Victor Hugo Viegas Silva

1. O colapso que a população do Amapá viveu com o apagão que começou 20 dias atrás e continua vivendo não é fruto do seu atraso ou isolamento. Pelo contrário: é fruto de uma forma avançada de privatização operada no estado e sua integração no país. A negligência na manutenção da Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE) é compartilhada pela Isolux, a antiga concessionária, a Aneel, agência estatal reguladora, e as atuais empresas concessionárias Starboard e Gemini.
2. O Amapá está perfeitamente bem equipado para produzir energia de forma eficiente para o resto do Brasil e tem seu equipamento de energia pra sua própria população destruída por um projeto de privatização. Não estamos lidando, aqui, com atraso ou isolamento. Um olhar nos sócios da concessão LMTE nos revela que estamos tratando de elites nacionais. Dois exemplos: RALPH GUSTAVO ROSENBERG WHITAKER CARNEIRO é ligado ao grupo político de Paulinho Skaf, da FIESP. FABIO VASSEL da Gemini e da Starboard, é ligado ao capital transnacional e a empresas enormes do setor bancário, do varejo do capital nacional.

3. O colapso no Amapá também evidencia que a catástrofe vivida pelos povo não é um projeto de direita strictu senso. Uma prefeitura ligada politicamente ao DEM de Josiel Alcolumbre e um governador do PDT, Waldez Góez, estão de acordo em deixar a população à revelia de uma empresa irresponsável. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, o presidente da Câmara Rodrigo Maia e o presidente Jair Bolsonaro estão num grande acordo para preservar Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia.
4. O movimento #SOSAmapa também não é um movimento de pessoas “atrasadas”, “isoladas”, “abandonadas”. É um movimento essencialmente urbano, que conseguiu gerar aliança entre periferia e jovens de classe média e usa fortemente da internet e da mídia digital. É um movimento que constrói, ao mesmo tempo e já, a tão sonhada frente ampla de todos os grupos de esquerda por questões que são consenso na sociedade amapaense e criam solidariedade e tem inserção entre setores de trabalhadores precários, quilombolas, jovens universitários, gente apartidária e de partido. Apesar de condições duríssimas, o movimento feito pelo SOS Amapá tem conseguido fazer com que a crise vivida pela população amapaense seja vista pelo resto do país. Sem o movimento, ninguém saberia de nada.
5. Os dilemas enfrentados pelo movimento não são dilemas específicos de um estado isolado irrelevante para o resto do Brasil. Os dilemas vividos pelo #SOSAmapa são os dilemas de todo o Brasil que deve enfrentar o colapso da combinação de autoritarismo e a forma atualmente desenvolvida de privatização por concessão. Ali está sendo posto em questão acordos centrais para o funcionamento do arranjo político brasileiro. Está em jogo o pescoço de Bolsonaro e também está em jogo se é possível deixar a população em condições de crise humanitária sem reais consequências para os gestores, empresários e políticos envolvidos. Vai ser um marco para futuros incidentes.

É notável que diante do abandono do governo e das forças políticas, as pessoas tiveram que se virar para conseguir sobreviver em meio a uma pandemia, colapso da rede elétrica, colapso de abastecimento e outros vários colapsos. Se revelou uma notável capacidade de organização solidária na base da sociedade amapaense em meio à tragédia.
6. É notável que diante do abandono do governo e das forças políticas, as pessoas tiveram que se virar para conseguir sobreviver em meio a uma pandemia, colapso da rede elétrica, colapso de abastecimento e outros vários colapsos. Se revelou uma notável capacidade de organização solidária na base da sociedade amapaense em meio à tragédia. Midialivristas se organizaram e ratearam energia elétrica para divulgar a repressão nos bairros periféricos. Vaquinhas para organizar doação de água potável e garantir insumos básicos de uma vez, aos milhares, foram organizadas também – você pode apoiar uma das principais aqui. O movimento negro respondeu ao descaso e abandono da população quilombola com uma vigorosa denúncia, sem deixar de lado a solidariedade prática por meio de uma vaquinha online. Onde houve abandono do Estado, houve acolhimento e solidariedade popular.
7. Os dilemas enfrentados pelos trabalhadores e jovens urbanos do Amapá não são problemas só deles. A forma como a sociedade brasileira e o restante da classe vai reagir ao abandono privatizado e estatal que ora ocorre no Amapá vai pautar as próximas experiências no resto do país. É um conflito estratégico para os trabalhadores do resto do país. O SOS é um pedido de socorro baseado na reciprocidade. Quando não atendemos, arriscamos toda a possibilidade de conseguirmos ter apoio quando chegar a nossa vez. E não se enganem: a nossa hora também vai chegar.
As fotografias são de autoria de Diego Balieiro e estão disponíveis em: https://www.instagram.com/_odih/
Victor Hugo Viegas Silva é jornalista e funcionário da Universidade Federal de Goiás. Atualmente está atuando junto à comissão de comunicação do movimento #SOSAmapá.