiram. É uma invenção, como a Mulher Maravilha ou Ana Terra, do romance O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo. E, ao inventarem Dandara, exageraram no conto. Mott lembra que dois dos três pretensos filhos de Dandara com Zumbi atenderiam pelos nomes de “Harmódio e Aristogíton”, “dois heróis atenienses que teriam matado o tirano Hiparco” no quinto século da nossa era. Apenas um deles, Matumbo, não teria um nome grego! Realmente, é dose!

Um simples reparo 

Conhecendo os atuais tempos bicudos, Mott previu que o simples reparo em defesa da verdade histórica seria recebido de pedras na mão, sendo explicado como a tentativa de um macho branco eurocêntrico, expoente da branquitude, de silenciar uma das maiores heroínas negras do passado.  Dandara é apresentada como diplomata, exímia capoeirista, senhora das artes militares, líder de homens e mulheres. Sobre sua origem, propõe-se que talvez fosse africana da nação Jeje Mahin, no Benin [Apud CAETANO & CASTRO, 2020].  Ela teria se suicidado, em 6 de fevereiro de 1694, para não ser escravizada, quando os luso-brasileiros escravistas ocuparam a Cerca Real do Macaco, o último reduto palmarino. [FREITAS, 1973; GOMES, 2005.] 

A própria historiografia acadêmica de viés identitário já propusera que Dandara, como outras “protagonistas negras”, teria sido excluída da “História oficial do Brasil contada em nossas escolas”, devido, “dentre vários outros fatores”, além do racismo, ao “machismo” e ao “sexismo ainda existente em nossa sociedade.” Nesse silenciamento, as autoras não arrolam o classismo, que golpeia e sufoca a memória da história  de lutadores e lutadoras  das classes oprimidas.  [CAETANO & CASTRO, 2020.]

Dito e feito. No dia seguinte, 22 de maio, no mesmo jornal, Ângela Guimarães respondeu indignada ao reconhecido estudioso da escravidão brasileira. No artigo  “Dandara dos Palmares, Heroína do Brasil”, ela propõe que a “história” do negro  no Brasil “foi propositadamente apagada, e sem chance de recuperar”. Afirmação destrambelhada. Os mais de três séculos de cativeiro no Brasil produziram milhões de documentos sobre os trabalhadores e as trabalhadoras escravizados. Em parte, eles foram estudados por uma grande quantidade de cientistas sociais que produziram, não raro, trabalhos excelentes. E essa documentação revela multidões de mulheres escravizadas, heroínas de carne e osso, que resistiram, de variados modos, à escravidão. Não existe necessidade de reverenciar protagonistas imaginárias.

É verdade que essa rica historiografia demorou-se em focar os holofotes nas mulheres, crianças e velhos escravizados. Porém, nos últimos tempos, avançou-se na recuperação desse atraso. É já grande o número de artigos, ensaios, etc. abordando especificamente esses protagonistas históricos semi-esquecidos. Um dos primeiros trabalhos sobre a mulher escravizada no Brasil é, de Maria Lucia, irmã de Mott – Submissão e resistência: a mulher na luta contra a escravidão. [MOTT, M.L. 1988.] Certamente a secretária de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais da Bahia conhece ao menos parte dessa imensa e rica produção bibliográfica diretamente atinente às suas funções.

Não havia tabelião

Ângela Guimarães ironiza a afirmação de Mott, que estaria exigindo registro do casamento de Dandara e dos filhos, inexistindo “cartórios” nos Palmares para tal. Luiz Mott é um reconhecido estudioso do período colonial e imperial.  [MOTT, 1988, 1985, 1987.] Sua deliciosa biografia de Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz e Rosa Courana (Costa de Ajudá, 1719-Lisboa, 1778), mulher africana escravizada no Brasil e em Portugal, talvez a mais antiga escritora negra do nosso país, acaba de ser lançada em segunda edição ampliada, pela Companhia das Letras. [MOTT, 1993.] Folga dizer que esse livro, de mais de 700 páginas na primeira edição, foi escrito apoiado em uma muito vasta documentação primária arquival. 

Luiz Mott afirmou, apenas, o que há muito é sabido. Ou seja, não existir “provas documentais” sobre a existência de Dandara e seus pimpolhos. Nem uminha. A documentação palmarina existente no Brasil e em Portugal tem sido vasculhada por inúmeros investigadores. Ainda falta fazer o mesmo quanto à guardada nos arquivos holandeses. Até eu curiosei no Arquivo Ultramarino,  sobre Palmares, quando por lá passei, à procura de registros sobre  Fernão de Oliveira [1507-1581], o primeiro gramático da língua portuguesa e pioneiro do antiescravismo em Portugal. [MAESTRI, 2022.] E temos compilações exaustivas da documentação arquival palmarina. [ENNES, 1938.] Resumindo. Como proposto, até hoje, ninguém encontrou referência a Dandara ou a qualquer outra esposa -ou esposas- do último comandante militar de Palmares.

Naqueles tempos, não apenas na África Central, um chefe militar de destaque praticava a poligamia, por prestígio e por exigência de alianças políticas. Mesmo as referências diretas ao líder militar de Palmares são extremamente raras. Zumbi, em verdade, N´Zumbi, assim como N´Ganga N´Zumba, eram  título políticos angolanos. Há indícios na documentação escrita e oral que o nome próprio de Zumbi fosse algo próximo a Sweca. Eu mesmo ouvi essa referência, na boca de um velho camponês, ao pé da Serra da Barriga, em inícios dos anos 1980.  

Dandara é porto-alegrense!

Eu acredito, entretanto, saber onde nasceu Dandara. Em Porto Alegre! Possivelmente em 1983. E não estou brincando. Vou me demorar um pouco na apresentação dessa minha hipótese. Vamos lá. Em 1971, quando a ditadura enfuriava no Brasil, o historiador, advogado e jornalista Décio Freitas publicou, em Montevidéu, onde se refugiara do golpe de 1964, o livro Palmares:  la guerrilha negra, na editora  Nuestra América. Décio contou-me e contava que comandantes da guerrilha uruguaia tupamara haviam lido os originais, que ele temera terem sido perdidos.  

Em 1973, discretamente, a pequena editora porto-alegrense Movimento, de esquerda, lançou o livro em português, língua na qual fora escrito. Mas, não havia que abusar. Naquele ano e no seguinte, a ditadura reprimia a guerrilha no Araguaia, organizada pelo PCdoB. E, naquele então, ao contrário de hoje, nossas classes dominantes juravam que não havia uma questão negra no Brasil.  Por precaução, o título do livro foi modificado para Palmares: a guerra dos escravos.

Palmares: a guerra dos escravos, de Décio Freitas, é um marco da historiografia da escravidão no Brasil. Até então, o principal livro que contávamos sobre Palmares era O Quilombo dos Palmares, escrito por Édison Carneiro, comunista, publicado em 1947, na editora Brasiliense, de seu camarada Caio Prado Júnior. Também com problemas com a ditadura getulista, o livro conhecera, antes, uma edição em espanhol, no México.  Entretanto, Édison Carneiro, seguindo a cartilha estalinista, negou a resistência dos trabalhadores escravizados como luta de classes. A leitura pecebista abastardada do passado pré-1888 defendia como contradição dominante a luta entre  latifundiários e camponeses. Os cativos sofreriam a história e não a fariam.

Um Francês Trotskista no Brasil

Em 1956, apoiando-se factualmente sobretudo no livro de Édison Carneiro, Benjamin Péret, intelectual francês trotskista e fundador do surrealismo, em uma segunda estadia no Brasil, país com o qual mantinha laços familiares e políticos,  publicou em dois números da revista Anhembi o ensaio sintético Que foi o quilombo de Palmares? [PÉRET, 1956.]

Benjamin Péret invertia o proposto por Édison Carneiro ao defender a resistência dos cativos como luta de classes. Propôs, igualmente, que a vitória de Palmares, que via historicamente como impossível, teria avançado o desenvolvimento da antiga formação social brasileira. O que era uma revolução epistemológica. O artigo foi literalmente cancelado e esquecido. O trabalho de Péret foi apresentado, em livro, meio século mais tarde, pela editora da UFRGS, em edição preparada e apresentada por Robert Ponge e por mim. [PERET, 2002.]

Em 1952, o jovem comunista Clóvis Moura, desrespeitando as diretrizes partidárias, concluiu a redação do livro Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas. Nele, propunha igualmente a resistência servil como luta de classes e o caráter escravista do Brasil pré-1888. Clóvis foi desestimulado na redação do livro por Édison Carneiro e, quando pronto, teve sua publicação rejeitada pela Brasiliense, de Caio Prado Júnior. Ambos eram camaradas, no PCB, de Clóvis Moura, que terminou migrando, de mala e cuia, para o PCdoB.  Rebeliões da senzala foi publicado apenas em 1957 na pequena Editora Zumbi, de curta vida e menor alcance. [MAESTRI, 2022.]

Décio Freitas apoiou-se em Édison Carneiro, em Clóvis Moura, em Benjamin Péret e em outros autores, superando-os na apresentação dos sucessos e sobretudo no  sentido referencial da confederação dos quilombos de Palmares. Para tal, serviu-se sobretudo da já importante documentação editada conhecida. Construiu, assim, a primeira leitura exaustiva dos quilombos de Palmares, em um viés marxista,  como parte da luta de classes de uma sociedade colonial  luso-brasileira escravista. 

Radical e inovador

O livro, redigido por jornalista de texto cintilante, profundo conhecedor da história do Brasil, acabou tendo um importante  sucesso de público, apesar de divulgação restrita e do silêncio da imprensa castrada pela ditadura. Sobretudo, é importante compreender o momento e o objetivo daquele livro. Décio Freitas escreveu Palmares: a guerra dos escravos como parte da luta contra a ditadura. Relatava a saga de uma resistência armada decenal dos explorados contra os exércitos luso-brasileiros, sob a direção de um general  dos oprimidos. Tratava-se de um livro dirigido para o grande público de esquerda, sem notas de pé de página. 

   O livro teve certamente uma repercussão muito além da esperada inicialmente pelo autor, que se transformou na referência nacional sobre Palmares e consagrou no Brasil a figura de Zumbi. Sua obra e ele não foram, porém, jamais, digeridos pela Academia, com destaque para a sul-rio-grandense, que, no geral, sob o regime militar, mantinha-se em um forte apoliticismo científico. Em 1978, 1981 e 1982, a obra foi reeditada em segunda, terceira e quarta edição pela Graal, do Rio de Janeiro, conhecendo uma quinta e última edição pela Mercado Aberto, de Porto Alegre, em 1984.

A consagração do trabalho levou a que Décio Freitas viajasse a Lisboa, de onde trouxe fotocopiada uma muito rica documentação original sobre os sucessos, que publicou, mais tarde. [FREITAS, 2004.] Pude ler a transcrição datilografada dos documentos, antes da publicação. Ela permitia precisar e enriquecer o que fora dito, mas, não apresentava nada de realmente novo. Entretanto, na terceira edição, de 1981, no sexto capítulo, dedicado a Zumbi, Décio  Freitas apresentou uma biografia novelesca do comandante militar quilombola, sobre o qual, até então nada se sabia.  Freitas literalmente retirava Zumbi das sombras em que a documentação o mantinha. Segundo ele, encontrara em Portugal informação arquival, que revelava a detalhada e rocambolesca vida  de Zumbi, antes de ser Zumbi. Coisa de não se acreditar! Mas isso veremos a seguir, com maior vagar.

Uma andorinha não faz verão

Em 1977, voltei a Porto Alegre, após seis anos de exílio, iniciado, no Chile, da Unidade Popular, e terminado, na Bélgica, devido ao golpe de 1973, onde concluiu minha graduação, mestrado e iniciei tese de doutoramento. Ainda em Bruxelas, Rogério, meu irmão menor, me presenteara o livro de Décio sobre Palmares, que me causara forte impressão, pela forma e conteúdo. Sobre a história do Brasil, eu sabia muito pouco. Em minha dissertação, tratara da história da África Negra Pré-colonial, nos séculos 15 e 16, sobretudo nos territórios da atual Angola. [MAESTRI, 1978.]

Desembarquei em Porto Alegre, em 1977, propondo-me a defender tese de doutoramento sobre e o escravismo no Rio Grande do Sul, a partir do trabalho e da resistência do trabalhador feitorizado. [MAESTRI, 1984.] Nos anos 1970, o escravismo era tema marginal da historiografia brasileira, em geral, e sul-rio-grandense, em especial, por razões que iam muito além da pressão e vigilância da ditadura militar. Contavam-se nas mãos dos dedos os cientistas sociais que se dedicavam a essa questão. Sobretudo quando analisada desde a ótica dos escravizados.

Estabeleci contato com Décio Freitas, o único historiador no Sul que se ocupava da escravidão brasileira.  Por alguns anos, pude discutir com ele sobre a África Negra, a escravidão colonial, a sociedade nacional. Sobre a escravidão no Sul pouco estudara e menos publicara. Muito aprendi nessas conversações. Décio me orientou, igualmente, na arte jornalística de escrever para ser lido, então pouco praticada nos meios acadêmicos. Mantivemos contato quando me transferi para São Paulo e, a seguir, em 1982, fui lecionar no Rio de Janeiro, na Santa Ursula e na UFRJ. Quanto a ele, mudara-se para Alagoas, convidado para lecionar na UFAL e organizar o primeiro simpósio internacional sobre Palmares.

Segredo de Estado

Durante aquele encontro internacional, em Maceió, conheci, entre outros, Luiz Mott e Clóvis Moura, também convidados por Décio Freitas como referências sobre o estudo da escravidão e da resistência dos escravizados. Luiz Mott escrevera primorosos artigos sobre a escravidão pastoril no Nordeste, entre outros importantes trabalhos. Décio voltou para o Rio Grande do Sul e eu fui estudar a escravidão greco-romana e trabalhar como jornalista, por uns anos, em Milão, onde ele nos visitou. Retornara de uma viagem à Líbia, por convite de Khadafi, interessado talvez no valioso e pioneiro livrinho que escrevera sobre as revoltas malês da Bahia – Insurreições escravas [FREITAS, 1976]. Teria recebido um bom dinheiro pela edição em árabe do livro. Foi ao menos o que ele me contou. 

Não me recordo em que ano, historiador amigo, hoje  referência nacional sobre os estudos palmarinos, me inquiriu se sabia algo sobre a origem dos dados biográficos de Zumbi, apresentado por Décio Freitas, que se negava a explicar a sua origem. O jovem historiador, que eu conhecera como estudante da UFRJ, me alertou para o eventual interesse de Freitas  em apimentar a nova edição. O que não estranhei. Desde a apresentação da primeira edição de Palmares, ao descrever os limites e a pobreza das fontes, o autor se referiu a “lacunas” que “jamais” poderiam ser “supridas”. O que obrigaria o historiador a “mobilizar a imaginação”. [FREITAS, 1984:114.] O que é certo, sempre que o autor se registre se tratar de suposições e hipóteses suas.

Na edição de 1981, Décio propusera, entre outros sucessos detalhados, uma bibliografia de Zumbi, que intitulou como “De coroinha a guerrilheiro”. Nela, relata que uma expedição luso-brasileira capturara, em um quilombo, um bebê, em 1654-5, que fora entregue a um padre de nome Antônio Melo, de Porto Calvo, que o alfabetizara, em português e em latim! A criança fora batizada com o nome de Francisco – contara em carta o padre Antônio Melo, que afirmara se ter inteligência singular, superior à comum, entre os brancos. Aos dez anos, ele se tornara “coroinha”. Com uns quinze anos, o molecote fugira para os Palmares, transformando-se mais tarde no seu último chefe militar. Mas não se mostrara ingrato, pois visitara seu preceptor, por três vezes, para ajudá-lo economicamente! [FREITAS, 1984: 116-7] Essas informações Décio afirmou ter obtido em cartas do pároco, que jamais mostrou a ninguém. Seguindo por essa estrada, em 1986, no livro Brasil inconcluso, propôs a existência de uma compilação de leis palmarinas, escrita possivelmente por Zumbi, que ele considerava ter sido a primeira Constituição do Brasil! [FREITAS, 1986: 13; SILVA, 2016.].

A narrativa já era, de per si, inverossímil. Não se trazia, jamais, um bebê de expedição que atacara quilombos da Serra da Barriga. Não tinha valor nenhum e atrapalhava a caminhada na mata. Palmares jamais foi um estado centralizado, mas quilombos autônomos, federalizados para defenderem-se dos ataques holandeses e luso-brasileiros. É uma contradição uma constituição, ainda mais escrita em português, para população iletrada, que, em grande parte, possivelmente não dominava aquela língua, vivendo em quilombos, distantes e autônomos, praticando uma economia sobretudo de subsistência. E, sobretudo, jamais se encontrou qualquer documentação primária sobre esses detalhados fatos. [GOMES, 2005, 2011.] Nem Décio disse onde ela se encontrava, como vimos.

Uma figura de romance

Décio Freitas foi um historiador e intelectual brilhante, de formação marxista, com rica informação histórica e visão de totalidade da formação social brasileira. O que era raro, na época, e não habitual, ainda hoje. Militara quando jovem no PCB e, a seguir, orbitara o trabalhismo de esquerda. De volta ao Brasil, de um rápido auto-exílio no Uruguai, chegou a ser candidato a deputado pelo MDB, após o fim da ditadura, assumindo função relativa à cultura no governo de Pedro Simon [1987-1990]. Era historiador sem formação acadêmica que pouco  conviveu com seus pares da Academia, o que teria sido útil  para ele e para os últimos. Uma vez, enquanto conversávamos em seu escritório, o vi, surpreso, atirar suas notas ao lixo, por ter concluído o livro para o qual as preparara. Alegrou-se quando  lembrei que poderiam ser utilizadas, se guardadas, em outros trabalhos! 

Décio Freitas era um intelectual carismático e brilhante, escritor de talento,  orador de recursos. Portava sempre pronta uma narrativa lapidada sobre os fatos em curso, para ser usada na conversação, com o objetivo de impactar e seduzir os interlocutores e ouvintes. Era, também, um homem de múltiplas, digamos, idiossincrasias. Dava-se a rompantes de mau humor, descompondo amigos, enquanto agitava sua  bengala no ar, aos quais, para, a seguir, se desdobrar em desculpas.  Era femeeiro como coronel afazendado da fronteira sul. Convidado para escrever, por longo tempo, na Folha de São Paulo, uma e outra vez, flexibilizou ideias suas, segundo a direção dos ventos do prestigioso jornal. [Folha de S. Paulo, 17-1-82].

Potoqueiro costumas

Décio Freitas era um potoqueiro costumas. Tinha uma enorme queda para reinventar ficcionalmente fatos que vivera e não vivera. Com outros amigos de seu círculo próximo, nos divertimos ao cotejar as narrativas diversas, sempre cativantes, que ia tecendo sobre sucessos que teriam ocorrido durante sua vida. Contava diversas versões sobre a importante entrevista que efetivamente fizera a Vargas, no exílio de São Borja, com destaque para o que conversara com ele em off; das aventuras que vivera durante a redação de Palmares no Uruguai e no Brasil, durante a ditadura; como ocorrera a queda da sacada de sua casa que lhe deixara rengo para sempre. As divergências, às vezes, eram enormes. Se non era vero, era bene trovato.

Por longas décadas, sobretudo no Rio Grande do Sul, as portas da grande mídia, da Academia, etc. mantiveram-se fechadas para Décio Freitas, devido à sua orientação política e epistemológica, como proposto. Foi uma época em que conheceu dificuldades econômicas,  isolamento e cancelamento relativos que reforçaram seu perfil de lobo solitário da historiografia.  Seu livro sobre Palmares e as publicações que se seguiram sobre a escravidão transformaram-se em instrumentos de afirmação pessoal e de apoio econômico, até ser anistiado e aposentado como procurador do Estado, cargo para qual fora nomeado por João Goulart, pouco antes do golpe, segundo me contou. 

O avanço da historiografia acadêmica e não acadêmica científicas sobre a escravidão envelheciam e superavam relativamente seu livro clássico, de 1971, ainda hoje uma referência incontornável, apesar de seus tropeços. Teria estendido qualitativa e quantitativamente sua  proposta inicial de cobrir, com a imaginação, aqui e ali, alguns hiatos da documentação. Teria passado a propor sucessos históricos simplesmente inexistentes, para alavancar as últimas edições.  

Como uma multidão de intelectuais de esquerda, Décio Freitas sofreu a usura do avanço da direita através do mundo, nos anos 1980. No fim daquele decênio, quando da vitória histórica da maré neoliberal mundial, assinalada pela dissolução da URSS e restauração capitalista dos Estados de economia nacionalizada e planifica, Freitas trocou de trincheira. Literalmente de um dia para  outro. [MAESTRI, 2023.] Deu simplesmente as  costas ao marxismo, ao socialismo, à esquerda e ao movimento social que abraçara, desde sua juventude, por decisão sua, por quase meio século. Décio Freitas aprestava-se  a cumprir setenta anos. Definitivamente, decidiu-se não ficar com as cascas.

Aos Vencedores, as Batatas

Do dia para a noite, Décio Freitas se transformou em intelectual orgânico da direita liberal sul-rio-grandense, propositor e defensor ardiloso do que havia de mais reacionário. Passou a disparar sobre tudo que se movia. Seus serviços qualificados foram reconhecidos. Foi-lhe cedida, creio que até sua morte, página dominical de destaque no jornal  do principal grupo de comunicação liberal do sul do Brasil, que o convidava amiúde para falar na sua rádio e televisão. Passou a ser conferencista requisitado. Escreveu, com o sucesso de vendas, que jamais tivera, livros que navegavam despudoradamente entre a literatura ficcional e a historiografia, indignos de sua obra anterior. Jurando, sempre, de mãos juntas, serem trabalhos historiográficos essencialmente científicos. Com as “costas quentes”, podia dizer o que quisesse, impunemente. 

Escreveu O homem que inventou a ditadura no Brasil. Uma obra achincalhando Júlio de Castilhos, o político positivista que, quando e após 1889, derrotou a oligarquia latifundiária e modernizou em um sentido capitalista o Rio Grande do Sul. Nessa obra,  apresentou  como, se fossem dos personagens históricos a quais se referia, entre ele Castilhos, sucessos e sentimentos seus, reais ou imaginários, que me confidenciara, em detalhes, anos antes. Tive que me esforçar para terminar de ler esse livro ideológico, rapidamente esquecido.

Dandara dos Palmares, que já é apresentada como a primeira e a única mulher de Zumbi, nasceu, certamente, em inícios dos anos 1980, em Porto Alegre, na máquina de escrever de Décio Freitas, no seu apartamento na avenida Independência, diante da Santa Casa de Misericórdia. Os filhos, Aristogíto, Aristogíton e Motumbo, que teriam sobrevivido à queda de Palmares e às mortes dos pais, não sei se foram inventices apenas do Décio ou nasceram e foram aleitados pelo costume de que, “quem conta um conto, aumenta um ponto”.  Certamente muito logo teremos netos e bisnetos, de Zumbi e Dandara, e por aí vai. Hoje, para esse tipo de leitura do passado,  imaginação é o limite. E, com essas violências, se lançará mais um pá de cal sobre a resistência gloriosa das mulheres e dos homens escravizados do nosso passado.

Ao escrever esse comentário, confesso que senti uma profunda saudade de Décio Freitas. Do primeiro, é certo. O segundo, conheci de longe e prefiro esquecer.

Codiponte, Itália, 23.05.2023

Bibliografia citada:

CAETANO, Janaína Oliveira; CASTRO, Helena Carla. Dandara dos Palmares: uma proposta para introduzir uma heroína negra no ambiente escolar, REHR | Dourados, MS | v.14 | n. 27| p.153-179 | Jan. / Jun. 2020.

CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. 5. Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.

FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. Porto Alegre: Movimento, 1973.

FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.

FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. 3 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.

FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. 4 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982.

FREITAS, Décio. Palmares: A guerra dos escravos. 5 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984.

FREITAS, Décio. Insurreições escravas. Porto Alegre: Movimento, 1976.

FREITAS, Décio. Brasil inconcluso. Porto Alegre: Est, 1986.

FREITAS, Décio. O Homem que Inventou a Ditadura no Brasil. Porto Alegre: Sulina, 1999.

FREITAS, Décio. República de Palmares: pesquisa e comentários em documentos históricos do século XVII, EdUFAL, 2004.

GOMES, Flávio dos Santos. Palmares: escravidão e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo: Contexto, 2005.

GOMES, Flávio dos Santos. De Olho em Zumbi dos Palmares: histórias, símbolos e memória social. São Paulo: Claro Enigma, 2011.

MAESTRI,  Mário. A agricultura Africana nos séculos XVI e XVII no litoral angolano Porto Alegre: EdUFRGS, 1978.

MAESTRI Mário. O escravo no Rio Grande do Sul. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho Porto Alegre: EST; Caxias do Sul, EDUCS, 1984.

MAESTRI, Mário. Filhos de Cã, Filhos do Cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira. Porto Alegre: FCM Editora, 2022.

MAESTRI, Mário. Revolução e Contrarrevolução Mundial (1917-2023). Revista AComuna, 7 de abril de 2023, https://acomunarevista.org/2023/04/07/revolucao-e-contrarrevolucao-mundial-1917-2023/

MOTT, Luiz R. B. “Rebeliões escravas em Sergipe”. In: Estudos Econômicos, 17 (n esp.): 111-129 pp. São Paulo, 1987. 

MOTT, Luiz. Escravidão, Homossexualismo e Demonologia. São Paulo: Ícones, 1988. [

MOTT, Maria Lucia de Barros. Submissão e resistência: a mulher na luta contra a escravidão. São Paulo: Contexto, 1988.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: Quilombos, insurreições e guerrilhas. 4 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.

PÉRET, Benjamin. “Que foi o quilombo de Palmares?”. Revista Anhembi, São Paulo, abril e maio, 1956.

PÉRET, Benjamin. O Quilombo dos Palmares.  Apresentação Mário Maestri, Robert Ponge. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2002.

SILVA, Adriano Viaro da. Palmares no cepo da história: história e historiografia da Confederação dos Quilombos dos Palmares (1644-1984). Mestrado, PPGH UPF, abril de 2016, orientação de Mário Maestri. http://tede.upf.br/jspui/bitstream/tede/2383/2/2016AdrianoViarodaSilva.pdf

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