Victor Hugo Viegas
Temos duas políticas em disputa. Uma considera que é inevitável a morte das pessoas, necessária e talvez até benéfica. Outra política considera as mortes inaceitáveis. Não existe diálogo, não existe uma política incompetente, não existem erros. Existe a imposição de uma política ou de outra.

Desse modo brutal, oprimidos até o fundo, viveram muitos homens de nosso tempo; todos, porém, durante um período de tempo relativamente curto. Poderíamos, então, perguntar-nos se vale mesmo a pena, se convém que de tal situação humana reste alguma memória. A essa pergunta, tenho a convicção de poder responder que sim. Estamos convencidos que nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que todas merecem ser analisadas; de que se podem extrair valores fundamentais (ainda que nem sempre positivos) desse mundo particular que estamos descrevendo. Desejaríamos chamar a atenção sobre o fato de que o Campo foi também (e marcadamente) uma notável experiência biológica e social.
Primo Levi, É Isto Um Homem?
Princípios
“Esse vírus é igual uma chuva”, disse Jair Bolsonaro meio que no começo disso tudo, “vai molhar 70% de vocês. Isso ninguém contesta. E toda nação vai ficar livre de pandemia depois que 70% for infectado e conseguir os anticorpos. Ponto final. Agora, desses 70%, uma pequena parte, que são os idosos e que tem planos de saúde, vai ter (sic) problemas sérios”. Ele chegou a fazer essa declaração dos 70% mais de 6 vezes.
Houve quem discordasse disso na população brasileira. Houve quem acreditasse que era possível evitar que as pessoas – um ajudando o outro – passassem pelo pior e que era possível mudar o rumo da política no país. Houve quem acreditasse e ainda acredita que a tragédia pela qual estávamos passando era evitável. E tentou aplicar essa crença ali, no dia a dia, no seu bairro. Esse ensaio vai tratar de uma dessas tentativas. Quem sabe, a partir dela, se aprenda algo sobre o que foi e poderia ter sido a pandemia do covid-19 no Brasil.
Munidos da crença de evitar o pior, essas pessoas – que antes estavam dispersas no bairro – a traduziram pra sua realidade local assim:
Olá!
Estou entrando em contato para disponibilizar este grupo a ações e atitudes solidárias.
Idosos, pessoas de risco que precisarem de sair para compras, remédios, consultas que não podem esperar, crise de ansiedade, podem se contactar com esse grupo que tentaremos auxiliar no que for possível .
A inspiração eram os grupos de prédio que começavam a surgir no Brasil para apoiar os idosos que eram a prioridade no isolamento social. Pouca gente lembra, mas muita gente se ofereceu espontaneamente em seu prédio para fazer compra ou afazeres para que os idosos não precisassem se expor à pandemia. A quarentena estava na moda – apesar do presidente dar declarações como a que destaquei acima, 76% da população defendiam ficar em casa de acordo com o Datafolha. As pessoas se apresentavam no grupo – uma médica, uma manicure, pessoas de diversos prédios, algumas pessoas da favela da região. Tinha até um negacionista. Ele saiu do grupo após o primeiro discurso do presidente junto com o pastor da Igreja Presbiteriana. Mas a princípio estávamos todos lá unidos pela preocupação com o vírus, trocando informação e disposição para ajuda. Ao que parece, os idosos não estavam precisando de muita ajuda, mas informações sobre a doença e cuidados todos estavam precisando e querendo. A Igreja Presbiteriana e a Igreja Católica próxima ofereciam doações aos que tinham perdido a fonte de rendimentos. Uma loja de artigos de festa insistia em manter-se aberta, alguns de nós tiramos fotos e denunciamos nas redes sociais. Ela fechou e só conseguiu reabrir vendendo comida e outros itens essenciais – e só fazendo delivery. Esses foram os dias do começo da pandemia do Brasil, para nós. Ainda havia muitas outras abertas, mas tínhamos confiança que isso iria mudar logo. Para melhor. Era possível.
Não foi, no entanto, o que aconteceu no Brasil, nos EUA, no Reino Unido, na Suécia. Essa tendência foi derrotada e chegamos aos milhares e milhares de mortos. O que aconteceu? Por que aconteceu? O que nos espera?
“A cura não pode ser pior do que a doença”
“Saúde e economia devem andar juntos”, resumiu Bolsonaro em seu pronunciamento sobre as medidas que tomou para combater a pandemia no Brasil. Não custa lembrar que para ele o país estará imunizado a partir do momento que 70% da população pegar o vírus. Falei em outro texto sobre a origem da ideologia da imunidade do rebanho, também chamada de imunidade coletiva, social ou isolamento vertical – foi originada do intercâmbio ideológico entre Dominic Cummings (o number 10 de Boris Johnson) e Richard A. Epstein, ideólogo fundamentalista neoliberal americano. (Para mais informações sobre isso podem ver aqui).
Solange Vieira, assessoria especial que atuou na reforma da previdência, resumiu aqui: “É bom que as mortes se concentrem entre os idosos… Isso melhorará nosso desempenho econômico, pois reduzirá nosso déficit previdenciário.” Isso não é uma originalidade brasileira. Ao que parece, o objetivo se realizou e muitas famílias estão lidando com a perda da sua principal fonte de renda, como diz essa reportagem da BBC.
Nos EUA vazaram e-mails de um alto gestor da política de enfrentamento da pandemia defendendo a política de imunidade de rebanho sem vacinação. Disse esse alto gestor nos e-mails vazados: “”Bebês, crianças, adolescentes, jovens, adultos jovens, de meia-idade sem condições etc. têm risco zero a pequeno … então os usamos para desenvolver rebanho … queremos que eles sejam infectados …”
No Reino Unido, quem foi flagrado falando dessa aspiração foi Dominic Cummings, o ministro das sombras de Boris Johnson. Disse ele: “Nosso objetivo é tentar reduzir o pico … também, porque a grande maioria das pessoas pega uma doença leve, construir algum tipo de imunidade coletiva para que mais pessoas fiquem imunes a esta doença e nós reduzamos a transmissão”. Quando questionado sobre qual proporção da população britânica precisaria obter o vírus para que a imunidade coletiva funcionasse, Sir Patrick disse “provavelmente cerca de 60 por cento”.
Na Suécia também houve vazamento similar – e esse nos interessa porque trata da questão da abertura das escolas. As escolas são tratadas como um instrumento importante de imposição da imunidade de rebanho. Disse o gestor flagrado nesse vazamento: “Um ponto pode falar para manter as escolas abertas a fim de alcançar a imunidade coletiva mais rapidamente”.
Acho que esses vazamentos e declarações de autoridades dadas em espaços nos quais se sentiam confortáveis para falar das políticas que estavam a ser executadas são indícios importantes de que havia um plano. Não estamos falando de negligência, de incompetência, de lamentáveis enganos, mas de uma política de deliberada infecção das nossas populações a serviço da continuidade ininterrupta dos serviços e do comércio.
E o #FicaEmCasa?
No começo da pandemia, entre março e maio, conquistamos uma breve política de lockdowns, um auxílio emergencial mais abrangente que qualquer política social anterior, o fechamento das escolas e das universidades públicas e privadas. Isso aconteceu por uma imensa movimentação social que pautava a defesa das nossas vidas e conseguiu encurralar os governos. Relatei como foi criado, por exemplo, uma grande coalizão de esquerda que arrancou um bom auxílio emergencial e gerou um movimento social importante aqui.
Esse movimento tinha algumas fragilidades que hoje estão escancaradas. Vamos chamar esse movimento mais amplo de #FiqueEmCasa. Ele era composto por: cientistas, empresários progressistas, trabalhadores informais e formais, sindicatos e associações, movimentos virtuais de opinião pública. Falo de forma mais aprofundada desse momento nesse texto. Agora falarei mais brevemente.
Suas duas principais fragilidades eram: de um lado, o setor empresarial e governamental não estava disposto a ter prejuízos reais defendendo a vida de pessoas pobres. Ao primeiro sinal de desgaste ou prejuízo econômico e político, pularam fora da aliança. Luciano Huck, por exemplo, empresário que defendeu uma “revolução da solidariedade” durante a pandemia não hesitou em demitir os professores que ficariam dando prejuízo em uma de suas startups. Os governadores que realizavam lockdown foram alvo de operações da polícia federal e recuaram.
Esses setores da classe dominante que apoiavam a luta pela quarentena foram definitivamente limados pela demissão do Mandetta – mas, antes da sua demissão, pela sua concessão que não eram mais necessários os lockdowns já em abril de 2020.
Por outro lado, os cientistas, movimentos virtuais e trabalhadores acreditavam que #FicarEmCasa era algo de que se poderia ser persuadido. Para os trabalhadores informais, a maioria dos trabalhadores no país, o dilema era: contágio ou fome. Sem a construção de um movimento político solidário que envolvesse esses trabalhadores em proteções sociais sólidas, não há persuasão possível. Mas até para sustentar suas quarentenas contra seus patrões, os trabalhadores formais tiveram que adotar uma postura rígida de que suas “consciências” não os permitiam sair de casa, o que acabou criando uma separação e condenação moral… e no final, uma incompreensão e incapacidade de diálogo com quem vivia uma realidade diferente.
Esses dois fatores resultaram no atual isolamento e descredibilidade perante a opinião pública da defesa das políticas de quarentena e lockdown. Virou um movimento autorreferenciado e que se preocupa em se legitimar mais e se garantir na sua quarentena localizada do que expandir-se e garantir a defesa da vida das pessoas fragilizadas na sociedade.
Precisamos evitar o pior não apenas no sentido de evitar as mortes, mas também que o inimigo consiga nos formar à sua imagem e semelhança na medida em que o desespero vai nos moldando para sobreviver.
Sem enfrentar Bolsonaro coletivamente, continuaremos a mercê do vírus
Em recente auditoria, o Tribunal de Contas da União (TCU) afirma que o Ministério da Saúde não tem plano estratégico de enfrentamento da pandemia, tem respiradores parados em depósitos, há falta de entrega de equipamentos, falta de insumos para vacina, falta de remédios para tratamento de pacientes na UTI. Mas tem um dado curioso. O relatório fala de milhares de máscaras que foram compradas e depois largadas, sem serem entregues pra ninguém. Por que elas foram compradas? Foram por pressão da sociedade, que, no entanto, deixou de pressionar pelos próximos passos.
Esse governo só deixou de permitir a infecção das pessoas pela COVID-19 como processo de depuração quando foi enfrentado coletivamente. Ele só vai fazer a vacina avançar quando for enfrentado e apenas enquanto for enfrentado. No momento em que deixar de ser pressionado e deixar de ter medo das consequências de nos matar, ele vai continuar nos matando.
Temos duas políticas em disputa. Uma considera que é inevitável a morte das pessoas, necessária e talvez até benéfica. Outra política considera as mortes inaceitáveis. Não existe diálogo, não existe uma política incompetente, não existem erros. Existe a imposição de uma política ou de outra. Deixar Bolsonaro impor sua política é consentir com a morte dos idosos e da nossa população mais vulnerável. Ele já deixou suas intenções claras. É importante entendermos e falarmos claramente que estamos sendo vítimas de uma política de extermínio, de imposição de condições que nos levam à morte. Isso tem duas consequências: por um lado, a determinação e a organização para enfrentar essa política têm que ser redobradas, não se deve vacilar nem ter qualquer tipo de diálogo “construtivo” com Bolsonaro; por outro lado, as pessoas forçosamente estão desenvolvendo formas de adaptação que nos são muito dolorosas de ver, porque quando estamos falando de sobrevivência diante do extermínio a moralidade comum fica suspensa – as pessoas dissolvem muitos laços de solidariedade, de hábitos de cuidado consigo e com os outros e vão se formando como sobreviventes. Precisamos evitar o pior não apenas no sentido de evitar as mortes, mas também que o inimigo consiga nos formar à sua imagem e semelhança na medida em que o desespero vai nos moldando para sobreviver.
Victor Hugo Viegas Silva é jornalista e trabalhador da educação pública na Universidade Federal de Goiás. É colaborador de A Comuna, onde tem contribuído com pesquisa, informação e reflexão sobre a pandemia da covid-19.
Dicas:
Além dos outros artigos que tratam sobre a pandemia no nosso blog, organizado num Dossiê sobre a pandemia (<- clique aqui para ver), nosso canal TV A Comuna promoveu dois debates sobre o assunto: