por
Felipe Cotrim

Cheguei a um ponto em que só posso considerar um ensinamento divino aquele capaz de resistir ao teste da razão.
FRIEDRICH ENGELS, carta a Friedrich Graeber
FRIEDRICH ENGELS FOI um dos maiores intérpretes do século XIX. Em parceria com Marx, formulou uma teoria social radical e humanista que sintetizou o pensamento filosófico, historiográfico, político e econômico precedente. No campo econômico e social, Engels produziu obras que, em razão da permanência e do aprofundamento das contradições imanentes do capitalismo, se mantêm como relevantes fontes de estudo e pesquisa, como A situação da classe trabalhadora na Inglaterra e Sobre a questão da moradia. No que se refere à filosofia e à historiografia, destacam-se obras como A ideologia alemã e A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Ademais, Engels assumiu a difícil tarefa de organizar e editar os livros 2 e 3 de O capital, de Marx.
Engels também foi um organizador político, contribuindo tanto na formulação ideológica quanto na prática política dos partidos socialistas da Europa, particularmente os da Alemanha, França e Inglaterra. Engels participou ativamente na Liga dos Comunistas — organização política composta por exilados políticos alemães —, redigindo, em parceria com Marx, seu documento político: o Manifesto comunista. Engels também participou na Revolução Alemã de 1848 9 e na fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores.
Contudo, antes de ser um campeão da teoria social e do comunismo, Engels atravessou um caminho de formação e evolução intelectual e política singular. Reconstituir, organizar, sistematizar e compreender esse caminho engelsiano que antecedeu sua fase madura consiste em um dos objetivos a atingir nas páginas seguintes.
Porém, antes de adentrar efetivamente o exame das fontes de pesquisa, considero indispensável apresentar um breve esboço biográfico de Engels e alguns destaques dos anos em que ele viveu em Bremen, a fim de localizar o leitor sobre o ambiente no qual seus primeiros escritos foram produzidos e publicados.
Nascido em 28 de novembro de 1820, na cidade alemã de Barmen (atual distrito de Wuppertal), localizada na Renânia, então província do Reino da Prússia, Engels foi primogênito de uma família de burgueses do ramo da indústria têxtil. Embora criado para assumir a direção das empresas da família, seus interesses durante a juventude se voltavam não para administração, mas para história, filosofia, literatura, música e teologia. Ademais, desejava ingressar na universidade para estudar direito e filosofia. A fim de dobrar o filho a assumir suas responsabilidades com as empresas familiares, seu pai — que também se chamava Friedrich Engels — o retirou do ginásio um ano antes da conclusão, inviabilizando, dessa forma, a possibilidade de seu ingresso no ensino superior, e o introduziu nos serviços administrativos das fábricas da família.
Um pouco depois, no outono de 1838, novamente a mando do pai, Engels se mudou para Bremen a fim de dar continuidade à formação profissional nos escritórios comerciais de importação e exportação do cônsul Heinrich Leupold. Poliglota, Engels assumiu o cargo responsável pela correspondência comercial do escritório, recebendo e enviando cartas de e para Cuba, Estados Unidos, Haiti etc.
A Cidade Livre Hanseática de Bremen foi uma cidade-estado soberana que, durante a primeira metade do século XIX, pertenceu à Confederação Germânica — unidade política que reunia aproximadamente quarenta estados da Europa central criada, em 1815, pelo Congresso de Viena, para coordenar a economia e a política dos territórios de língua alemã depois da dissolução, em 1806, do Sacro Império Romano Germânico. Um dos maiores portos da Alemanha, Bremen realizava a importação de mercadorias como açúcar, algodão, café e tabaco das Américas e exportava linho e outros manufaturados das regiões germânicas da Vestfália e da Silésia. Bremen também foi um dos portos mais movimentados da imigração alemã aos Estados Unidos. Em uma visita a Bremerhaven, Engels tomou tempo para conhecer uma fragata que conduziria imigrantes alemães aos Estados Unidos, registrando suas impressões no ensaio “Uma viagem a Bremenhaven” [Eine Fahrt nach Bremerhaven], publicado em 20 de agosto de 1841.
Governada por um restrito grupo de famílias patrícias de mercadores, similar à Lübeck do romance Os Buddenbrook, do escritor alemão Thomas Mann, Bremen, quando comparada ao Reino da Prússia — Estado alemão autocrático e teocrático, contrarrevolucionário e integrante da Santa Aliança —, se caracterizava por ser um dos Estados menos repressores da Alemanha no que se referia às liberdades de imprensa. Essa condição permitiu a Engels que estudasse história, filosofia, teologia e literatura, expandisse seu conhecimento em idiomas e frequentasse cafés e livrarias em condições quase plenas de liberdade, obtendo acesso à vasta literatura de caráter liberal, com a qual dificilmente teria contato em outras cidades alemãs, em razão da censura que imperava sobre a maior parte delas. No ensaio “Relação com a literatura e música” [Verhältnis zur Literatur. Musik], publicado em 18 de janeiro de 1841, Engels avaliou o ambiente cultural das cidades hanseáticas, concluindo que, “com sua posição e condição política, Bremen é inegavelmente mais adequada para ser um centro da cultura do noroeste da Alemanha do que qualquer outra cidade”.
Portanto, em Bremen, Engels poderia vivenciar uma liberdade intelectual impossível em sua cidade natal, submetida não somente ao domínio autocrático e teocrático da Prússia, bem como ao fanatismo religioso dos pietistas locais. Assim, ele aproveitou as liberdades oferecidas pela legislação de imprensa de Bremen e a distância da rigorosa vigilância paterna para publicar artigos, ensaios, poemas e traduções nos jornais liberais, alguns de forma anônima e outros sob o pseudônimo de Friedrich Oswald, com o qual adquiriu fama e respeito entre seus pares.
O envolvimento de Engels com a literatura foi profundo, vindo a formar vínculo com o movimento Jovem Alemanha, que consistia fundamentalmente em um círculo heterodoxo de intelectuais liberais das décadas de 1830 e 1840 que, em termos gerais, questionavam o romantismo do período precedente e se dedicavam a escrever sobre a vida social cotidiana dos alemães, com particular atenção aos problemas da miséria material e cultural da Alemanha, agravados durante a Restauração Absolutista pelo recrudescimento da exploração dos camponeses e pelas primeiras fases da industrialização. No campo da política, defendiam um governo constitucional parlamentar, o direito de livre reunião e organização, a liberdade de imprensa, a emancipação das mulheres etc.
Engels publicou poemas sobre os mais variados temas, sendo a liberdade o mais recorrente. Sua primeira publicação autoral foi o orientalista “Os beduínos” [Die Beduinen], de 16 de setembro de 1838, em que é possível identificar suas inspirações literárias e as primeiras manifestações de desencanto e rebeldia perante os modos e costumes burgueses. A despeito da insatisfação demonstrada com o produto final de sua primeira publicação, Engels se arriscou novamente nos versos, lançando outros poemas nessa mesma temática, como, “Uma noite” [Ein Abend], publicado em agosto de 1840, e “Viagem noturna” [Nachtfahrt], em 3 de janeiro de 1841, nos quais se posicionou contra os regimes absolutistas dos Estados alemães.
Engels também expressou profunda admiração por Napoleão Bonaparte, escrevendo poemas em sua homenagem, como “Santa Helena” [Sankt Helena] e “A procissão do imperador” [Der Kaiserzug], publicados, respectivamente, em novembro de 1840 e fevereiro de 1841. No último, escrito em homenagem à procissão ocorrida em Paris no final de 1840 para a recepção dos restos mortais de Napoleão, Engels o descreveu como “majestade caída”, “divindade morta”, “unificador e deus da França” etc. […] Engels admirava Bonaparte como um reformador liberal e ilustrado que instituiu e expandiu na Europa as medidas políticas que ele desejava aos Estados alemães: a secularização e centralização do Estado, o tribunal do júri, o Código Civil, a emancipação dos judeus, a abertura dos altos postos públicos às classes médias etc. Entretanto, Engels também foi capaz de ver o outro lado da moeda da expansão napoleônica na Europa e de identificar Bonaparte como conquistador imperialista, celebrando no ensaio “Ernst Moritz Arndt”, publicado em janeiro de 1841, as Guerras de Libertação, que emanciparam os Estados germânicos do Primeiro Império Francês e consistiram em um momento relevante na formação da identidade nacional alemã, etapa fundamental do processo histórico de unificação nacional.
Assim, é possível identificar que o conteúdo político caracterizou, desde os primeiros anos, a atividade literária de Engels. Nas páginas iniciais do ensaio “Friedrich Engels, teórico e crítico da literatura”, Lukács sintetizou a crítica literária de Engels com as seguintes palavras: “A atividade de Engels no campo da literatura foi sempre determinada pelas grandes tarefas da luta da classe proletária. Já em A ideologia alemã, Marx e Engels afirmaram claramente que as várias esferas ideológicas (e, portanto, também a arte e a literatura) não possuem um desenvolvimento autônomo, mas são consequências e manifestações do desenvolvimento das forças materiais de produção e da luta de classes. A constatação da existência de uma ‘ciência unitária da história’ leva Marx e Engels, necessariamente, a tratar da literatura sempre no interior desse grande quadro unitário histórico sistemático.”
Mais adiante, no mesmo ensaio, Lukács identificou a especialização de Engels nesse campo de luta ideológica e afirmou a “íntima relação entre a atividade política e crítica literária” dele, sendo “a luta contra” o que nomeou de “os resíduos burgueses na consciência dos trabalhadores, contra o aburguesamento de sua consciência […] a orientação fundamental da crítica literária” engelsiana.
Contudo, antes de a obra literária engelsiana — bem como sua obra filosófica e política — se voltarem à crítica à sociabilidade burguesa, Engels tinha como alvo predileto a aristocracia e os Estados absolutistas da Europa. Um exemplo prático da literatura como campo de disputa ideológica antiaristocrática em sua obra de juventude está no ensaio “Os livros folclóricos alemães” [Die deutschen Volksbücher], publicado em novembro de 1839. Nele, Engels examinou criticamente os então populares livros de folclore e defendeu a necessária atualização deles via superação do conteúdo feudal absolutista, por meio de novas edições que correspondessem às necessidades culturais e políticas do período. Segundo Engels, além da função de entreter o trabalhador depois de uma exaustiva jornada de trabalho, os livros de histórias folclóricas teriam “também a missão de o tornar consciente da própria força, do próprio direito, da própria liberdade, despertando sua coragem e seu amor à pátria”. Temos, então, um Engels profundamente engajado na luta contra os resquícios do feudalismo e contra o romantismo reacionário, tendo o personagem mitológico germânico Siegfried como um protótipo do herói romântico e insubmisso da juventude alemã.
Na correspondência durante os anos em que Engels morou em Bremen, podemos conhecer seu profundo ódio à aristocracia e aos regimes absolutistas europeus.
Em carta de 9 de dezembro de 1839 a 5 de fevereiro de 1840 a Friedrich Graeber, declamou sua radical oposição aos principais monarcas absolutos do Velho Continente nos seguintes termos: “Odeio-o [Frederico Guilherme III, rei da Prússia], e, além dele, odeio talvez apenas mais dois ou três; odeio-o com um ódio mortal, e, se não o desprezasse tanto, o merda, ainda o odiaria mais. Napoleão era um anjo comparado a ele, o rei de Hanôver é um deus se o nosso rei é um homem. Nunca houve um tempo mais rico em crimes reais do que o de 1816 30; quase todos os príncipes então governantes mereciam a pena de morte. O piedoso Carlos X, o vicioso Fernando VII, da Espanha, Francisco, da Áustria, aquela máquina que só era boa para assinar sentenças de morte e sonhar com [os] carbonari; d. Miguel, que é um patife maior que todos os heróis da Revolução Francesa juntos, e que, entretanto, Prússia, Rússia e Áustria o reconheceram de bom grado quando se banhou no sangue dos melhores portugueses, e o parricida Alexandre, da Rússia, como também seu digno irmão Nicolau, em cujos atos abomináveis seria supérfluo desperdiçar outra palavra — oh, eu poderia te contar histórias de morte sobre como os príncipes amam seus súditos —; eu espero qualquer coisa boa somente daquele príncipe cujas orelhas são boxeadas à direita e à esquerda por seu povo e cujas janelas do palácio são estilhaçadas pelas pedras voadoras da revolução.”
A tendência antiabsolutista engelsiana de juventude advém, em parte, de sua oposição perante a censura imposta a jornalistas, escritores e professores na Alemanha. Na mesma carta a Friedrich Graeber, Engels comentou o tema de forma irônica: “Eu não cometo infanticídio em meus próprios pensamentos. Tais cortes de censura são sempre desagradáveis, mas também honrosos; um autor que atinge a idade de trinta anos ou escreve três livros sem cortes por parte da censura não vale nada”. A oposição de Engels à censura nos Estados alemães ganhou corpo depois da leitura de Jacob Grimm sobre sua demissão [Jacob Grimm über seine Entlassung]. Nesse texto, o erudito alemão Jacob Grimm denunciou a arbitrariedade do regime autocrático de Ernesto Augusto I, rei de Hanôver, que, em 1837, aboliu a moderada constituição liberal de 1833. A reação e a crítica pública dos professores da Universidade de Göttingen à imposição de Ernesto Augusto I resultou na expulsão de sete professores daquela universidade; entre eles estava Jacob Grimm.
A oposição crítica de Engels à censura se fortaleceu e ganhou maior substância teórica depois da leitura de Prússia e prussianismo [Preussen und Preussenthum], do jurista alemão Jacob Venedey. Nessa obra, Venedey examinou criticamente a legislação, a administração estatal, o sistema tributário prussiano. O resultado da pesquisa de Venedey, concluiu Engels, expôs o fato de que a legislação e todo o aparato burocrático do país beneficiava a aristocracia e punia os pobres, perpetuava o regime absolutista, suprimia a política educacional, prejudicando a formação cultural e intelectual do povo, e se utilizava da religião para atingir seus fins. A Confederação Germânica baniu o livro e confiscou os exemplares restantes.
Mais do que fortalecer a crítica à censura, a leitura voraz de textos liberais e a atividade literária e política de Engels em Bremen fortaleceram sua oposição ao absolutismo prussiano e aos regimes autocráticos europeus.
Engels também foi grande entusiasta da liberal e constitucional Revolução Francesa de Julho de 1830. Em carta de 8 a 9 de abril de 1839 a Friedrich Graeber, Engels escreveu: “Como um trovão, veio a Revolução de Julho, a expressão mais esplêndida da vontade do povo desde a Guerra de Libertação”. Em carta de 4 de agosto de 1840 à irmã, Marie, Engels relatou ter celebrado com amigos a Revolução de Julho, ocasião em que compôs um poema em homenagem ao evento histórico, que foi enviado a Friedrich Graber.
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