Por Fernando F. Dillenburg
Introdução
A experiência da Comuna de Paris nos leva a pensar para que serve o Estado burguês, qual o seu papel e qual a atitude da classe trabalhadora frente a ele. Os reformistas dirão que é preciso transformá-lo, ir ocupando o Estado, participando cada vez mais de suas instâncias para torna-lo cada vez mais um Estado social, a fim de melhorar as condições de vida da classe trabalhadora. Os reformistas não veem mais a possibilidade da revolução proletária. Sucumbiram ao domínio do capital. Presos apenas àquilo que está diante de seus olhos, aprisionados à realidade empírica, não percebem as potencialidades contraditórias produzidas pelos antagonismos de classes. Por isso, sua atitude é sempre a de frear a ação da classe, bloquear a luta de classes, ao invés de impulsioná-la. Seu lema diante da classe trabalhadora é: esperem que fulano fará as mudanças para vocês. Deixem que ciclano resolva isso. Para os reformistas, só faz sentido lutar e se organizar se for para reivindicar aos políticos para que esses atendam a demanda da classe trabalhadora. Eles se limitam a construir movimentos meramente reivindicatórios, nunca um movimento que busque a emancipação definitiva da classe trabalhadora em relação ao capital. A emancipação da classe, quando não totalmente esquecida, está presente apenas nos discursos dos reformistas.
Já os marxistas que permanecem coerentes com a perspectiva revolucionária de Marx consideram que é preciso destruir o Estado burguês. Ao contrário dos reformistas, os marxistas percebem que é impossível a classe trabalhadora se emancipar sem construir outro governo ao lado dos governos burgueses. Marx não nega a participação no Estado burguês. Mas a participação da classe trabalhadora nele serve apenas para denunciar os limites desse Estado e para divulgar o programa revolucionário. A experiência da Comuna de Paris é riquíssima em ensinamentos nesse sentido. Foi isso que ela tentou fazer. Ela tentou destruir o Estado burguês.
Vamos iniciar expondo rapidamente as condições de vida da classe trabalhadora parisiense naquela época.
Breve histórico da Comuna de Paris
Em setembro de 1870 uma revolução derrubou o Império de Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão. O novo governo republicano deu continuidade à guerra contra a Prússia, mas, diante da inferioridade militar, se rendeu em 28 de janeiro de 1871. No entanto, a Guarda Nacional, cuja grande maioria era formada por operários recém-alistados, não entregou as suas armas e seus canhões. Engels comenta que o exército prussiano “não se atreveu a entrar triunfalmente em Paris. Apenas ousaram ocupar um pequeno canto da cidade, o qual, aliás, compunha-se parcialmente de parques públicos (…) Tal era o respeito que os operários de Paris infundiam a um exército ao qual as tropas do Império haviam entregue suas armas”. (MARX : ENGELS, s/d, vol. 2, p. 45)
Após assinar, em 26 de fevereiro de 1871, um tratado preliminar de paz com os prussianos, o novo governo francês empossado em setembro “percebia que a dominação das classes possuidoras – grandes proprietários de terra e capitalistas – estaria em constante perigo enquanto os operários de Paris tivessem as armas em suas mãos. Esse temor fez com que, em 18 de março, o governo enviasse tropas com ordem de capturar a artilharia da Guarda Nacional. A tentativa fracassou. Paris mobilizou-se como um só homem para a resistência e declarou guerra entre Paris e o governo francês, instalado em Versalhes” (MARX : ENGELS, s/d, vol. 2, p. 45). Iniciava, assim, a Comuna de Paris.
Vale lembrar que nessa época os trabalhadores parisienses estavam há cerca de cinco meses enfrentando a fome e o frio devido ao cerco das tropas prussianas. Mesmo aqueles que aderiam à Guarda Nacional recebiam o miserável salário de 1,5 francos por dia, valor equivalente a uma alface ou a um pé de couve. Apenas 10% das casas de Paris possuíam saneamento básico. 70 mil fossas exigiam o trabalho cotidiano, noturno e degradante dos coletores de dejetos humanos. A vela seguia sendo a única fonte de luz para 80% dos parisienses.
Alguns dos ensinamentos da Comuna
Um dos grandes ensinamentos que a Comuna nos deixou foi a forma transitória que a classe trabalhadora pode conduzir as atividades públicas ao destruir o Estado burguês. A Comuna de Paris nos mostrou que a classe trabalhadora tem uma forma totalmente diferente de conduzir as atividades públicas se comparada à burguesia.
A primeira questão fundamental para conseguir destruir o Estado burguês é a da posse das armas. A Comuna recrutou todos aqueles que sabiam manusear uma arma para a Guarda Nacional. Durante a existência da Comuna, todos os funcionários públicos, do nível mais baixo ao mais elevado, passaram a ser eleitos e com mandatos revogáveis a qualquer momento. Eles passaram a receber o mesmo salário de um operário médio, que na época equivalia a 6.000 francos, correspondendo atualmente a cerca de 5.100 reais. Isso já elimina de um só golpe a burocracia, essa casta de funcionários intocáveis e muito bem pagos que muitas vezes se coloca acima da classe trabalhadora. A divisão entre o parlamento e o executivo também foi imediatamente extinta. O privilégio que os deputados do Estado burguês tinham de apenas parlar deixou de existir no governo dos trabalhadores. Aqueles que propunham mudanças tiveram que provar a viabilidade prática de sua realização.
A Comuna aboliu o trabalho noturno dos padeiros, prorrogou as dívidas dos pequeno-burgueses arruinados, “eliminando, assim uma das causas da discórdia entre as próprias classes médias: o conflito entre credores e devedores”; (MARX, s/d, vol. 2, p. 85) a Comuna transferiu as fábricas abandonadas às associações operárias; diminuiu a jornada de trabalho, chegando a postular uma jornada diária de 8 horas, o que na época era uma jornada bastante curta; aboliu o sistema de multas cobradas dos trabalhadores pelos patrões, que, sob os mais diversos pretextos, tinha como objetivo o rebaixamento dos salários; estabeleceu a aposentadoria aos 55 anos de idade; a moratória para o pagamento dos alugueis, diante de miséria imposta aos trabalhadores pela guerra; a igualdade entre os sexos; e, enquanto o Estado burguês, com seu nacionalismo reacionário, fazia batidas policiais para prender alemães residentes na França, a Comuna deu plenos direitos aos estrangeiros, a ponto de eleger um operário alemão, Leo Frankel, para o Ministério do Trabalho. Se o exército prussiano tinha anexado a Alsácia-Lorena da França, a Comuna anexava à França o povo trabalhador do mundo inteiro. (MARX, s/d, vol. 2, p. 87) A bandeira da Comuna era a bandeira da República mundial.
No lugar das cortesãs que haviam fugido para Versalhes, “voltaram à superfície as verdadeiras mulheres de Paris, heroicas, nobres e abnegadas como as mulheres da antiguidade. Paris trabalhava e pensava, lutava e dava seu sangue; radiante no entusiasmo de sua iniciativa histórica, dedicada a forjar uma nova sociedade, quase se esquecia dos canibais que tinha às suas portas”. (MARX, s/d, vol. 2, p. 89)
Então, quando, atualmente, nós revolucionários debatemos o que o proletariado precisa fazer quando tomar o poder é indispensável voltarmos à experiência da Comuna de Paris. Ela nos dá indicações claríssimas. O proletariado revolucionário deverá destruir o Estado burguês e substitui-lo pelo controle proletário. Nessa nova forma de organização, a organização do proletariado revolucionário, será a classe trabalhadora organizada quem debaterá, decidirá, realizará e controlará todas as atividades públicas. É isso o que a Comuna nos revela: uma nova forma de organização do proletariado revolucionário no poder.
E tudo se realiza sem perder a centralização. Ao contrário do centralismo burocrático e autoritário do Estado burguês, o centralismo da classe trabalhadora é um centralismo voluntário, uma fusão voluntária das comunas proletárias com o fim de destruir a máquina do Estado burguês. A Comuna mostrou na prática que o centralismo proletário não é algo que só pode ser imposto e mantido de cima para baixo. A Comuna nos revela que o povo armado é capaz de propor, realizar e controlar as atividades públicas de maneira consciente, planejada, transparente, democrática e centralizada. Reduzir o centralismo a algo que só poderia ser imposto de cima para baixo significaria reduzi-lo a sua forma burguesa, militar e burocrática, justamente a forma que a Comuna de Paris procurou, e conseguiu temporariamente, superar. Mas, vimos que para substituir o Estado burguês o povo precisa estar armado. Em algumas ocasiões históricas, muito específicas, especialmente nas guerras, a burguesia é obrigada a armar o povo. Foi o que aconteceu na Comuna de Paris e também na Revolução Russa de 1917.
Cabe, então, perguntar, porque, afinal, a Comuna de Paris foi derrotada. O que faltou para que a Comuna derrotasse a burguesia? Passemos, então, a debater essa questão.
Alguns erros dos comunardos que podem ter contribuído para a derrota da Comuna
A Comuna demonstrou não ter a quantidade e a qualidade de combatentes e de armas para enfrentar o exército burguês. Por isso ela foi massacrada. Como diz Marx, tudo se reduz à força material. E numa revolução a força material se expressa, em grande medida, na quantidade e qualidade de combatentes armados. Naquele momento a correlação de forças do ponto de vista militar era extremamente desfavorável à Comuna.
Quando o governo burguês instalado em Versalhes assina definitivamente o Tratado de Paz com a Prússia em 10 de maio, os prussianos libertam 60 mil soldados franceses. Com o contingente recuperado, os versalheses lançam contra Paris cinco batalhões do Exército. Eram 130 mil soldados contra 15 mil comunardos. Como se vê, a correlação de forças era muito desigual. A burguesia sabia que “três meses de comunicação livre da Comuna com as províncias bastariam para desencadear um levante geral dos camponeses; daí sua pressa em estabelecer um bloqueio policial à volta de Paris, como para impedir que a epidemia se alastrasse”. (MARX, s/d, vol. 2, p. 87)
Por tudo isso, é impossível saber se qualquer atitude diferente que a Comuna assumisse seria capaz de garantir a vitória. Nesse sentido, sem perder de vista as condições militares extremamente desfavoráveis que a Comuna enfrentava, Lenin expõe duas atitudes dos comunardos que poderiam ter contribuído para melhorar a correlação de forças. Uma delas era a expropriação do Banco da França, cuja sede era em Paris. Lenin (1977, tomo XIII, p. 482) comenta que isso significaria um duro golpe no governo burguês instalado em Versalhes, forçando-o a ter que dividir suas energias para recuperar o banco, energias então focadas exclusivamente na preparação do ataque militar a Paris. No entanto, a Comuna se limitou, como vimos, a formar cooperativas operárias nas empresas já abandonadas e não se lançou a expropriar as empresas ainda atuantes, como, entre outras, o Banco da França.
Por que será que a Comuna não expropriou o Banco da França? A composição da Comuna, eleita em 26 de março, portanto, 8 dias depois do ato de resistência ao desarmamento do povo, pode nos dar uma pista: dos 90 membros eleitos à Comuna, 15 deles eram do partido governamental e 6 eram radicais burgueses. Ou seja, dos 90 membros eleitos, pelo menos 21 eram burgueses. (TROTSKY, 2002, p. 163). Dentre os 90 membros havia ainda 15 anarquistas (BAKUNIN, 2002, p. 65). A maioria era formada por blanquistas, que, segundo Bakunin (2002, p. 66) eram socialistas mais pelo ambiente externo que os arrastava do que por convicção interna.
Para refletirmos sobre as profundas contradições internas da Comuna vamos citar aqui, rapidamente, algumas declarações de alguns de seus membros eleitos. Dentre os membros de sua minoria burguesa havia um sujeito chamado Vermorel, que tinha expressava abertamente sua intenção de firmar um acordo entre a Comuna e o governo burguês instalado em Versalhes. Vermorel defendia que “a Comuna deveria dominar seus inimigos pela força moral”. Era preciso, segundo Vermorel, “não tocar na liberdade e na vida do indivíduo”. Como se vê, esse sujeito eleito à Comuna encontrava-se totalmente desvinculado do espírito revolucionário das massas trabalhadoras que se negaram a entregar as armas no dia 18 de março. Longuet, outro membro da minoria burguesa da Comuna, editor-chefe do Jornal Oficial, defendia, no dia 30 de março, que, “o antagonismo de classes deixou de existir, pois toda a discórdia desapareceu, porque jamais houve tão pouco ódio e antagonismos sociais”. (TROTSKY, 2002, p. 164) Fica evidente que esses membros eleitos à Comuna desejavam a conciliação de classes ao invés da luta.
Vamos expor agora o outro polo da contradição interna da Comuna, o polo revolucionário. Em 16 de abril, quase um mês depois da resistência à entrega das armas, a Comuna, dominada pela preocupação de estabelecer um governo legitimo e legalmente eleito, ainda gastava tempo com uma eleição complementar àquela realizada em 26 de março, citada acima. Arnould, um intelectual revolucionário membro da minoria, se indignava com essa nova eleição, dizendo: “O povo não dá a menor importância a essas eleições. No fundo, isso não é mais do que parlamentarismo. A hora não é mais de contar os eleitores, mas, sim, de ter soldados; não de querer saber se crescemos ou diminuímos na opinião pública de Paris, mas de defendê-la contra os versalheses”. O socialista Millière, também revoltado com a condução da Comuna, afirmava: “A Comuna não é uma Assembleia Constituinte. É um Conselho de Guerra. Ela não deve ter senão um fim, a vitória; senão uma arma, a força”. Lissagaray, valente soldado da Comuna, também criticava os caminhos por ela tomados: “os líderes da Comuna jamais puderam compreender que ela é uma barricada, não uma administração”. (TROTSKY, 2002, p. 164-165)
Como se vê, para os mais lúcidos membros da Comuna não se tratava de estabelecer um governo democrático legitimamente eleito, mas uma ditadura da Paris operária sobre a burguesia reacionária. Para isso, antes de tudo, era preciso se preparar para vencer Versalhes. Mas a vacilação de seus membros eleitos fez a Comuna perder dias preciosos. E como diz Lenin: numa revolução, devido à rapidez dos acontecimentos, um dia pode corresponder a um ano durante um período normal. “Ao invés de exterminar os seus inimigos, que era o que devia ter sido feito, a Comuna procurou influir moralmente sobre eles, desprezou a importância que na guerra civil têm as medidas puramente militares e, ao invés de coroar a vitória em Paris com uma ofensiva resoluta sobre Versalhes, demorou-se e deu tempo para o governo versalhês reunir forças tenebrosas e preparar-se para a semana sangrenta de maio”. (LENIN, 1977, tomo XIII, p. 482)
“A Comuna tencionava abolir toda a propriedade de classe que converte o trabalho de muitos na riqueza de poucos. A Comuna aspirava à expropriação dos expropriadores. Queria fazer da propriedade individual uma realidade transformando os meios de produção, a terra e o capital, que hoje são fundamentalmente meios de escravizar e explorar o trabalho, em simples instrumentos de trabalho livre e associado.” (MARX, s/d, vol 2, p. 84) Mas a Comuna não teve tempo para realizar sua missão histórica.
Conhecer as contradições internas da Comuna de Paris é importante para evitar sua mistificação. É preciso conhecê-la como ela realmente foi, com suas potencialidades, mas também seus limites. Isso pode, em certa medida, ajudar a compreender o seu desfecho.
O trágico desfecho da Comuna e seu legado
Conforme já comentamos, não há como saber se uma atitude mais enérgica da Comuna teria sido suficiente para vencer Versalhes, diante da brutal desigualdade de forças militares. A Comuna durou apenas 72 dias, de 18 de março a 28 de maio. Os versalheses massacraram Paris, matando mais de 35 mil pessoas, das quais 20.000 diretamente nas ruas, 3.000 no cárcere e 13.700 até 1875, depois de condenadas pelos Conselhos de Guerra.
Disso Lenin extrai a seguinte máxima: hoje os burgueses podem se apresentar como liberais, como radicais, como democratas ou como republicanos. Mas amanhã, se a situação exigir, esses mesmos burgueses estarão ordenando fuzilamentos. Nada deterá sua violência diante de um proletariado revolucionário. Numa situação revolucionária, a única maneira de diminuir o número de mortos é a ação rápida. A vacilação somente causará o aumento desse número. “Mas, apesar de seus erros, a Comuna constitui um magno exemplo do mais importante movimento proletário do século XIX”. (LENIN, 1977, tomo XIII, p. 482)
Termino, então, com uma saudação de Marx (s/d, vol. 2, p. 100) à Comuna de Paris: “A Paris operária, com a sua Comuna, será para sempre celebrada como a gloriosa precursora de uma nova sociedade. A recordação de seus mártires conserva-se piedosamente no grande coração da classe operária. Quanto aos seus exterminadores, a história já os pregou a um pelourinho eterno. Todas as orações dos seus padres não conseguirão resgatá-los”.
Bibliografia consultada:
BAKUNIN, M. “A Comuna de Paris e o conceito de Estado”. In: COGGIOLA (Org.) Escritos sobre a Comuna da Paris. São Paulo: Xamã, 2002.
LENIN, V.I. “Ensenanzas de la comuna”. In: Obras completas. Madrid: Akal, 1977.
MARX, K. “A guerra civil da França”. In: MARX : ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, vol. 2, s/d.
MARX, K. : ENGELS, F. “Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas”. In: MARX : ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, vol. 1, s/d.
TROTSKY, L. “A Comuna de Paris e a Rússia dos Sovietes”. In: COGGIOLA (Org.) Escritos sobre a Comuna da Paris. São Paulo: Xamã, 2002.
Notas:
¹ Em 1850, Marx e Engels (s/d, vol. 1, p. 88) defendem: “ao lado dos novos governos oficiais, os operários deverão constituir imediatamente governos operários revolucionários, seja na forma de comitês ou de conselhos municipais, seja na forma de clubes operários ou de comitês operários, de tal modo que os governos democrático-burgueses não só percam imediatamente o apoio dos operários, mas também se vejam desde o primeiro momento fiscalizados e ameaçados por autoridades atrás das quais se encontre a massa inteira de operários”.
² No mesmo texto da nota anterior, os autores afirmam: “ao lado dos candidatos burgueses democráticos devem figurar em toda parte candidatos operários, escolhidos na medida do possível dentre os membros da Liga, e que para o seu triunfo se ponham em jogo todos os meios disponíveis”. (MARX : ENGELS, s/d, vol. 1, p. 89)