Emiliano Aquino

A luta dos entregadores de aplicativos está chamando nossa atenção para algumas características importantes do capitalismo contemporâneo. Walter Benjamin dizia: “O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe oprimida, a classe combatente”. Nós todos, que compomos a classe, aprendemos com as condições de existência e de luta dos outros trabalhadores, mesmo quando não estamos participando diretamente delas.
E o movimento dos entregadores de aplicativos, nesse momento, nos permite conhecer coisas importantes sobre o capitalismo contemporâneo.
A produção da mais-valia no transporte das mercadorias
A indústria de alimentação constitui um setor produtivo. As lanchonetes e restaurantes são unidades produtivas. Produzem mercadorias, produzem valor, mesmo quando são empresas apenas familiares, sem empregados ou com pouquíssimos empregados. Claro, nem todos os restaurantes e lanchonetes são capitalistas. As empresas familiares não o são; apesar de produzirem valor, não têm a produção de mais-valia e a acumulação capitalista como fim. Mas já há décadas restaurantes e lanchonetes constituem empresas capitalistas, existindo redes nacionais e internacionais delas, como as conhecidas redes de fast food.
Uma coisa importante a considerar é que a produção da mercadoria só termina quando ela chega ao consumo. Portanto, o transporte delas até o consumidor é parte da produção da mercadoria. O transporte também produz valor econômico, que é dividido em duas partes: uma, para o pagamento dos custos do transportes (conservação, combustível etc.) e para o pagamento do trabalho dos trabalhadores, outra é uma parcela não-paga do trabalho, que constitui a mais-valia (logo, o lucro do patrão).
Quando o transporte dessas mercadorias (refeições, lanches) é realizado por entregadores de aplicativos, quem é o patrão que lucra com essa fase final da produção da mercadoria, que é seu transporte até o consumidor? Quem se apropria da mais-valia produzida, já diretamente realizada na forma do pagamento que os clientes fazem pela entrega? As empresas de aplicativos. Por isso, todo entregador sabe que uma parte do que os clientes pagam pela entrega fica com os entregadores e outra parte com as empresas de aplicativos.
A falta de transparência sobre quanto a empresa capitalista deixa de pagar ao trabalhador por seu trabalho é parte desse processo de produção de mais-valia. A mais-valia, o trabalho não pago (em suma: o roubo do trabalho alheio), não deve aparecer, deve ser escondido, para dar a ideia de que todo o trabalho do trabalhador está sendo pago.
Uma forma moderna de exploração do trabalho
O controle corporativo desses aplicativos, que em si e por si não são uma coisa ruim, pelo contrário, constituem uma apropriação privada, pelos capitalistas, de um bem comum, que é o conhecimento que permite a programação deles. A linguagem de programação, a lógica que a preside, são todos resultados de um desenvolvimento de décadas, para não dizer de séculos do conhecimento da humanidade.
Essa privatização do conhecimento humano, através das patentes, se iguala à inaceitável apropriação privada da água, do ar, de terras comunitárias… É o que os ingleses chamavam no século XVI de cercamento, quando os novos senhores da terra (Landlords) colocaram cercas nas terras comuns, se apropriaram delas e com elas passaram a explorar trabalho assalariado daqueles que, antes e por séculos, tinham livre acesso para plantio e pastoril nessas terras.
Ao contrário do que normalmente se pensa, a inovação tecnológica não necessariamente elimina trabalho. Sua finalidade fundamental é baratear as mercadorias e os gastos com a força de trabalho; isto é, cortar custos. Em alguns setores produtivos, isso certamente significa substituir o trabalhador por ferramentas, de modo que menos trabalhadores passem a produzir igual ou mais do que um número maior de trabalhadores produzia antes.
Mas na diversificação da produção capitalista, as inovações tecnológicas podem também servir para comandar, com menos custos, mais trabalho. É o que acontece justamente com esses aplicativos, em que os capitalistas dispõem gratuitamente de muitas horas dos trabalhadores, que ficam à sua disposição. Desse modo, os capitalistas aumentam seus lucros com longas e cansativas jornadas de trabalho. Os entregadores costumam trabalhar de 10 da manhã à meia-noite, isto é 14 horas por dia, de domingo a domingo. Em outras palavras, os capitalistas fazem uso de algo que nunca abandonaram e sempre buscaram manter e aumentar: a mais-valia absoluta.
Por fim, lembremos que o método do cercamento e a mais-valia absoluta fazem parte da história primeva do capitalismo, sem nunca o terem abandonado completamente. Em nossos dias, os instrumentos mais modernos de dominação do trabalho assalariado consistem justamente nessa atuação/atualização dessas formas arcaicas do capital.
Emiliano Aquino é membro do coletivo editorial de A Comuna.
a esquerda precisa criar alguma forma paralegal ou até ilegal de incluir essa massa do precariado dentro da solidariedade da classe, para evitar que sejam instrumentalizados pela direita para combater a esquerda
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[…] de “uberização”, mas, mais recentemente, os próprios trabalhadores – a partir dos breques de apps – passaram a chamar simplesmente de “trabalho/trabalhadores de aplicativo”. […]
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