O movimento do auxílio emergencial

Victor Hugo Viegas Silva

O programa de auxílio emergencial ativou politicamente inúmeros trabalhadores como sujeitos de um novo e peculiar direito: o direito de não passar fome.

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O Auxílio Emergencial talvez seja o maior programa social de transferência de renda da história do Brasil. Na sua versão inicial de R$600,00 e cinco parcelas, o programa afetou diretamente 67 milhões de pessoas e, indiretamente, 126 milhões de brasileiros. De acordo com informação do próprio governo, dos 67 milhões de pessoas consideradas elegíveis para o benefício, 19,2 milhões são beneficiários do Programa Bolsa Família; 10,5 milhões cadastrados no Cadastro Único e 37 milhões foram cadastrados por meio de site ou aplicativo. Esses quase 38 milhões de brasileiros são os chamados “invisíveis”, trabalhadores que até então viviam sem nenhum tipo de benefício estatal.

Por suas características de origem e forma de funcionamento, esse programa ativou politicamente inúmeros trabalhadores como sujeitos de um novo e peculiar direito: o direito de não passar fome. Esses trabalhadores vêm organizando grupos de ajuda mútua na internet, pelas redes sociais e alguns desses grupos se converteram em focos de mobilização política no momento em que Bolsonaro pautou a redução do valor do auxílio e do número de beneficiários.

Muito se especula que o auxílio emergencial pode ter ajudado Bolsonaro e impulsionado sua popularidade. Antes do programa, em abril, Bolsonaro tinha 30% de popularidade e hoje, com o auxílio em vigor, ele chegou aos 40%, o maior percentual desde o início do mandato. A relação parece óbvia. Mas ela não é nem um pouco óbvia quando se olha um pouco mais de perto a origem do programa, a sua forma de funcionamento, o que pensam e como se mobilizam seus beneficiários. O que descobri depois de meses acompanhando diversos grupos de ajuda mútua e de mobilização de beneficiários do auxílio emergencial é que essa relação está longe de ser automática.

O objetivo do atual texto é justamente retirar o automatismo da avaliação do auxílio emergencial. O instrumento que utilizarei para fazer isso vai ser a descrição de uma parte que consegui captar ao acompanhar por alguns meses grupos virtuais de ajuda mútua e de mobilização contra o corte do auxílio. Trata-se de um retrato parcial da parcela politicamente mais engajada e solidária dos beneficiários do programa. Trata-se, também, de uma análise comprometida com esses trabalhadores pobres que se esforçam para se tornarem sujeitos políticos capazes de interferir no cenário político nacional. Para não passar fome e não deixar ninguém passar necessidade sendo que existe condição de ajudar a todos.

Origem do auxílio emergencial

Pouca gente lembra, mas no início da pandemia no Brasil o governo Bolsonaro estava absolutamente desnorteado e havia um consenso forte na sociedade em prol de uma quarentena forte e sustentável. Argumentei em outro lugar que a quarentena que houve no Brasil foi em maior parte um movimento massivo de autodisciplina e isolamento voluntário, organizado principalmente pelos trabalhadores conscientes. Esse movimento gigantesco e forte arrancou um orçamento especial para o tempo da pandemia e um consenso no Congresso em torno de um programa para viabilizar que as pessoas ficassem em casa. Mais de 150 organizações da sociedade civil se articularam e trouxeram uma proposta de consenso para o Congresso que a aprovou. Tatiana Roque da Rede Brasileira pela Renda Básica relata como foi o processo de articulação nesse vídeo do Canal Transe. Resumindo: o governo tinha uma proposta de um voucher de R$ 200,00 apenas para os trabalhadores informais, essa proposta foi atropelada por outra de R$ 500,00 praticamente universal para todos que pedissem e aproveitando o Cadastro Único – Bolsonaro então aumenta o valor de R$500,00 para R$600,00 e aprova o programa.

Foi aprovado um programa com restrições mínimas para que chegasse a todos que precisassem e conseguissem pedir. Essa quase-universalidade na sua definição de elegibilidade é bastante importante para entendermos como foi encarada e foi importante o auxílio emergencial para criar uma nova e ampla consciência do que é ser pobre e trabalhador no Brasil.

Invisíveis

Os números variam. O Fantástico falou que se tratam de 46 milhões. Guedes pediu ajuda para informar aos 20 milhões. Lauro Gonzales, do Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira (FGVcemif) da Fundação Getulio Vargas, descobriu esse grupo pela falta: são 38 milhões de beneficiários que vão ficar desamparados assim que acabar o programa. Ou seja, não tem acesso a nenhum outro tipo de benefício. Esses trabalhadores são 61% dos que receberam o auxílio. A maioria desempenha apenas atividades informais e tem ensino fundamental. Tem outra coisa: no sistema tributário brasileiro, eles pagam muitos impostos e não recebem benefícios diretos, enquanto os serviços públicos geralmente são de baixa qualidade. Pagam imposto sobre consumo, IPTU, conta de luz e de água. A renda usual da maioria (74%) desses trabalhadores não excede R$1254,00. Pela primeira vez, eles correram atrás e receberam um benefício social na forma de assistência direta garantida pelo Estado contra as intempéries econômicas. Não tiveram que se virar para não morrer de fome durante a pandemia. Ocorre uma ruptura aqui.

Mas ela não ocorre de uma vez. Muitos, pelo menos 5,5 milhões, correram risco de perder o benefício por dificuldades do programa de acessá-los. Muitos que não tinham CEP registrado tiveram que recorrer a amigos ou parentes ou redes de solidariedade locais. Quem não tinha celular teve que arrumar um, pegar emprestado ou de favor. Até hoje, aliás, ausência de celular é um problema no acesso ao benefício.  Quem não sabia usar teve que aprender, arrumar quem ensinasse ou arrumar quem ajudasse. Apesar de ser quase universal, o momento do registro significou uma barreira significativa para os beneficiários, barreira contra a qual tiveram que se mobilizar de maneira diversa como é diversa a realidade dos trabalhadores pobres brasileiros. Essa mobilização implicou numa acelerada digitalização desses trabalhadores – milhões de uma vez só.

Surgem os grandes grupos virtuais de ajuda mútua no facebook. Nesses grupos basicamente as pessoas que estavam mais adiantadas no processo de seleção do benefício orientavam outras, compartilhavam experiências, debatiam situações. Nesses grupos as pessoas descreviam a sua situação e perguntavam: eu posso receber o benefício? Em outras palavras… eu sou pobre mesmo?

Outra barreira importante era o momento do cadastro. O momento do cadastro é o equivalente físico de chegar em um atendente, explicar a sua situação e pedir o benefício. Essa explicação da situação, cadastrar-se no aplicativo, precisa de um reconhecimento tácito e uma admissão: sou pobre e preciso. E a questão estava ali entre a pessoa e o celular, não havia mais a tutela de um funcionário. Talvez a intermediação de uma pessoa simpática que de saída já está querendo te ajudar a acessar o benefício. Uma falha no cadastro significou para muitos potenciais beneficiários um questionamento da sua condição: será que o aplicativo está me dizendo que eu não mereço o benefício? Naturalmente, um movimento de cadastro de 38 milhões de pessoas novas implicou em vários problemas de base de dados e de utilização do sistema. Então as pessoas tiveram problemas e começaram a se questionar: eu mereço mesmo o benefício? Sou pobre mesmo? E as vezes as pessoas próximas não estavam ajudando ou não tinham a resposta.

Nisso que surgem os grandes grupos virtuais de ajuda mútua no Facebook. Nesses grupos basicamente as pessoas que estavam mais adiantadas no processo de seleção do benefício orientavam outras, compartilhavam experiências, debatiam situações. Nesses grupos as pessoas descreviam a sua situação e perguntavam: eu posso receber o benefício? Em outras palavras… eu sou pobre mesmo? Essa pergunta tão delicada ficava momentaneamente mais leve e simples de fazer porque a questão era prática: preciso resolver isso para acessar o benefício, todo mundo está passando por isso ao mesmo tempo, ninguém vai pegar meu caso pra ficar me humilhando. O maior grupo de facebook de ajuda mútua de que tenho notícia tem 600 mil membros, outros grupos tem 300 mil, 50 mil, 40 mil e neles os beneficiários compartilham angústias sobre o calendário de pagamento, dificuldades no cadastro e suas experiências de vida e da economia. Vários desses grupos servem de guarda chuva para a criação de grupos de whatsapp, mais dinâmicos, em que a sociabilidade é orientada principalmente para os calendários de pagamento, ajudas mais pontuais e rápidas e para uma sociabilidade quase familiar entre pessoas sozinhas que subitamente se encontram tendo muito em comum com muitas outras. Pobres e trabalhadoras como eu, sem vergonha disso. Cooperando e ajudando umas as outras a esperar o pior passar.

Haveria aqui um embrião de consciência de classe?

#OBrasilExige600

Sem dúvida o setor mais consciente, organizado e militante dessa movimentação tectônica que foi a implantação do benefício são os militantes do movimento virtual contra o corte das parcelas. Rodrigo Maia chegou a falar que nas suas redes sociais 82% queriam a parcela de R$ 600,00, foram relatadas irritações do grupo de Maia (o mais poderoso da república, não se irrita com qualquer coisa) com o deputado que é mais impulsionado e que mais impulsiona o movimento virtual, André Janones (Avante), que chegou a ter as lives mais visualizadas em todo o ocidente. A preocupação do movimento com os cortes é fundamentada em motivos bastante concretos: a proposta de Bolsonaro deixou de fora pelo menos 6 milhões de beneficiários. Nos últimos meses vem acontecendo uma luta surda contra os pente finos que bloqueiam sem direito de defesa beneficiários do auxílio: aconteceu um em julho que bloqueou 1,1 milhão de beneficiários, dos quais apenas 148 mil voltaram a ter o benefício em meio a uma pandemia e em agosto teve outro bloqueio massivo indevido que cortou um milhão de beneficiários. A preocupação do governo com a mobilização é tamanha que não deixaram as pessoas saberem antecipadamente, de forma comum e coletiva, que seus benefícios tinham sido cortados, elas tinham que descobrir se foi cortado ou não na boca do caixa e individualmente. Essas iniciativas conjuntamente fizeram com que esse movimento bastante amplo hoje esteja enfraquecido, mas a própria existência do benefício ainda garante a existência de um movimento em sua defesa, por mais difíceis que sejam as condições. Os beneficiários compreendem que sem o benefício é pior ainda e sabem que não podem ficar parados, esperando que caísse do céu uma defesa das suas condições.

Para entender o movimento é importante ter uma noção básica a respeito de André Janones. Ele começou sua militância como advogado, defendendo a causa de beneficiários do sistema de saúde que estavam tendo seus direitos negados. Na época, ele usava a live do facebook como instrumento pedagógico mas também como forma de pressão e mobilização de quem concordava com ele e forma de tentar ‘intimidar’ prefeitos e gestores da saúde. A sua proposta quando eleito era expor o que acontecia no Congresso Federal numa espécie de Big Brother com base no mesmo princípio. Nos últimos meses, Janones fez lives diárias que acompanhavam os trâmites burocráticos do Dataprev e da Caixa Econômica, serviam como pressão política e também como informe/alento para os que estavam esperando o benefício. Com o tempo essas lives foram crescendo e quando se anunciou o corte de R$600,00 para R$300,00 Janones tinha conquistado a confiança de muitos beneficiários. Resultado: suas lives, orientações didáticas se tornaram instrumento e ponto de encontro para centenas de milhares de beneficiários do auxílio emergencial. A live em que lançou a hashtag #OBrasilExige600 teve 340 mil compartilhamentos, por exemplo. Nas lives, Janones lança as hashtags (explicando didaticamente como digitar e mandar no aplicativo de rede social), dá informes burocráticos de ‘serviço’ e também discursa sobre o fato do benefício ser um direito, não um favor, durante o período emergencial da pandemia. Mas veja: é uma posição delicada que não é exatamente de dirigente, mas de instrumento, ponto de encontro, alavancador de uma massa dispersa em centenas de grupos de Whatsapp, facebook, telegram etc.

Por que chamo os beneficiários que participam do movimento de militantes? Porque trata-se de uma atuação diária, consciente, disciplinada. Acompanho um grupo em que se organizam alguns beneficiários mais dedicados ao movimento. Todo dia, sem exceção, tiram tarefas de mobilização: deputados nos quais comentar pressionando pela pauta do auxílio, discussões nos grupos em que participam e pedem apoio dos outros colegas de grupo para vencer o debate. Nesses grupos também segue acontecendo o apoio mútuo característico da fase inicial do auxílio emergencial: as pessoas compartilham suas dificuldades, angústias, as vezes fazem vaquinhas entre si para fortalecer uma pessoa que parecer estar passando por um perrengue mais difícil que as outras. A principal arma de mobilização e pressão do movimento é o depoimento, nos comentários, mensagens e debates sempre está presente um depoimento que atesta a dificuldade da situação vivida, o que comprovaria a legitimidade do movimento e da reinvindicação dos 600 reais. Os depoimentos comprovam que não se trata de movimento de robôs, cada comentário em cada post de deputado tem milhares de histórias diferentes de como as pessoas estão vivendo em dificuldade por causa da pandemia e precisam mesmo do benefício. Vê-se, então, que existe uma politização da pobreza, da condição de ser pobre. Existe, também, uma combate bem sucedido à vergonha de ser pobre, ao sentimento de inferioridade pela pobreza. A pobreza se torna uma externalidade, uma coisa que depende de decisões políticas, que não define aquelas pessoas como melhores ou piores. Ela se torna, então, ao invés de marcador de desprestígio, uma arma de luta e construção de identidades coletivas. Dá pra ver que nos grupos as pessoas se fortalecem subjetivamente para encarar com dignidade e em pé de igualdade a arena pública e os deputados que recebem o dinheiro dos seus impostos.

O setor mais consciente, organizado e militante dessa movimentação tectônica que foi a implantação do benefício são os militantes do movimento virtual contra o corte das parcelas.

Algumas frases marcantes são repetidas por integrantes nos mais diversos grupos: à acusação de que deveriam buscar trabalho, as pessoas respondem que não tem emprego e portanto elas não são vagabundas; ‘quem tem fome tem pressa’ é um slogan mobilizado para contrapor  o que enxergam como insensibilidade das instituições frente ás urgências da vida do povo, vejam como ter fome se torna uma arma de constituição de identidade coletiva e pressão, ao invés de ser um marcador de vergonha. ”Não é favor, é direito, é o dinheiro dos meus impostos” é uma forma típica desse setor dos invisíveis de falar a respeito da situação que vivem, em que pagam pesados impostos no sistema tributário regressivo brasileiro e usufruem de poucos direitos e benefícios e a diferença que o auxílio passou a fazer na vida dessas pessoas. Não se trata do discurso do pagador de impostos de classe média, individualista, mas de outro sujeito político e de outra reinvindicação em torno do Estado e das políticas públicas.

Os bolsonaristas não aparecem para o movimento como pessoas que tentam cooptar o benefício e falar que o presidente é bom porque deu pra eles. Pelo contrário, os militantes a favor do presidente falam que quem luta pelo benefício devia estar se organizando para trabalhar, que querem viver de auxilio pra sempre, que são vagabundos; os militantes bolsominions geralmente são agressivos e desagregadores quando aparecem para intervir em qualquer grupo de militância e ajuda em prol do auxílio, as vezes até tentando sabotar os grupos com compartilhamento de pornografia em massa.

Conclusões provisórias

A redução efetiva do número de beneficiários e do valor do benefício certamente foi um baque significativo para a moral e para as condições de vida de muitas dessas pessoas que descobriram que sua pobreza não é matéria privada, mas pode ser alvo de luta política. Em algumas mensagens de mães de família para os deputados começam a se vislumbrar subentendidos que as pessoas podem acabar recorrendo a saques e quebra quebra se a situação econômica ficar insustentável e seus filhos começarem a passar fome. Fato é que depois de ativar a consciência política coletiva de tanta gente, vai ser difícil colocar de volta no lugar da passividade e da ausência completa de qualquer apoio os beneficiários do auxílio emergencial.

Victor Hugo é jornalista, funcionário da Universidade Federal de Goiás e colabora regularmente com A Comuna e outras publicações anticapitalistas.

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