A pandemia da classe trabalhadora nos EUA

Robert Ovetz

As histórias que ouvimos da direita para a esquerda de que os trabalhadores não podem estar organizados, o capital e o Estado são muito poderosos, a vigilância em massa e a ascensão da extrema direita estão tornando a organização muito perigosa, se baseiam inteiramente em premissa errada. Diante do terror de serem fatalmente contagiados e espalharem o vírus para outros, diante do desemprego, da fome e do perigo de serem sacrificados pela economia capitalista, os trabalhadores não estão sendo organizados — eles estão se auto-organizando.

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Em 9 de abril, pelo menos 81 greves selvagens e, desde março, uma ameaça de greve geral nacional por dois sindicatos de transportes varreram os EUA, quando o país entrou em quarentena para impedir a propagação do vírus mortal da Covid-19.

A organização e as ações de greve dos trabalhadores têm sido de tirar o fôlego. De trabalhadores da construção civil a enfermeiros, armazéns, transporte, empacotamento de carne, call center, carpinteiros, fast food, coletores de lixo, prisioneiros e uma ampla gama de outros tipos de trabalhadores, a luta de classes está de repente de volta à agenda nos EUA, e em grande parte do mundo. As greves não são, aliás, a única forma de ação: elas são acompanhadas por paralisações curtas de trabalho e manifestações de enfermeiros e médicos em sete Estados protestando contra a falta de equipamentos e de condições de segurança sanitária no trabalho. Isso chamou a atenção generalizada da mídia à situação dos chamados trabalhadores essenciais. Existem vários impactos e consequências fundamentais dessa ação de auto-organização e greve dos trabalhadores para a luta global da classe trabalhadora.

Não há dúvida de que o capitalismo mundial está em profunda crise. Depois de vários anos de um crescente autoritarismo abraçando o nacionalismo e o protecionismo, grande parte da economia mundial parou. Demissões em massa de incontáveis milhões de trabalhadores e o colapso da renda fizeram com que os investimentos caíssem, os mercados desabassem e logo a receita fiscal do governo estará esgotada. A resposta do Estado tem sido fortalecer ainda mais uma espécie de socialismo estatal para empresas, corporações e grandes proprietários e parar o keynesianismo para os trabalhadores dos países ricos, com total destituição e desastre para o resto da classe trabalhadora mundial.

Quando a crise da pandemia parar, a conta será apresentada. Continuará a haver socialismo de Estado para as corporações e o capitalismo de mercado para os trabalhadores. O desemprego será usado para bater o martelo sobre o que resta da classe trabalhadora sindicalizada. O trabalho será reorganizado para se tornar ainda mais precário e o local de trabalho ainda mais despoticamente gerenciado pela vigilância digital. Déficits crescentes, dívidas e resgates das empresas se tornarão justificativa para mais austeridade neoliberal, privatização, desinvestimento e cortes de impostos para os ricos e capitais e impostos regressivos para os trabalhadores. Os poderes emergenciais dos governos serão normalizados e empunhados com violência grotesca por partidos autoritários e empresariais para recuperar o que é devido.

Entender as imensas possibilidades disruptivas da auto-organização da classe trabalhadora também será necessário para nos prepararmos para o inevitável contra-ataque. Há alguns esforços para começar essa preparação. O sindicato UNITE HERE está organizando seus membros, quase todos desempregados quando o setor recreativo fechou, no sul da Califórnia e Nevada, bem como todos trabalhadores que procuram sua ajuda. Os trabalhadores da United Electric, Radio and Machine Workers of America se uniram aos Socialistas Democráticos da América para ajudar os trabalhadores que os procuram para organizar greves selvagens durante a pandemia. Reconhecendo que fazer uma chamada para uma greve geral não significa organizar uma, a Cooperation Jackson convocou uma greve geral e a National Educators United (União Nacional de Educadores) e sua seção na Califórnia pediram ações, incluindo greves em 1º de maio.

Em meio à onda de greves selvagens e de novas organizações, há algumas lições a serem aprendidas com esse aumento na luta de classes nos EUA.

Trabalhadores são auto-organizados

As histórias que ouvimos da direita para a esquerda de que os trabalhadores não podem estar organizados, o capital e o Estado são muito poderosos, a vigilância em massa e a ascensão da extrema direita estão tornando a organização muito perigosa, se baseiam inteiramente em premissa errada. Diante do terror de serem fatalmente contagiados e espalharem o vírus para outros, diante do desemprego, da fome e do perigo de serem sacrificados pela economia capitalista, os trabalhadores não estão sendo organizados — eles estão se auto-organizando.

Isso significa que os sindicatos e outros de esquerda precisam jogar fora suas táticas e estratégias arcaicas e descobrir que os trabalhadores têm, são e continuarão a se organizar de baixo para cima e a circular suas lutas para atender às suas necessidades. Os sindicatos sofrerão imensa pressão para finalmente abandonar o foco estreito da negociação sobre o – agora abandonado – acordo fordista de salário/produtividade e jogar fora o arreio da lei do contrato de trabalho. Já passou da hora de nossos sindicatos aplicarem o resto de sua força e seus vastos recursos em apoio à classe trabalhadora, em vez de cuidarem estritamente apenas de seus leais membros. 

A quase totalidade dos trabalhadores que fazem greves selvagens não está formalmente nos sindicatos e provavelmente tem seus próprios comitês desconhecidos no local de trabalho. Por isso, esses trabalhadores não são limitados por leis trabalhistas federais ou estaduais, contratos sindicais ou outros mecanismos de controle. É isso que os torna tão perigosos: eles são não gerenciados e controlados por ninguém.

Trabalhadores nos setores da reprodução social e da logístico são centrais

O que une quase todas as greves selvagens é que elas estão sendo realizadas por trabalhadores que atuam na reprodução social – ou o que muitas vezes é chamado pelo eufemismo de trabalho de cuidado, de resultado (empreita) ou de serviço. A maioria dos sindicatos nos EUA desistiu dos trabalhadores da reprodução social, exceto os da educação pública e das indústrias privadas de saúde. A composição dos trabalhadores da reprodução social é que eles são extremamente mal pagos e precários (quem não é mais, realmente?), desproporcionalmente pessoas de cor, nela as taxas de rotatividade são muito altas e eles são extremamente explorados em muitas outras áreas da sociedade.

À suposição equivocada de que é impossível aos trabalhadores da reprodução social se organizarem, soma-se o erro fatal da presunção de que seu trabalho é improdutivo para o capital. Na realidade, o que anteriormente costumava ser trabalho não-remunerado de reprodução da força de trabalho para o capital – o trabalho de cozinhar, limpar, cuidar, educar –, realizado principalmente por mulheres, tem se movido cada vez mais para o trabalho assalariado. Na verdade, grande parte desse trabalho assalariado é apenas uma forma de mercantilização daquele trabalho não assalariado que antes se costumava fazer em casa.

Como resultado, o capital tem implantado, praticamente sem freios, uma nova composição técnica que apresenta várias e extremas estratégias de exploração, dominação e divisão dos trabalhadores por status legal, sexo, gênero, raça, salário, lugar na hierarquia de trabalho etc., e igualmente de controle que agora estão se tornando onipresentes entre trabalhadores mais qualificados e mais bem organizados. Por exemplo, muitas das mesmas tecnologias de comunicação e sistemas algorítmicos de gerenciamento de dados usados para controlar e intensificar o trabalho dos profissionais que atuam na reprodução social são agora igualmente encontrados no controle do trabalho de professores, médicos, enfermeiros e advogados.

As greves selvagens estão demonstrando que essas indústrias da reprodução são extremamente vulneráveis à interrupção de trabalho ao longo de numerosos pontos globais de estrangulamento – essa foi uma estratégia proposta pela primeira vez na luta pelo salário do trabalho doméstico e estudantil nos anos 1960-70. Acontece que a conquista dos salários exigidos por esses movimentos – e era este seu objetivo original – torna agora possível aos trabalhadores da reprodução social recusarem a trabalhar ao invés de entregarem voluntariamente sua força de trabalho, como antes.

Se a produção, a preparação e a logística de alimentos pararem, todos os outros trabalhadores são levados a parar. O ataque mundial contra o trabalho da reprodução é a pandemia da classe trabalhadora, atingindo o sistema circulatório do capital que produz força de trabalho disponível para o trabalho.

Agora os trabalhadores da reprodução social estão conhecendo as vulnerabilidades na longa e estreita cadeia global de suprimentos just in time. O desaparecimento repentino do papel higiênico não é por causa de consumidores assustados ou gananciosos. É causado por interrupções imprevistas em uma contínua divisão mundial de trabalho, interrupções a que o capital de repente tem que lutar para responder. É essa estratégia de ruptura nos principais pontos mundiais de estrangulamento que oferece o maior potencial para afastar nosso planeta de seu caminho rumo à catástrofe ecológica.

Da mesma forma, enquanto fica amis claro o poder disruptivo dos trabalhadores da logística, neste âmbito os sindicatos e a esquerda abandonaram ou deixaram de fazer muitas incursões organizando os trabalhadores. Isso não impediu que trabalhadores da Amazon/Whole Foods, da Instacart e outros trabalhadores de logística interrompessem a cadeia mundial de suprimentos não só nos EUA, mas em vários outros países atingidos pela pandemia. É o que também ocorreu na Itália, onde em março greves selvagens generalizadas efetivamente desencadearam uma greve geral contra um acordo feito pelos três grandes sindicatos e o Estado para manterem abertas as fábricas.

Como o capital depende cada vez mais da gestão de uma cadeia global de suprimentos just in time através do uso de gerenciamento de dados algorítmicos, essas greves selvagens relativamente pequenas desequilibraram esses gigantes corporativos globais. Podemos ver a rapidez com que eles estão respondendo aumentando os salários e fazendo promessas vazias de  equipamentos de segurança, estendendo licenças remuneradas sem precedentes, oferecendo renda mínima em dinheiro e demitindo organizadores-chave como o gerente de armazéns da Amazon, Chris Smalls, em Nova York.

A força disruptiva e a circulação da luta

A erupção simultânea de greves selvagens em setores industriais majoritariamente desorganizados em inúmeros países oferece outra lição fundamental. Sem qualquer coordenação central de cima para baixo por partidos de vanguarda ou sindicatos corporativos, a classe trabalhadora tornou-se internacional desde a década de 1960. Antes da década de 1960, a classe trabalhadora também se mostrara como internacional durante as ondas de greves selvagens, conselhos de trabalhadores, greves gerais e insurreições revolucionárias entre o final dos anos 1910 e 1930.

Como o jogo de fliperama infantil whack a mole, a classe trabalhadora global está levantando a cabeça em um lugar e, quando o capital e o Estado procuram derrubá-la de volta, levanta outras cabeças simultaneamente em inúmeros outros lugares .

À medida que as notícias de cada greve selvagem local circulam instantaneamente, outros trabalhadores se inspiram e lançam sua greve em outros lugares. Como o jogo de fliperama infantil whack a mole, a classe trabalhadora global está levantando a cabeça em um lugar e, quando o capital e o Estado procuram derrubá-la de volta, levanta outras cabeças simultaneamente em inúmeros outros lugares ao longo de todo o caminho, tanto para cima quanto para baixo, da agora desgastante cadeia global de suprimentos.

Essas lutas oferecem a possibilidade mais significativa em quase duas gerações para a classe trabalhadora mundial recompor sua força. Para isso, não só precisará circular suas lutas, mas também se tornar explicitamente coordenada, preparada para a resposta previsível e inevitável do capital e do Estado para controlar, cooptar, difundir, gerenciar, redirecionar e reprimir cada luta separada. Para que o capital e a estratégia do Estado prevaleçam, será necessário colocar em quarentena cada luta, distanciando uma das outras, da mesma forma que aqueles que estão podendo fazê-lo estão se afastando uns dos outros para amortecer a propagação contagiosa do vírus.

Enquanto outros organizam e atacam, precisamos estudar e estar preparados para estratégias emergentes do capital e do Estado para amortecer a circulação dessas lutas com a mesma intensidade que buscam amortecer a disseminação da covid-19. Aqui temos que nos preparar para o papel que os sindicatos vinculados ao capital e ao Estado buscarão desempenhar na tentativa de amortecer e desacelerar a auto-organização dos trabalhadores. Vimos isso não só na Itália, mas, mais recentemente, quando – para permanecerem no trabalho – os trabalhadores sindicalizados que trabalham no supermercado Kroger tiveram um aumento temporário de 2 dólares, licença médica e promessas vagas de escassas garantias de medidas de segurança.

Nas três leis de pandemia aprovadas em março, também temos os escassos auxílios de 1.200 a 1.700 dólares em dinheiro aos contribuintes dos EUA, aumento de 133% nos seguros-desemprego, que também foram temporariamente estendidos para trabalhadores precarizados de aplicativos [*], e uma prestação de licença-saúde paga a alguns trabalhadores para afastá-los dos envolvidos em lutas de classe perturbadoras. Em uma crise, o capital e o Estado estão dispostos a recorrer à “renda básica universal” temporária, uma ideia que se originou nos thinktanks liberais (libertarian thinktanks) dos EUA como forma de esvaziar a proposta socialdemocrata dos salários sociais, reduzir o emprego público e atacar os sindicatos do setor público.

[*] Traduzimos por trabalhadores de aplicativos o que, ao pé da letra, seria “trabalhadores de plataforma”. É o mesmo fenômeno que no Brasil a Sociologia do Trabalho chama de “trabalho/trabalhador uberizado” ou de “uberização”, mas, mais recentemente, os próprios trabalhadores – a partir dos breques de apps – passaram a chamar simplesmente de “trabalho/trabalhadores de aplicativo”. [N.T.]

Essas medidas keynesianas paliativas empalidecem em contraste com os trilhões de dólares de seguros para corporações, investidores e bancos incluídos nas leis de pandemia. Esses valores visam a reforçar os balanços das empresas diante da greve de consumo não declarada dos trabalhadores e suas famílias, que se recusam a gastar em qualquer coisa, a não ser em necessidades básicas. Essa medida deve ser reconhecida como o capital e o Estado recorrendo à nacionalização tanto do setor financeiro quanto do produtivo, subsidiando as despesas operacionais das empresas em troca de que as demissões não ultrapassem a cota de 10% de seus trabalhadores. Níveis semelhantes de ajuda aos Estados e governos locais foram dados, com a condição de que acelerem o encolhimento do setor público após a crise, por causa do colapso das receitas fiscais e da austeridade que a seguirão.

Da mesma forma, devemos estar atentos aos empregadores que oferecem licenças familiares ou médicas temporárias, horas reduzidas, salários temporários e pequenas alterações nas condições de trabalho em resposta às demandas trabalhistas de medidas de segurança e de equipamentos. Serão oferecidos como condição para aumentar o uso de vigilância, a intensificação e o alongamento da jornada de trabalho — coisas que já estão sendo relatadas por aqueles que trabalham remotamente em casa. Os resgates federais descritos acima darão às empresas espaço para lançar um contra-ataque, estendendo a crise para além da pandemia para extrair novas alterações nas relações de produção, cortes salariais e de benefícios, terceirização e automação.

A luta é contra o trabalho

Uma coisa que passou despercebida é que os trabalhadores estão lutando por salários mais altos e condições de trabalho mais seguras, ao mesmo tempo em que lutam contra o trabalho. Se, numa frase famosa, Karl Marx observou que “o trabalho é evitado como a peste” (MECW, Vol. 3, 274), hoje ele é recusado por ser, literalmente, o vetor que efetivamente espalha uma peste. Trabalhadores do setor da reprodução e da logística estão se recusando a fazer um trabalho que degrada sua humanidade, tornando-os vítimas sacrificiais para o vírus em troca de manter o capitalismo funcionando, mesmo que este esteja em queda livre.

O Estado tem efetivamente replicado o Bolsa Família do Brasil para colocar dinheiro nas mãos das pessoas para o gastarem com o objetivo de artificialmente manter trabalhando aqueles que ainda têm trabalho.

Mas, mais importante, esses trabalhadores estão se recusando a trabalhar, o mesmo trabalho explorado e perigoso a que a maioria é forçada pela falta de outros meios para sobreviver e apesar da destruição que ele inflige ao planeta. Enquanto o trabalho útil, significativo e remunerado – a um nível que permite o acesso a alguns confortos da vida – continua a evaporar, o trabalho disponível será mais ainda evitado como a peste. Mesmo com o aumento do desemprego em 600% na primeira semana e dobrando na segunda [de março], agora em 6,6 milhões durante a primeira semana de abril, totalizando 17 milhões em apenas três semanas, os trabalhadores estão recusando o trabalho. Mesmo com a fome.

Essa recusa demonstra a necessidade de levar o combate contra o trabalho para o centro de nossas lutas e organizações. Há tantas outras coisas que as pessoas preferem fazer do que trabalhar, um desejo de que quase todos compartilhamos, independentemente das diferenças que nos mantêm divididos. Como o capital tem procurado nos últimos quarenta anos aumentar a produtividade e a intensidade do trabalho através de uma nova composição técnica, a luta por menos trabalho, e não apenas por melhor pagamento por ele, tem faltado inteiramente em nossa resposta. A recusa do trabalho durante a pandemia tornou-se a recusa em trabalhar para a pandemia do capitalismo.

O perigo para o capital e para o Estado (que é um adjunto do capital) da recusa do trabalho mostra-se na rapidez com que os Estados se engajaram na bomba fiscal, gastando trilhões de dólares. O Estado tem efetivamente replicado o Bolsa Família do Brasil para colocar dinheiro nas mãos das pessoas para o gastarem com o objetivo de artificialmente manter trabalhando aqueles que ainda têm trabalho. Esta não é simplesmente uma demonstração da facilidade com que a riqueza pode ser redistribuída ou problemas ecológicos e sociais resolvidos – duas demandas fúteis da oposição dócil. Em vez disso, agora demonstra aos trabalhadores do setor da reprodução — considerados entre os mais impotentes até março — a rapidez com que podem ganhar menos trabalho e mais salários se fizerem greve. Nenhuma ONG de mobilização de movimento social financiada por alguma fundação de empresa conseguiu extrair nem uma pequena fração do que tem derramado dos gastos fiscais desde março. A administração populista de direita dos EUA Trump será para sempre lembrada por usar a política fiscal em um nível sem precedentes para estender a ajuda monetária aos trabalhadores pobres, desempregados, famintos e precários de aplicativos. Ironicamente, Trump pode agora se tornar o próximo Franklin D. Roosevelt, ao salvar o capitalismo usando estratégias socialistas de Estado, uma estratégia que se pode esperar que ele mantenha para conseguir a reeleição.

Por outro lado, essa situação também alerta para o que vai acontecer quando os perigos desaparecerem e bilhões voltarem ao trabalho. O capital e o Estado buscarão ser reembolsados por meio de cortes ainda mais profundos, austeridade, privatização, demissões, repressão, regimes de gestão algorítmica intensificada, precarização e novos ataques ao setor público, como a mudança de sistemas públicos inteiros de educação para aplicativos empresariais de teleconferência.

Trabalhadores call centers da Atento (Goiânia) em manifestação por condições salubres de trabalho durante a quarentena.

Recomposição da luta da classe trabalhadora

Naomi Klein ganhou merecida atenção ao demonstrar como o capital e o Estado usam choques como a pandemia para fazer pender ainda mais a correlação de forças em seu favor. Klein nos lembra que, durante essas crises, o capital realiza seus planos e estratégias antes bloqueados para impor o que David Harvey chama de “acumulação por despossessão“, um termo tão amplamente utilizado que é totalmente esquecido que Marx já o documentou na Secção VIII, “A assim chamada Acumulação Primitiva“, [capítulo XXIV] em O Capital, Volume I (publicado em 1867). É fácil esquecer Marx quando a solução apresentada por Klein e outros é retornar ao keynesianismo pouco disfarçado do New Deal verde (capitalista).

O que Klein e muitos outros socialdemocratas não conseguem reconhecer é que os trabalhadores também têm a capacidade de infligir choques — através de greves auto-organizadas. Esses choques mundiais infligidos vêm com pouca frequência — 1848, 1871, 1877, 1894, 1917-21, 1932-38, 1945-46, 1960-70 — e agora voltaram.

Para entender essas lutas é necessário avaliar como a organização dos trabalhadores conseguiu se adaptar e elaborar novas táticas e estratégias para contestar e romper a atual organização do capital, que se baseia numa nova composição técnica. Entender como o trabalho do setor de reprodução social se auto-organizou demonstra possibilidades e riscos. Os trabalhadores da reprodução encontraram novas táticas e estratégias para organizar e interromper a reprodução da força de trabalho (que serve para manter o capitalismo funcionando durante a pandemia). Se forem derrotados, o capital vai agir sem freios para impor a estratégia do trabalho de aplicativo a outros setores, como a educação.

A educação tem sido há muito tempo o terreno da luta contra a imposição de uma nova composição técnica do capital. Os trabalhadores conseguiram responder com vigor, impedindo esses planos, ao lutarem contra charter schools [ver aqui], educação on-line no ensino superior, e os ataques neoliberais contínuos notadamente durante a onda de greves selvagens em Estados controlados principalmente pelos republicanos, bem como a colônia de Porto Rico em 2018-19.

Isso significa que a crise permitiu o início rápido de novas estratégias do capital para quebrar as recentes experiências de auto-organização dos trabalhadores. Os trabalhadores de aplicativos foram integrados ao programa de seguro-desemprego, colocando assim sob a gestão estatal esse setor cada vez mais organizado e indisciplinado. Tomando-as emprestado ao setor de aplicativos, o Estado conseguiu impor mais ferramentas algorítmicas de gestão de dados, como o Zoom para professores de escolas públicas e privadas, escolas de idiomas e instituições de ensino superior, além das recentes introduções forçadas de Sistemas de Gestão da Aprendizagem (e sistemas quantitativos de avaliação de desempenho). Ambas as estratégias podem ser bem sucedidas em frear o rápido crescimento de auto-organização, de sindicalização e de greves selvagens nos antigos e novos setores de aplicativo, inaugurando assim uma nova composição técnica do capital educacional.

A determinar

O auto-isolamento, a queda massiva dos salários e o consequente colapso na produção e na reprodução que resulta disso aceleraram a busca por uma nova composição técnica de capital com a intenção de extrair ainda mais trabalho. Como nos lembra Cleaver em 33 Lições sobre Capital (2019),

os capitalistas introduzem máquinas não só para aumentar a produtividade… mas também para aumentar o trabalho. As máquinas definem o ritmo do trabalho, de modo que, acelerando-os, os capitalistas podem forçar os trabalhadores que trabalham com eles a trabalhar mais rápido, e assim mais duro (e às vezes durante mais tempo). Com as máquinas funcionando continuamente, os trabalhadores encontram dificuldades para criar “poros” de tempo livre no dia de trabalho. (329-330)

Como a pandemia demonstrou mais uma nova vulnerabilidade mortal da população humana mundial aos inúmeros terrores da catástrofe climática, ela igualmente demonstrou a vulnerabilidade do capitalismo mundial a uma classe trabalhadora mundial recomposta. Em todo o mundo muitos estão documentando e avaliando esse poder da classe trabalhadora recém-recomposta e trabalhando para o circular. Seu sucesso é a maior promessa de reorganização do planeta para reverter os cinco séculos de danos causados pela pandemia do capitalismo.

Notas e referências

Harry Cleaver. 33 Lessons on Capital: Reading Marx Politically. UK: Pluto Press, 2019.

Education International, “Statement: Educators Must be Part of the COVID-19 Crisis Response,” March 19, 2020, https://www.ei-ie.org/en/detail/16660/statement-educatorsmust-be-part-of-the-covid-19-crisis-response

Education International, “Education International COVID-19 tracker,” April 8, 2020, https://www.ei-ie.org/en/detail/16669/education-international-covid-19-tracker

Mark Lieberman, “Zoom Use Skyrockets During Coronavirus Pandemic, Prompting Wave of Problems for Schools,” Educaton Week, April 3, 2020.

Marx Engels Collected Works (MECW), Vol. 3, UK: Lawrence & Wishart, 1975, p. 274.

Robert Ovetz é um marxista estadunidense, historiador do movimento dos trabalhadores e autor de When Workers Shot Back: Class Conflict from 1877 to 1921 [Quando os trabalhadores atiram de volta: Conflito de classe de 1877 a 1921] (Haymarket, 2019). O texto que traduzimos e publicamos acima compõe a coletânia Struggle in a Pandemic: A Collection of Contributions on the COVID-19 Crisis (2020), um conjunto de textos preparados por uma rede de coletivos autônomos de trabalhadores que buscavam, já antes da pandemia, desenvolver uma pesquisa conjunta sobre as atuais condições de trabalho e luta dos trabalhadores em alguns países. Do Brasil, participou dessa iniciativa o coletivo Os invisíveis, contando a luta dos trabalhadores do call center Atento, em Goiânia (GO). O portal Passapalavra publicou uma tradução parcial do livro. Este texto acima foi escrito nas primeiras semanas da pandemia e da quarentena, mas anteriormente aos levantes proletários multi-étnicos que seguiram ao assassinato de George Floyd.

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Um comentário

  1. […] Os trabalhadores do saneamento, que têm sido o foco de muita atenção durante esta pandemia, não realizaram nenhuma ação coletiva significativa que conhecemos, apesar de terem trabalhado durante todo o período. Mesmo em áreas onde havia uma tradição de resistência no passado, a resposta dos trabalhadores do saneamento foi silenciada, e outros trabalhadores que permaneceram trabalhando durante o Festival da Primavera, como os de transporte e logística, incluindo trabalhadores de entrega, não foram levados qualquer ação significativa destinada a aumentar os requisitos de proteção. Algumas razões possíveis para isso podem ser: Quando Wuhan foi isolado e a notícia da pandemia foi divulgada pela primeira vez, a maioria das pessoas não tinha uma ideia clara da gravidade do novo coronavírus e não sabia do perigo. Mais tarde, como a notícia do surto se espalhou por todo o país por meio de canais oficiais e privados, e as medidas de controle de quarentena foram fortalecidas em todos os lugares, a pandemia não estourou em grande escala fora de Hubei. Portanto, os trabalhadores que permaneceram trabalhando não se sentiram muito ameaçados pela doença. Isso é diferente de muitos países da Europa e das Américas, onde trabalhadores de várias indústrias que trabalhavam …. […]

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